17/12/2008

Écloga Tríptica de Clarisse Nardo Nómada Gentil com Post-Scriptum mais X Sonetos Bárbaros e Felizes

© Sandra Bernardo
Menina em Fuga
31 de Agosto de 2008, Cabanas de Viriato



Pombal e Casa, Souto, dias 8, 9 e 15 de Dezembro de 2008





Quisera adormecer
como a criança acorda.
à beira de outro tempo, que é o nosso.

Só quero o que não posso.

Jorge de Sena, 8/4/1953,
in 40 Anos de Servidão



Écloga Tríptica
de Clarisse Nardo Nómada Gentil


(E o tempo junta-se a si mesmo como água,
chamado pela terra – como a grávida se junta
dentro da criança dentro dela: e o ar enche-se
de bandeiras vermelhas (negras ao longe)
como gritos de pano, como os primeiros
versos recolhidos pela cabeça cada
amanhecer)


I

A criança continua a ocorrer na pessoa consagrada.
Ribeiros escuros fluem-na eclogamente.
A criança é já pastoril para consagrar a solidão
da pessoa.
Revivescências na criança são da futura pessoa
antecipada.
Ela é radial e cêntrica e receptora.
O crime fervilha nela como um vento no cabelo.
Ela remexe a terra, depois cheira as mãos.
Tem clarões de revelação, que esquece para
sobreviver.
Só depois de morrer é pessoa: consagra-se
de escuros ribeiros, escuros fluidos.
E de éclogas escuras se consagra.

Seguem-se luxos e indigências, poeiras do corpo.
A poedeira morte desova clarões coloridos, níveos.
A vida assobia para o lado, plutarquiza-se, cenografa-se.
Ázima, inconsútil, treda e vera: a vida.
Quantas pessoas terão de ter sido para ser uma criança?
A criança é tê-la sido, impossível sê-la e estar vivo
em pessoa, entre prédios e bairros sociais.
E as ideias são os fantasmas dos acontecimentos.

Azula frios o carro de polícia pejado de primatas.
Já a mulher dos tremoços recolhe ao covil,
onde a aguarda e guarda um falo de palha.
A pessoa ao colo da criança trabalha na retrosaria.
A pessoa ao colo da criança trabalha no banco.
A pessoa ao colo da criança dá de beber aos animais.
A pessoa ao colo da criança está toda cagada das pombas.
A tristeza dá o colo à criança coleccionadora
de intervalos de pombas.

A pessoa não continua a criança senão dormindo.
A pessoa dorme a vida sempre que pode
velozmente.
Fulminam granadas azuis: o gelo da polícia
nas empenas dos prédios comunitários, onde
os cigarros de alcatrão e as injecções de mijo.
Cafés congelados no espaço-tempo, tantos,
um a um na múltipla cidadela única.
Dentro, as famílias não simultâneas:
as pessoas e as crianças em ficções paralelas,
simetrias orgânicas que pensam
contrariamente.

Desce ao palco profundo a pensativa pessoa,
que convalesce do nascimento interrupto da infância,
espumosos os cantos da boca de cavalo contribuinte
taxado a anti-histamínicos e a mordeduras de freio.
Ao longo da avenida marítima enregelam
candeeiros e vulvas de aluguer,
entre futuros ressequidos de pretéritos
e demais janelinhas caiadas em torno.
Perde-se a pessoa da criança – e que ganha?
Não alótropos do elemento carbono senão
os do céu estrelado quando é (era) Verão.
Se, por azar, lhe calha em sorte
alguma, como a poesia, arte vegetativa,
a pessoa perde-se de todo de toda a criança
que ainda é por ela a não ser.
Inútil e ocioso, por isso, escrever.

A criança Clarisse Nardo e a pessoa Nómada Gentil
desavêm-se no poço vidente – o sono frio,
entre bosques projectados pela poalha lunar.
E então eu entro em ela.



II

Que teve a criança de hierofanta,
que se sagrou e consagrou e sangrou em ela?
Éclogas escuras disse algum dia
a pastoras entenebrecidas ante
claros ribeiros álgidos lascados a prata?
Entro para reconhecer em Clarisse a criança,
crescida para Nardo, nómada e gentil pastorinha
e moribunda e nascitura na boca
sumarenta e sumaríssima,
em que as orações estalam dentes
e estrelejam cuspos.

