Coimbra, quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010
I
(para o Joaquim Jorge Carvalho)
Há pelas cercanias da vida que levo um arrumador com cara de pássaro. Junta as moedas do dia, ao entardenoitecer compra heroína, injecta-se numa casa abandonada ao pé do estádio municipal. Junta as moedas do estacionamento para comprar veneno e mete-o no corpo de pássaro que é o dele e só dele. Eu também habito o veneno do subúrbio. Não gasto heroína, gasto outras poeiras: a da memória, a da consciência dos versos, a da porra dos versos. Acho-me as mais das vezes prontuário. Não pronto (não ainda), mas prontuário. A ele, chamo-lhe O Pássaro. A mim, nada chamo. Os torsos das mulheres lactificam a ordenha da vida, isto do dia-a-dia entre-noites. Isto não é uma história – como só o meu Amigo Quim parece saber –, mas uma espécie têxtil de desnudamento. Os irmãos de cada um habitam a suburbanidade das famílias: os filhos deles crescendo e espraiando-se como buganvílias (chama-se a isto famílias) e/ou jacarandás (dormir sem sonhos é que é paz). Não é suficiente juntar uma morgadinha dos canaviais às pupilas do senhor reitor para formar uma família inglesa, o padre Amaro que o diga sem amor nem perdição. O Pássaro engrola o sangue de pó, fuma naftalina, os dias passam por ele em adequado voo. As mulheres singram pandas como velas – que bolinas são meninas. À falta de história (de enredo, Quim, digamos), acaba-se-nos o ano, a chuva atira-nos uma jaula de arames, os ainda-vivos pensam cozidos-à-portuguesa e euromilhões e Ferreira de Castro à volta pelo mundo em 1942 à maneira do hipismo inglês matador de raposas – e O Pássaro deriva com perícia entre ópeixecorsas & fiatezunos: como um príncipe: ou como um verso.
II
(para o Manuel Barata)
A tosse convulsa e o raquitismo acompanham
a série infanto-juvenil de eras diferentes.
Ter quarenta anos é ter quarenta que se apanham
só por ter nascido, vivido entre gentes.
Que estranha é Leiria! Que estranha, a Braga!
Um coração é brasa que s’acinza, se apaga
entre avós de madeira que fritam filhós
entre octogenários d’azeite d’avós!
Eu não acrescento nada, eu nunca escrevi.
E eu nunca vivo, que, nado, morri.
Mas digo aqui a quem quer que me ouça
que, em Castelo Branco, o rumor da louça
é igual na forma, na cor, na tília,
às saudades que tenho da minha família.
III
(para o João Portulez)
O rapaz chega-se à beira do rio onde pisam
as solhas, os rapazes são assim nesta – nessa –
idade, pisam as solhas – e nem pensam
que a vida se passa – eles nem pensam.
Sentem, porém. Porém, sentem. Sentem a qualidade
morena dos paternais quadrados maxilares que mastigam
um pão de quilo, a maternal fritura da banha
que até a útero cheirou. Um dia, sabes,
perde-se tudo – e eu faço quadras de fim-
-de-ano.
É onde estou, sempre estive, como tu
aliás, desejo bom-fim-d’ano, aleluia, rapaz!
IV
(para o Rui Correia)
Ele acontece onomasticamente
porque tudo quão pessoa é gente para ele.
Ele agora é pai, sente-se diferente,
que quanta é gente é pessoa p’ra ele.
Ele desce da gente, Rua do Pinhal.
Ele tem arremedos do sítio-Portugal.
Ele tem dissonâncias, mas o tom é da filha,
que quanto se anda em dobro se trilha.
E o gosto que tenho, é môr de família.
Caldas da Rainha, higiene, Cecília.
É sabê-lo bem, posto em memória
que um dia ter ele sido estudante de História
não lhe tira fama, nem cama, nem glória
: é ele ter família: famí-Leonor e lia-Cecília.
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