25/03/2008

Um Rio Amado por Ti



Um Rio Amado por Ti
Texto: Viseu, manhã e tarde de 25 de Março de 2008
Fotografia: Coimbra, manhã de 20 de Fevereiro de 2008


Não digo sempre mas às vezes poderias amar-me
como se ama um rio e eu seria o rio e não me tocaria
o Tempo de morrer na areia como um peixe como
uma árvore que no rio reflecte e pondera a vocação de céu
que as árvores usam sempre não digo sempre mas poderias
deixar-te fluir nas minhas águas sem outras margens
que as de vidro o palavroso vidro que me passeia à flor
de morrer sempre um pouco mais a vinte de fevereiro
ao longo da cidade que perdi como se perde um verso
para ganhar o quê uma gaivota fluvial uma fluvial andorinha
um monte de lixo um carro abandonado um comboio escuro
uma palavra dita numa cozinha quando o meu corpo era
de menino e não chegava à torneira mas para tudo chegava
não hoje não agora dou por mim a tossir à sombra das igrejas
e não sou um rio mas um ínvio almegue um vão corredor
sentado entre bolos e velhas em pastelarias seculares
atento ao fraseado do mundo aos trapos de cor enforcados
em arames de janelas húmidos olhos escuros das casas
da cidade estoutra cidade onde pulso lagrimetas de exilado
até os cães públicos falam outra língua entre muros
de diversa natureza são as pedras deste promontório
que todos os dias volto a subir com uns míseros cêntimos
no bolso do lado do coração com um jornal entre o peito
e a camisola interior por causa do muito frio que faz
o muito frio que me consubstancia poses estatuárias
à beira de uma fonte à beira da rodoviária à porta da cervejaria
longe de ti como longe de um poema por escrever
o fundo poema que há tantos anos persigo e me escapa
cada vez que bordo de sombra o rio da minha cidade
na outra ponta do comboio que não vou apanhar
não hoje vinte e cinco de março nem amanhã
ando no meu pensamento como se andasse de comboio
pelas escotilhas do barco de ferro alongo o saudado rio
assim me amasses tu como quem pensa com os olhos
e não precisa do coração para confirmar as águas as horas
as infinitas manhãs que de tarde recordo vestido de noite
todos os poros sitiados pelo frio que tudo torna de ferro
os passos pelas muitas cidades perdidas que me dei
enquanto tu não podias amar gente que como eu fala só
cosida com as empenas das casas amarelas no azul do mar
esse caído céu a que vai suicidar-se o rio oleoso de Tempo
nenhum açúcar deixou alguma vez de acabar sal
assim as palavras todas que de cuspo imitam rios
na minha boca demora o travo fumado do horizonte
de repente é estio mas continua a estar frio
há perto deste papel um cedro que a Lua bebe de noite
numa solução de prata silhuetada por imparáveis gatos
esses tigres pobres da Lusitânia de ao pé da porta
dentro dos bares as raparigas vigoram como velas
os homens mais velhos compram cigarros
junto ao urinol oxidou de desemprego a máquina de preservativos
eu penso num rio em como seria ser um rio amado por ti
longe desta gente igual a mim que se te não iguala
longes branqueados de aldeias no veludo dos montes
fumos níveos esfarrapando os olhos de gaze rostos no céu
cortinas todas cagadas das moscas transparecendo velhas
senhoras que esperam o mensageiro da final côngrua
estou aqui há uma eternidade mas não me demoro
espero o teu amor mas pode não ser por mim nem por
aquilo em que me tornei ao cabo de tantos versos
arrancados às ruas à força de olhar tanto tão cegamente
o dia virá talvez em que o rio suba as amuradas
e nos toque as mãos como um velho conhecido da escola
quando dentro de nós começaram fermentando os livros
suas invencíveis insídias suas prolongadas mentiras
sigo ao longo da avenida do rio não tarda chegarei
e depois alguém que venha por amor levar o menino
tocado pelo Tempo dentro de ti meu outro nome.

1 comentário:

ao saber dos dias disse...

Um poema aos peixes entre os quais me incluo.

Canzoada Assaltante