Esta é a única criança – e eu mor(r)o nela
para poder envelhecer, para a fria manhã
de duras artérias: o comércio, a extinção,
as revoadas primaveris de pássaros recordados.

Dois pássaros: um único cativado no espelho
da lagoa.

Nenhuma lagoa.

Então, a segunda-feira bate portas e janelas,
a comunidade merca pedaços de animais,
braçadas de legumes, panos molhados de escarlate
e amarelaçafrão, rebuçados de mentol
que acordam no palato ventanias e lavandas,
estepes e estepes de cavalos degolados no talho,
colares de peixes fluviais atados pelos olhos com vime,
frutas apedrejadas à nascença por homens tortos,
casacos pesados como pesadelos,
cadernos de papel-de-seda sem marca-de-água,
bandeiras negras (vermelhas ao perto),
lacres de sinalização das bocas das mulheres,
sapatos minerais de defunto em trânsito,
louças grossas, calendários com mamas,
peças de bicicleta, lápis azuis de celestino bico,
pastéis folhados como livros,
perucas de calva metonímica,
autógrafos de pugilistas caídos
em desuso,
pagelas do Irmão Doutor Sousa Martins,
da Sãozinha da Abrigada, da Alexandrina de Balasar,
da Santa Clara de Assis, da Sofia Kovalewsky,
da Eva Lavallière, do Bernardo do Marvão,
do Alferes Fernando, dos padres Cruz e Américo,
essas pedrarias engastadas no forro católico
das almas que não lêem o corpo.

Eu bato então a segunda-feira sem Clarisse,
é intensa a minha solidão demandadora,
a criança onde?, aonde a criança?,
range-me de frio a ossatura centígrada,
levo de lado a cabeça como um pássaro pintado,
galinho pela vilaldeia como um tonto,
profeta de ontens debruados a ouropel e a fantasia
(os tomates da tua tia,
ó poeta!) ,
e a falecida criança instala a autarquia
vitalícia das mortandades: a casa sem gente
em cujo pátio florescem o mato e o cadáver do gato,
a esquadra de polícia pejada de soldadinhos desconhecidos,
as grávidas que consagram o mundo à Virgem Maria,
as cabeleireiras pintadas de cor-de-chá-velho,
os cadaverosos reinos da santa ignorância,
a palha sobre que voga o coma pensativo da vaca,
a churrasqueira onde cresta a ave,
os cânticos de Natal ladrados electricamente
pelo altifalante da Câmara,
as jaquetas de padrão aos quadrados,
os pescadores de lixo bolinando sarjetas,
a altitude nevada dos adormecidos,
o leite recordado pelo corpo alheio,
os comedores de batatas, os tomadores de infusas,
alvíssaras de pão em gangrenadas gengivas,
salgueiros e madressilvas pendendo para as águas,
um homem chamado Francisco,
um rio chamado Lena,
Francisco Rodrigues Lobo afogado no Tejo
há anos de mais para ser verdade,
a minha amiga Clarisse afogada de idade
ela também,
eu dentro dela sacudindo o pó ao retrato
(e o mato e o cadáver do gato),
a rapariga carteira sorrindo além,
o motorista dizendo adeus ao agente de polícia,
a espadaúda envergadura da tristeza
nos nossos ombros, escombros,
Leiria e Coimbra e Lisboa quatrocentos anos depois,
depois de quê depois de nada,
Clarisse em Odemira Vila Viçosa Miranda do Douro
Alportel Lagos Olho Marinho Óbidos Santarém,
quantos portugais terão de ter sido
para uma criança veloz.

Recordo
(não é um sonho, não é uma revelação):
íamos por um corredor alto, tocavam música
no grande salão, talvez o Opus Ensemble,
talvez alguma brincadeira do Teatro Experimental do Porto,
tínhamo-nos dado as mãos como gavinhas,
vegetávamos na terra-de-ninguém da
finiadolescência,
o sol palhetava de ouro as janelas enormes,
a música era muito boa, engrandecia-nos,
exaltava-nos como um vento no cabelo,
subia-nos as vísceras às constelações,
o retrato de um bispo guardava rebanho nenhum,
era tudo por assim dizer uma écloga,
uma transparência diáfana,
Clarisse e eu éramos buscados pela ourivesaria
da luz, de terças-feiras não labirínticas,

onde nós agora?, aonde nós então?
Cala-se Clarisse e eu não disse.



