154. AINDA A MINHA VIDA HOJE
Coimbra, sexta-feira, 28 de Janeiro de 2011
É sem culpa que abordo um final, mais de um dia (a) menos. E é sempre pela primeira vez que amo, quando amo. Já algumas coisas (de)terminei, passo a citar:
- A pessoa é o sul da chuva.
- Já morremos todos, lá onde estivemos e a que não voltaremos.
- Somos sacos de vísceras apertados em cima por um olhar.
Sim. Recebo a maré da noite na praia do peito. Faz-se fria a Hora. Graniza-se areia o Instante. Sinto-me rumor de barcos rumando os Açores, a Madeira. Não estou para brasis. Não angolo nem moçambico. Sou daqui. As fanecas humanas fritam a pobreza: o desemprego, a escassez de referências a Pedro António Correia Garção (Lx., 29.4.1724; Cadeia do Limoeiro, 10.11.1772), a magreza da chuva tão semelhante à dos cães, os casacos também magros dos arrumadores de carros.
*
O marfim do rosto daquela rapariga: mar, fim. Sangrentas unhas de verniz-lacre. Lenço de seda colorida a tosse. Boca em bífido estilete: da fina labiação, dos dentes curvos e nicotinos. Pés por igual finos envoltos em camurça breve.
*
Se eu quiser,
– Não sei ainda a minha vida hoje,
ouço alguém dizer ao telefone. Eu também não.
*
Desata o céu seus nós de chuva. Fria e agreste. No abrigo dO Nosso Café, ao Calhabé, disponho de, para ler em sossego, da Cantata de Dido e Outros Poemas de Correia Garção (selectos, prefaciados e anotados por António Correia de A. Oliveira, Professor do Liceu de D. João III, em Coimbra, para a lisbonense Livraria Clássica Editora em 1943) e de Avieiros, de Alves Redol. Já a noite se consumou, príncipe. Homens (quatro) tremoçam-se e cervejam-se em mesa próxima. Batata-frita-se um adolescente já serôdio em outra. Agora, Redol, que desconfio ter sido bom homem.
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Redol (em Caxias, Novembro de 1967) preambulando Avieiros:
Na verdade, não se recolhem os materiais da vida; vivem-se. Ou inventam-se. Mas escolhem-se as vivências ou as invenções quando um escritor sabe para que vive. E como lhe importa viver.
*
Porfio por um fio.
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E no Zé Carlos do Viaduto uma conversa sobre marcas de bebidas importadas e importantes. Já não chove. O frio é a cerca mandibular em torno-ferro dos corpos. Posso ouvir, sei escrever: nem posso nem sei, porém, viver.
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(…) ainda a minha vida hoje (…)
*
Liga-me o doutor João Saraiva pinto. Alteração da noite de sexta-feira. Ir jantar-conversar-ouvir a Miranda do Corvo. Autocarro das 19h56m, por desvirtude da desabilitação do ramal ferroviário da Lousã, às descustas deste socratismo obsceno que vivemos. Lá irei, estarei e serei.
*
A vida anota velas brandas e pandas.
Há uma pequenina miséria, imanente sempre,
entre a própria e a demais gente.
Não há?
A vida etc.
*
A glicínia parece, consigo mesma,
pétala e nome de menina.
Já a gardénia é mor senhora,
duquesa de lavoura e outra coisa.
A poesia é uma floricultura.
Jacintodàgua-se à fartazana.
Certos, cultivam-na por cultura.
Outros, só aos fins-de-semana.
(Mas, por ser sexta, hoje de novo se me ela pretexta.)
1 comentário:
"- A pessoa é o sul da chuva.
- Já morremos todos, lá onde estivemos e a que não voltaremos.
- Somos sacos de vísceras apertados em cima por um olhar."
Eis, portanto, o ouro de que falo quando falo de Daniel Abrunheiro. Para exemplo serve - e sobra!
Espanto, isto é, espanto, isto é, espanto.
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