31/03/2008

Humana, Ribeira Gente de Avenida


Humana, Ribeira Gente de Avenida
Viseu, tarde de 29 (I a IX),
tarde de 30 (X a XVIII) e
manhã de 31 de Março de 2008 (XIX)


para o Zé Antunes Ribeiro,
homem que é e ribeiro também,
por me ter iluminado a tarde de sábado,
29



quando um só sítio se encontra
ao fim de todas as ruas e de todos os rios

Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates


I

Desconheço o essencial da vida
desconheço até que a vida
não é nem tem essencial.

II

A partir das duas da manhã
podemos todos ser poetas
no bar que não encerra
como a vida.

III

Tenho muita pena
mas enlouqueço
como toda a gente
viva.

IV

Andamos infelizmente
todos ao mesmo
mas não à mesma
felizmente.

V

Não acredito em deus não acredito em ti não acredito em mim.
No diabo nas avenidas e nos ribeiros sim.

VI

Um idiota da televisão que acaba de publicar um livro
é entrevistado na televisão por um idiota colega dele
que por esta altura já deve a pensar em publicar
um livro também.
Esta maralha é ao contrário dos almeidas:
em vez de levarem o lixo da rua, trazem-no-lo
para dentro de casa.

VII

Um único amigo tenho que trabalha no mar
nós não embarcámos nós só ficamos
condenados à terra que nem a chuva quer
o vento cantor do sol dos grandes gelos
o presidente da república é que tem dinheiro
para ser se o quisesse marinheiro
temos retratos de barcos nas paredes
escotilhamos à janela a maré de prédios e prédios e prédios
prende-nos o coração a âncora do tédio
acedemos a trocar de mulher que nos troque
por um marinheiro um verdadeiro
os nossos filhos caranguejam de plástico pelos shoppings
já nem quinze dias de praia por ano podemos dar-lhes-nos
somos os que ficámos sem litoral
literalmente somos terráqueos
bocejamos como gatos arrotamos quais batráquios
o mais que podemos é jogar nas hortas o chinquilho
em marmitas de plástico o bolo de bacalhau o arroz de tomate
os cus das nossas mulheres porosos de casca de laranja
as nossas olheiras fumadas pelo carrascão
com que em vez de rum acalentamos o coração
em vez de rum em vez de rumo
não marítimo nem polar é o nosso azimute
aos domingos de manhã botamos cerveja no vermute
falamos do guimarães-marítimo
e tudo se nos volve um descomunal etc.
vale-nos a arte da calçada portuguesa
algumas desenham as ondas do mar
tão bem feitas que nos molha os pés essa maresia de pedra
a que de bom grado daríamos a vida e o dia
as moscas pousam nas enciclopédias ilegíveis da sala
os naperons amarelecem como ovos
nos psychés há tranças de avós mortas
só no mar toda a ânsia toda a serenidade
isto aqui é só cidade
nem pátria juntas somam as cidades da terra
uma pátria porque valesse a pena morrer a pena viver
como o capitão homem ribeiro não fazemos ideia
quem foi o grande morto à esquina como uma mulher da vida
da vida que levamos sabemos que nos leva
nada mais nos é dado saber dela excepto
que não é essencial como no-la vendem
nos bancos dos hospitais nos bancos do débito nos bancos do jardim
nas tardes de sábado comemos amendoins ao quilo
à noite os cus tornam-se-nos oleodutos
arroz massa batata feijão são-nos os mais comuns condutos
vale que as rosas ainda nos espantam
a feminis crianças maduras as cotejamos na madrugada
quando saímos atrelados ao cão pelo silêncio anil
as rosas que brotam como cifras de deus
telegramas últimos da beleza da terra
a terra que pensando bem até amamos
a terra de que somos em que nos volveremos
como avós de psyché como capitães da grande guerra
e no fim da vida sabemos quão mal amámos
quão mal amámos tudo as mulheres os homens a terra
quão mal amámos em nome do mar que é a terra
onde trabalha o meu amigo joão henriques
não nós os que ficámos em terra
capitães nem da grande guerra afinal
resta-nos ainda talvez amar as pedras
que nos calçam de maresia os pés
as pedras que às montanhas sobem para ser catedrais
de nenhum outro deus que elas mesmas
guaritas de lobos açulados pelo vento mais níveo
o vento que do mar lhes chega como uma cortina
os lobos enfunados pela conivência das montanhas com os céus
os lobos que não passeamos à trela entre rosas
na madrugada urbana e anil da nossa condição
pedonal e tristonha e ainda assim humana
amendoins e bolos de bacalhau aos fins-de-semana
na nossa cama as nossas mulheres sonhando marinheiros
que não fomos nem somos nem vamos ser
não nesta vida apeada nossa inessencial vida nossa
quieto fotograma não enviado cabograma
ainda se ao futuro entregássemos as qualidades do passado
como quem dá as chaves de um quarto a um sem-abrigo
como quem dá água a um cão pão a uma pomba
ainda se tivéssemos sido felizes amanhã
magoados de alegria entre canteiros e cedros
o coração furioso de contentamento
aceitando a lua como um negativo benigno do sol
e a terra como o que o mar nos deixou
em memória dele.