III

Sossego agora, ante lembradas águas de esquecido rio.
Falece aos poucos a breve tarde, que frio fogo foi.
Nada me dói, sequer a certeza da incerteza, a vida.
Não tremo nem estremeço de cornadas de cio.
Não, nada do que foi me dói.
Cumpro a jornada chegada e partida.

Há nisto uma frutada aceitação.
Palhas milhas, trigas e centeias bulho, campesino.
Em plena cidade, da aldeia o sino
diz badalim, fala de mim, badalão.

Cruzilhados caminhos guardam alminhas,
da morte-de-homem vigia cruzeiro.
De sendas sendeiro, de barros de vinhas,
eu guardo e toco sem pressa e ligeiro.

Quanta beleza no que perdemos!
Quanta prata, quanto ferro!
Não mais prantearei nem deuses nem demos,
que dentro é a pátria – e adentro o desterro.

Famílias, mobílias, buganvílias,
poalha açafrã das bandas da serra.
E mil pastorinhas (Marílias, Adílias)
tocando ovelhinhas à flor da mãe-terra.

Grácil Clarisse, minha meninice,
nascida da tinta da minha caneta,
és grácil e frágil e mais do que disse
o quanto dobraram sino e sineta.

Amanhã como ontem no mais. No mais
o fulgor dos musgos, dos grilos, do Verão.
Um amor à infância, tantos portugais
para marcar no mapa da ’nha condição.

Sossego. Sossego e aceitação.
O claro rio frio aguando facas.
Num campo, as pensativas vacas.
Perto, a silhueta de um cão.

Saúde e pão. Laranjas e vinho.
Fervente o caldo tomado à lareira.
Recordações esbraseadas sozinho,
p’la frente se estende a noite inteira.

O que não posso, quero, como Jorge quis.
O que não quero, posso, não crer é poder.
Gosto de sardinhas e gosto de anis,
também de galinhas e de feliz ser.

Poucas vezes. Certas tardes, antigamente,
o Verão era uma coisa de família.
Depois, nosso Pai deixou-se – e à gente
mais não restou que alguma mobília.

Conto quilómetros, horas, quartas-feiras.
Clarisse adormece em sedas de som.
Não faz tanto frio, à lareira é bom
tomar a infusa, pensar laranjeiras.

Ovelhinhas e cabrinhas, mondegos de arroz
espraiam-me os mortos da nomenclatura.
A torre dá horas, que a noite dispôs
em rosário de contas que são d’amargura.

A feliz tristeza da gente miúda
preenche as lojinhas de múrmuro esperanto.
Uma criança desenha sozinha a um canto.
Nos valha o Doutor, que Deus nos acuda:
e o Demo nos tome sem precisar de ajuda.

Volvem-se longes as pálidas terras,
igrejinhas sem Deus caiam horizontes.
Um pássaro lê a água das fontes
que tremem de frio em sopés de serras.

Anoitece. Um rubro fulgor fulgura aléns.
Recolhe a pobreza ao pardo tugúrio.
Viver é só ter da morte o augúrio,
um caso de ocaso em meio a ninguéns.

Clarisse veríssima em o meu coração
cinge suaves fitas facundas, sagradas.
No Verão era bom tomar limonadas,
esmeraldino sangue de verde limão.

Passam rios, horas passavam.
A dolente criança a um canto esboçava
o retrato da hora por que ela passava,
como tudo passa – por graça, estavam

vivos ’inda meus mortos. Eu desenhava
então, que ora só já canto.
Não cheguei a aprender qualquer esperanto
– só em português tudo me chegava.

Clarisse Nardo Nómada Gentil,
menino e moça da comum infância.
Do ser a ter sido vai grande distância.
Duas almas são uma – e uma é mil.

De quantas crianças precisarei ’inda
para um velho ser esta segunda-feira?
Vista de lado, a aldeia é linda.
É vila, é cidade, é a terra inteira.

Prometo-me resignação e caldos de galinha.
Leio Rodrigues Lobo, Camões, Figueiredo.
Já não tenho idade p’ra ressentir medo.
D’angústia um nada, em vindo a noitinha.

Por fortuna, Clarisse, mais não requeiro
que do peixe a posta enxuta e salgada.
E de dias ainda talvez um milheiro,
sempre são três anos, conta mal contada.

