11/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 110 a 113

 

© Wim Wenders

110


Titubeio & tartamudeio: gestos & sílabas.
Faz parte do processo, a todos comum que envelhecem.
Algo afinal busco, procuro, demando, sondo.
Entretenho o tempo, todos o fazem.
Sem pílula-dourada que não a de cada verso, sim.
Foi o Oswald? Foi o Oswald sozinho?
Quantos autoproclamados messias ainda?
Por que nos é dado tempo?
Por que nos é dado tão pouco tempo?
Não digo que não seja bonito – é bonito, o mundo.
Por que o habitamos? Hidrogénio e mais quê para quê?
Nos lares, os velhos vão desligando-se de cabos.
Desemaranham-se, dão de caras com o rectilíneo.
Pensais que alguém traça deles o azimute irrisório?
Sim, todos manipulamos imagens.
Fingimos muito que não, aceitemos que sim.
A pureza ainda mora algures.
O chato é quase nunca ser humana.
Não te olhas Guy Burgess ao espelho?
Conímbriga pavimentada sob água fresca: chegaste atrasado, Zé.
O fiorde como traçado a esquadro, primeiro gelo: onde já, Raul?
Dar o tempo à necessidade do livro, Manuel, dar-lhe calma.
É-me agora impossível recuar, ir para Matemática ou Direito.
Nisto estou como isto sou.
Trema o que tremer, tema o que temer.

111

Segue tido por aleatório
quanta cousa causa não mostra.
Quão livre é o nosso arbítrio,
mostra-no-lo, talvez, o efeito.

112

    António Coelho, o Perna-Branca, vivia então em Penafiel, era electricista-auto, não ganhava mal. Luís Tomás vinha ter com ele sábados à tarde, iam ver o jogo dos juniores, merendavam depois na Gracinda Curta. Entretinham depois o tempo no Clube, jogavam a sueca com o preto Sanhá & o amarelo Oliveira. Era pelos anos 80/XX. O Perna-branca não era casado, o Tomás tinha já deixado a Júlia.

113

    As leiras eram muradas a pedra, a mesma com que ergueram & sustiveram a casa. O celeiro, de madeira robusta. Por não frequentar o templo, a família era malquista – mas só até certo ponto, pois assim o decretava a fortuna financeira daquele senhorio. Árvores, milho, gado, moagem.
    Enquanto o senhor respirou, manteve-se una a existência. Filhos & genros foram comendo, fatia a fatia, do bolo herdado. A viúva-senhora morreu amargada. A pedra das leiras foi roubada sem pudor pelos jornaleiros. A casa ainda foi altiva por sessenta anos, evacuada porém como o porco do São Martinho.
    Sou um dos netos: nada me restou. Criou-me uma senhora da Beira Baixa, vaga prima do senhor. Frequentei o quinto-ano da escola comercial. Fiz a tropa em Mafra, alistei-me na GNR, estou reformado há sete anos. Quase não li. Vejo filmes que esqueço antes de irem meios. Não sonho – a médica diz que me não acredita, que toda a gente sonha, como se eu não fosse gente como toda a gente. Não tem importância.
    Tenho uma horta pequena na traseira da casa. Murei-a a tijolo caiado. Também não vou à igreja. Por me não ter casado, não deixarei nem viúva nem amargura. Tenho sempre dois cães. Quando morrem, dão-me novos, dessas que as cadelas parem sem pedir licença ao prior. Há vidas piores, suponho. Quem sabe se não a V.ª mesma.

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Canzoada Assaltante