© John Singer Sargent - A Street in Venice (1882)
Casa, Souto, noite de domingo, 7 de Dezembro de 2008
Dá para comprar um maço de tabaco,
dá para dar uma volta enquanto
a bomba não cai, dá para quase tudo,
quase nada.
Uma rua de comércio às trevas da noite de domingo
(em Arraiolos, digamos)
é quanto basta para ligar
o Canadá ao Alaska,
digamos que
o Canadá ao Alaska.
O bater do coração e a temperatura do corpo
é o que se ouve passando à janela
de um lar televisor, as pessoas
apagadas lá dentro.
Não tem mal.
Também não tem mal que a bomba
arranje sempre maneira de cair,
chama-se noite.
E o mal e o bem e a televisão e a temperatura
enformam também a bomba portátil.
Digo estas coisas com toda a seriedade,
até porque tenho para o tabaco,
em princípio dá para ter mais noites.
Isto é um sapato, isto é uma ponte,
isto é uma via rápida, isto é uma vida rápida,
crustáceo não é bivalve, cegonha não é narceja.
As palavras organizam as coisas, um dia
(se calhar de noite) a pessoa nem é precisa.
O infinito é na cabeça, via rápida também.
Deu para comprar um maço de tabaco,
deu para na volta frigir rins com pimenta
em banha de porco, azeite e vinho branco,
dá para uma ou duas chávenas de café
caseiro. Espírito de corpo, espírito de
missão. Tudo muito fácil.
Supor pelas ruas de Arraiolos os viandantes
de, digamos, Singapura. A vela acesa
no imo de cada um, ele há cada uma.
Se chove, cada pessoa a bater as asas pessoais,
estralhaçando a calma e o frio, removendo
as pedras com as garras espessas.
A pessoa infinita no imo da cabeça, frialdades
e degelos concorrendo-lhe ao coração,
à condição jugular, a roupa posta a secar.
Antigamente, os bacalhaus chegavam de barco
como heróis escalados, os aviadores também,
o povo juntava-se muito alegrete e assaz pobrete.
O que acontecia antes do presente era
a História.
Isto não faz mal, está-feito-está-feito.
Se nos encontrássemos, irrigaríamos ambos
alguma coisa, drenaríamos talvez um
canal de comunicação, um bufete de cantores,
uma convenção de dentistas, um sínodo de periquitos,
nada nos faria mal, recorrência enformadora aliás
de uma períscia perissológica.
Mas não nos encontramos: em Arraiolos como em,
digamos,
Banguecoque – vive-se de sombras priscas mui dadas
à soledade e à temperatura das asas.
Que uma indiferença nos suba, qual seiva,
a dar flor e fruto, não tem mal,
enquanto haja para tabaco e para café.
Isto é a ponte sobre a via rápida, centenas
de carros por minuto, cada carro cada pessoa,
se chovesse muito e muito e mais
muito, poderia cada pessoa vislumbrar
corvos de seda a uma contraluz de prata,
guardas e guardas e guarda-chuvas,
não hoje, mas suponhamos que hoje,
rebentada a bomba da noite a frio,
quase no Alaska ou, digamos, em
Montalegre.
Estas coisas particulares na cabeça
perante a indiferença geral.
As Nossas Senhoras Heterónimas do catolicismo
previnem muito mas remedeiam nada,
pelo que há que seguir em frente
para dentro.
Fulminam, cerrando-se, taipais de rulotes de bifanas,
acabou há muito o jogo no estádio,
holofotes cegam-se a si mesmos
como ciclopes municipais.
Da costa do castelo (mental – digamos:
Almourol mental) chega ao coração
o perfume frio das árvores arrefecidas,
crisálidas de gelo, estrelas de gelo,
enquanto a maravilha reconforta
de nada ter importância nenhuma,
para além do momento em que cada pessoa é
tudo para si mesma, não tem mal.
Podendo, inventariar muito, o possível.
Como no anúncio esvoaçando lixo ao vento,
garantir uma divulgação eficaz dos serviços prestados.
(E dentro do coração a condição fito-fármaca,
a exegese hortofrutícola e a total disponibilidade.)
Que no momento do toque a quiralgia
não sobrevenha, a soledade seja fulgurante,
a pessoa sozinha com seu fantasma portátil.
Galgar em íncola linguagem qualquer rio bárbaro,
frechar de ideografias o silêncio mais polar
(o de Arraiolos, o do Alaska),
ter os pés numa ínsua chapinhada de tangerinas,
que alegria.
Abrir na casa fechada o esplendor do lume,
rilhar a gravilha das sílabas, ser lunar
como uma taça de grés cheia de leite.
Dar-me sem ti à gliptognosia e ao léxico náutico,
como qualquer pessoa deverá fazer,
sentindo para tal inclinação,
em Montalegre como no Quebeque.
Meio maço de cigarros já lá vai, dormem pessoas já
em suas refrigérias criptas matridemoniais,
umas menos, outras mais.
Ajudar o fantasma a brilhantes tiptologias, mas
de preferência em não acordados sonhos.
Romper o papel de parede só com a verruma da voz.
Serenidade. Mais léxico, mais serenidade.
Cordura e artes náuticas para domínio terrestre
mais afivelado.
Falanstério unipessoal – a cabeça que avança
dentro, sitiada a cidade original do coração
de dejectos, versos priscos e riscos perversos.
Tudo isto embora dentro, não anoitecer de todo,
crer que a manhã vem aí a lavar louçanias
e vitrais e sarabatanas e cães magérrimos
e cegonhas e narcejas.
Não, mal algum e nenhum bem.
Uma velha dama elanguescendo entre majólicas,
cheia de cólicas, na malária da velhice:
chama-se Sara, Liliana, Bess, Tess ou Alice,
sozinha como um cão que nem cadela se sabe:
megera outrora, agora egéria.
Imaginar isto tudo: recebido ao lume e
escrito às escuras.
(Sem ti ao lume, às escuras sem ti.)
Estas coisas acontecem com toda a calma na cabeça,
como o outono acontece no ano a que termina,
regaço dado à invernia, nunca longe de um rio.
Se há rio ou não em Arraiolos, não o saberemos,
que o há muitos no Alaska e no Canadá,
pessoas é que nem tanto e cada vez menos.
4 comentários:
Há uns anos os poemas eram caganitas de cabra, hoje parece terem-se libertado e ganhado a alforria do tamanho de que eles mesmos precisam. Isto para dizer que gosto de poemas extensos e deste também.
Gosto da imagem das caganitas de cabra.
O que escrevo, corresponde perfeitamente a essas reticências caprinas.
Teremos então que dividir o pasto em muitas "sortes" para que calhem três caganitas em cada uma :)
Reticências caprinas... Et voilà comment on peut prêter un air savant au discours. "fait qui sait".
A parte em francês não é fiável.Estou destreinado.
Abraço
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