(Dá-me um perdão qualquer, criança minha,
leva-me a ver os barcos que pontuam o mar.
Paga-me refrescos, que a sede é daninha
e eu tenho tempo, infante, p’ra estar.)

Olha!, a carrinha do minimercado
que traz ovos frescos e mil requeijões.
Dois ciganos rondam, ali mesmo ao lado,
caída andorinha junto a dois latões.

Eu queria o meu rio, mas não posso rios.
Queria um mar meu, mas mar algum é
de alguém quem quer que seja, isto são desvarios,
Jacinto, Bernardo, Joaquim, José.

Clarisse Nardo Nómada Gentil,
a doce menina do amargo menino.
Nisto, das profundas lascadas do puro anil,
toa soa dobra redobra um sino.

Belo livro de iluminuras, ter sido.
Não ser um dia, belo livro também.
Elanguesce, líria, a jacinta-de-água Mãe,
no ido presente, no futuro olvido.

Trigueira, milheira, a loura criança
revive o ter-sido no ser-nunca-mais.
De quantos nomes velhos se escreve a distância?
Quantas terras nossas? Quantos portugais?

Riscos de limão, dulcíssimo azedume.
Zimbro e zoeira e xilogravuras.
(Eu escrevo ao frio, que é meu costume
prosar sensatez. O mais são loucuras,
Clarisse, o amor e as nomenclaturas.)

Pára na rua um cão. Velhote, bonito.
Esquerda-direita, decide e parte.
Quem como ele fosse – e ter arte
p’ra decidir e partir e não ser só finito.

Um finito, senhor César! E um torresmo,
que o Inverno vinga lá fora a cobrar
a um velho novo o outono mesmo
da vida que passa – viver é passar.

Ter esta idade é ser um dos esmoleres
de óbolos crus, de liminares untos.
Ao balcão de César, surgem os assuntos:
assaltos a bancos, e bola, e mulheres.

Meia tarde. Que dia é? Que horas são?
Encarnadas fitas desprend’ o coração
em meio à tarde, que tão fria arde.
’ind ’assim sossego, sem mais alarde.

Sossego e me resigno, que me não persigno.
Tenho pouco deus, tirando os santos,
que são cruzilhados e tontos e santos
– e nem todo o santo é santo benigno.

Viver é mandato a mais obrigado
que a vivo estar, que o ser é morrer.
Sai-se à sexta-feira, há vinho, há fado,
que haja azeitonas, em podendo ser.

Nenhuma cidade, nenhuma York, nova ou antiga,
pôde jamais convocar o luso rosmaninho.
Português é ser nascido em pergaminho,
é ser a turva trova, ser em cantiga.

Quer’ eu da nesp’reira celebrar a pepita
que humílima brota em dádiva pura.
Até a abob’rinha usa ser bonita,
subida ao telhado mirando a lonjura.

Fuzila o cevado seus untos maneiros,
refila o galo vermelhos ciúmes.
Grasna a patareca avó aos carneiros
qu’ invadindo a horta devastam legumes.

Do posto e dito, já vês tu, Clarisse,
o quanto uma língua lembra um menino.
E a écloga feita, desfeita meninice,
’ind ’assim não nega, mas cumpre destino.



Post-Scriptum

A noite veio toda de uma vez como certas
chuvas acordam no coração e no pátio
de repente.
Faz muito frio, nem parece coisa de país
com tanto mar à janela.
Entrei ontem numa pizzaria, havia namorados
quatro-estações de caprichosas maneiras.
Era pelo começo da tarde, domingo acontecia
como a onda da praia se embrulha e solta,
contemporânea de si mesma.
Eu tocava o meu gado interior, que não
é conveniente apascentar em fala pública
nem écloga nem vilancete.
Hoje espero outra hora perto da via rápida.
Gosto de ver passar o mudo carbónico:
os camiões grandes como comboios, os
comerciais de dois lugares com um só tripulado,
as motas varejeiras que assobiam vórtices,
os carros da brigada de trânsito bigbrotherizando
os costumes. Gosto.
Esta noite aperto o corpo dentro de escura roupa.
Tenho Rodrigues Lobo em casa – e Camões
e Antero de Figueiredo: não sou assim tão
pobre.

