Henriette Horatia Maria Feilding, circa 1845
Pombal, 19 a 23 de Dezembro de 2008
AS NOSSAS MÃES GASTAM-SE TANTO
As nossas mães gastam-se tanto quanto as vossas.
Não o sabem elas? Sabem. Nós, que não, fingimos.
São as santas da noite, madalenas marchetando,
mosqueadas, matizadas de frios azuis nigérrimos.
Céus e infernos não revolvem, invernos sim, e terra apenas.
Batem as ruas como cães cólumes.
Não chegam nunca a despir-se de verdade.
Nascem já ferradas de calçado, fechadas de roupa.
A um canto, cantam.
Nascem já tão antigas, que o canto trepa por elas
como se a chuva subisse delas.
Passamos a vida a ensiná-las a ler
o que elas escreveram além de nós.
Além de nós,
cegos.
Nisto do passarmos a vida, dão-se
as despaisagens e os despovoamentos.
DESPAISAGENS E DESPOVOAMENTOS
O último azul falece menos e menos alto por alturas do castelo.
Derradeiras pombas de contraluz coruscam carvão recolhendo ao ocaso não por acaso.
Dei de comer aos animais e deitei-me cedo.
Sonhei com militares muito novos agredindo mulheres.
De noite levantei-me e bebi refrigerante de uma lata verde.
Tenho só estas mãos para o futuro.
Só duas mas tantas, por outro lado.
O nascimento do dia é de uma luz de verniz.
Pugnam as trevas em vão: a luz re-estabelece a ordem.
Encastoadas nas mães verdes, as laranjas olham de olhos de ouro.
Isto é lindo, isto é verdadeiro.
Penso as casas.
Vou devagar pela berma da minha vida.
Vou ali ao café e já venho, lembro-me do feijão verde em casa, estabeleço um caldo delicado (todas as letras de caldo em delicado), duas batatas de pele vermelha, uma cenoura dura, duas cebolas choronas, cinco dentes de alho mental, calda de tomate pelado, cara de porcum salgado, azeite rico.
Recebo no peito o sol muito largo, à varanda.
E a tarde abre-se-me como um país sem gente, sem deus, sem remissão, sem futuro.
A noite, esse deserto de veludo.
Boa para ter frio, para entrar no frio, para ter alguma coisa.
Das laranjeiras, os olhos de ouro fecham-se.
Dá-se a primeira geada, pátina de rendas maravilhosas: as hortas, os despojos das obras, os abandonos verbais: rendas álgidas, puríssimas.
Gosto de ver onde as pessoas viveram.
As pessoas do mundo são todas anteriores.
Não voltarão nem se revoltarão.
Isto agora vai ser assim.
Muros de pedra sobre pedra carreiram o olhar: vales, prados, hortos, hotéis ardidos de frio, incêndios de gelo: tudo bases aéreas da palavra voadora.
Até dos filhos-da-puta tenho saudades.
Isto assim é como ninguém
(nem os músicos)
ter vindo ao baile.
E no entanto a vida é orquestrável.
Há sempre arranjos a fazer.
A passarada é melódica, há harmonia nos quartos ambulatórios da vaca.
Se apesar de tudo a automediocridade não cegar,
é possível amar um pouco.
Amar?
Sim,
amar
de um rio a obstinação atlântica
(a morte na foz, mas atlântica e pacífica),
a feminilidade úbere das balzaquianas lidas
em fólios mal traduzidos da I República,
a povoação insensata de cada coração dado
a biologias e a necrologias e a poesias e a termometrias,
um lírio esmagado de luz contra um céu
também branco,
a roupa que os idos continuam a vestir
sem corpo,
os sapatos que os partidos seguem calçando
sem pés
(e luvas e mãos, e chapéus e cabeças),
a grande possibilidade respiratória
do verso certo na vida incerta,
o esquilo, a lebre, a raposa, o corvo,
esses deuses primevos e derradeiros
visíveis de olhos fechados num sonho,
a lubricidade inteligente dos trocadilhos
ensarilhados a sós no banho,
o banho propriamente dito
(por esculpir na vertical, e a vapor,
o último corpo da nossa vida),
a antonionobreza do luar dando salgueiros
e espelhos de prata a almas de toucador,
a raulbrandura do mar a cores
través a melancolia a preto-e-branco,
a ruibeleza das muitas mortes de deus
durante a única vida do homem único,
a cesarioverdura ortossilabando
o gás das estrelas às ruas descido,
a rodrigueslobotomia das fontes
dos rios e da cabeça,
amar
estas coisas,
sim,
com o último corpo.
Despovoado, último, único corpo
na despaisagem,
Mãe.
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