VIII

Já por outros varais se estendeu a tua roupa
mas eu amo a tua nudez.

IX

Um bosque é beethoven por dentro
é um coração que pensa gravemente
pelos fagotes dos pinheiros
agudamente pelo cristal dos pássaros
muss es sein es muss sein!

X

Tenho sonhos tão pobres
que acordo com a cama cheia de moedas.
Dão-mas os anjos do sono.

XI

Um louco da rua diz
O domingo não é nosso.

XII

Ai os sistemas as grécias o meu amigo jacinto
a quem se não minto
pertencem as cidades e as serras e
as favas com chouriço.
Estou no domingo
tenho lido alguma coisita
estou à espera
que telefonem aos meus
a dizer
Olha
foi-se embora
o domingo não era dele
nem as cidades nem as ruas
.

Favas contadas.

XIII

Chego tarde a casa saio cedo
elas estão a dormir
deixo um pouco de pão na mesa da cozinha
amo-as como um fantasma
decentíssimo e
panificador.

XIV

São-nos as mãos estrelas
do mar em terra.
Somos organismos tão
delicados quão
relojoarias.
Merendamos entre amigos
nas tardes frias.
Somos de terra passamos a vida
a pensar no mar.

XV

Mudou o dia
não o nosso amor
Mãe
Pai.

XVI

Serei para ti o moreno rapaz das colheitas
ourejando o outono nas parras nos trigos
por essas eiras arrastaremos as carnações
prometidas a casamento o mais virginal
só de júlio dinis livros te deixarei ler
e aos domingos a teu pai ofertarei cálices de moscatel
que tu és virgem, maria,
e eu, daniel.

XVII

Sinto perto a tua morte
como minha.
Tenho
Mãe
experiência comprovada
aceito referências.

XVIII

Delicada jarra japonesa
com flores de pergaminho
é a minha pele
na vossa
na tua.

XIX

Quão tempo teremos ainda até o fim da avenida
quão de facto grande é a nossa grande guerra
somos homens somos ribeiros somos da terra
despojos dados hoje à praia do passado
apeados marinheiros à babugem dos dias
um pouco assustados na noite é certo
transidos de frio nas pastelarias aquecidas
entre velhas comedoras de farinhas cozidas
hei-de ganhar o pão com a água da minha boca
o meu verbo far-se-á carne
gosto de alguns aspectos da tristeza é certo
é por exemplo muito bonito saber que outros olhos
reescreverão estes mesmos versos em particulares corações
gente que também foi à grande guerra da avenida
e é humana e é ribeira toda a vida.

1 comentário:

José Antunes Ribeiro disse...

Caro Daniel,

Que posso eu fazer?! Um grande abraço e...até sempre!
Zé Ribeiro

Canzoada Assaltante