Tudo está ’ind ’em aberto.
Tomei algumas notas sobre a repetição dos futuros:
o expediente das casas comerciais, a menopausa
da mulher dos tremoços, o curvo ar de corvo
batido do advogado dado ao absinto e ao jogo,
a memória refractária da essencial mentira
do amor, a saudade estival (1970), os versos
escritos por gente que conheço do meu lado da
guerra, o último azul do dia (primeiro da
noite), a frauta pastoril e a medieva frecha,
a cientificamente irrecusável esquizofrenia
de toda a criança, a dolorosa paz que desce
com a música à enterocolite da alma,
talvez Doença de Crohn matando Eça em Neuilly,
Ramalho sobrevivendo quinze anos
a seu amigo José Maria,
o meu lápis em foz de tinta, o sertão que
a solidão é, os grandes planos de avenidas novas
que Clarisse já não conheceu, a vida
a olhar-nos canhota como um pássaro
ante uma lagoa que por não correr não é rio,
os amigos de peito feito ao balcão do senhor César,
a Lua tudo lascando argentinamente,
a mente carburando efervescências sinápticas,
os pés muito frios dos velhos nos bancos da avenida
velha, os guarda-chuvas deles nodosos como artroses,
esta virose de viver em diametral oposição às leis
do mercado,
o pastor Bensafrim e Bernardino e Afonso e
Bernardim, estas coisas na cabeça
como semáforos ou faróis ou presenças barqueiras,
os relatos de naufrágios, os crimes passionais,
as lotarias improváveis, a dodecafonia e a caco sua irmã,
quem acode à lembrança dos ilustres mortos de
enciclopédia? (Plutarquizar é preciso, digo eu),
tenho tempo mas este não é o meu tempo,
pena não ser possível dinamitar as centrais de
televisão, pena não ter o meu Pai vivo
para uma chávena de infusa de limão e uma viagem a
1924, quando o Outono lhe criou a mulher
minha original Mãe, Clarisse ela também
à maneira dela.

Agora o meu lápis volta a ser madeira,
que deito ao rio, a cuja margem acodem
Clarisse e um homem já velho na nova
noite: e não, York alguma nos poderá
eclogar senão em portuguesa língua.



X Sonetos Bárbaros e Felizes

I

Acode ao aspérrimo idioma dos solitários
a bárbara sílaba, a rústica sentença.
Fragas e penedias concorrem ao frasear,
que de crocitos vive, onomatopaico.

Derredor, a História segrega conjuras,
repetidoras de fábulas velhíssimas:
a posse de uma mulher, o gume da faca,
o voador couro do cavalo, a ânsia do mar.

De tudo me sobra senão vago vislumbre.
Useiro de baço entendimento, meu pensamento
come o pão muito ázimo dos lerdos.

’ind ’assim sou feliz cada amanhecer,
vaga diária imitação do nascer,
pois nem tudo é morte em quando a não for.



II

Urde tigrismos a mansa da casa gata,
desperta do sono pelo rumor da folha.
Toda a unta o Outono de mansidões
que, não veras, escondem o brusco felino.

Nenhum pardal ousa e usa no varandim
o poiso ligeiro, sequer por instantes.
Fals’ adormecida, a bela pantera
nem mia, se espia da ave o voo calígrafo.

O frio chegando, ao colo subida. Busca e dá
calor à ossatura de quem, a tendo,
dela é tido, vilegiaturando a vida breve.

Se amo na gata a mulher escondida,
é bem que eu amo: nem toda a fêmea
é p’ra toda a vida.



III

Só quero uma sala mínima. Exerço a espera,
preparo a antemão, sou rapidamente feliz,
sumário e circunscrito a meus órgãos,
vitais todos eles como é de cartilha.

Quero-me mínimo em tal sala. Conheço
longamente o rumor dos livros que subjugam
o coração. Que festim de mortos redivivos,
os autores! Quanto novo nascimento!

Imos sentidos emaranham a voz intestina,
alabastrina voz que assombra inglaterras.
Derredor, a chuva orizicultiva.

Só quero esta cadeira, estas cinzas só quero.
Tenho os retratos deles e deles os livros.
Exerço a espera – eu exerço a espera.



IV

Aprecia comigo a brancura das senhoras
que em chita passam qual fosse veludo.
Começa o século, horas voadoras
consomem senhoras e a nós e a tudo.

Vem tu comigo ver de papel os barcos
de giz bolinando na ardósia da foz.
Temos de nos ser antes que de nós
nem madeiras sobrem de esquifes e berços.

Dos altos pintores, pranchas estaleiras
trepam penedias e construções civis.
Da pedra dos ossos não sobram madeiras,
mas são tão formosos os barcos, o giz.

Do que apreciares, não escondas recado,
que a morte é defronte e a vida ao lado.



V

Tenho tempo para um copo, duas frases,
três terças-feiras, quatro anos,
cinco oceanos, seis poemas,
sete saias, oito noites.

Não tenho um milagre, duas orações,
três pés-de-galo, quatro cruzes,
cinco dedos só, seis dilemas,
sete raias, oito mortes.

Tenho um minuto, dois segundos,
três horas, quatro dias,
cinco décadas, seis milénios,

sete sóis não tenho, nem oito luas.
Tudo tenho e tenho nada:
nem comigo conto para vos contar.



VI

Da porta da rua chegou enegrecida do que chovia
a senhora Madalena, que é topógrafa de infelicidades.
Deu as boas-noites, pediu chá e queijo,
espargiu a camilha da saia, tossiu ao de leve.

Fingiu que a não sentia o senhor Adalberto,
que é marceneiro e viúvo de há muito.
Em aberto segredo muito a ama e deseja,
mas sorte nenhuma, que ela é de respeito.

É bom cá o queijo e o chá bem perfuma
as áridas tardes nossas dominicais.
Senhores e senhoras do lado da chuva

acodem ao sítio, melhor entre os mais.
Eu bebo o meu porto, mordo o meu biscoito,
mas sem sete sóis, nem luas por oito.



VII

Escadaria central de grande hotel, muitos veludos,
levita para baixo Madame de L’Amertume.
A rói dentro tristeza, tristeza e ciúme.
No bar, o dela barão engata miúdos.

Quarteto de cordas emana madeiras,
serve Bastião travessas de chá.
Há dois ou três chulos, idem bebedeiras
e versos de Eliot e de Antonio Macha-

do. Madame L’Amère amarga grunhidos,
evita o marido que se baroneia
e pede ao barman uma dose e meia

de rija genebra em copos compridos.
É cena comum, comum e não rara:
chega ela ao barão, genebra-lhe a cara.



VIII

A dolicocefalia ainda estas bandas não atacou.
Um cancro que outro, é muito normal.
Aqui nos regemos por lei de Portugal,
é triste mas é quanto nos calhou.

Hirsutas queixadas e larguezas de ombros
masculam os bares de tinto paleio.
Sorteios de cegos e casas em escombros
são lusíadas coisas no mundo, que é feio.

Ou então não é, feio não é nada,
o mundo nascido connosco ao nascer.
Às vezes há merda, ele há bargalhada
por causa de um troco ou de uma mulher.

O resto é moral, é uso vezeiro
ser triste por dentro, por fora ligeiro.



IX

Não queira a aranha de gelo constelada
invernar-me a saída na tarde acabada,
não queira. Mereço algum, digo, respeito,
que a tudo dou cara e a tudo dou peito.

Tenho tristeza de açúcares. Padeço, inclusivamente,
do triste pensar mesmo que entristece a gente.
Aos fins-de-semana costumo acoitar
’ma melancolia toda crepuscular.

De resto, o meu Styron e o meu Brandão
ajudam e conjuram o meu coração.
Meu Rodrigues Lobo e meu Soares dos Passos
irmanam rimanços com os meus bagaços.

De resto, o rosto: e tudo é tão simples,
que quero um café e um balão de Dimples.



X

Estas sílabas te trago hoje, outras não posso
nem possuo. Disto fiz – ou desfiz – a vida minha,
que a ela, afinal e final, pertenço,
segundo penso.

Estas às vezes rimas, Clarisse, suponho
tiradas do pensar, assim como num sonho.
A branda tristeza é napoleónica:
uma mão na barriga, que é mole e é crónica.

Não nas leves a mal, Clarisse, às rimas,
recursos são elas das horas mais primas.

(Noitinhas adentro, coração de semeio,
lindo é Portugal, país que, de feio,
tem queixadas hirsutas e trinta mil putas
e marados conhaques que me são cicutas.)

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Canzoada Assaltante