Desenho: © Miguel Ruibal, Hombre Escribiendo en un Bar
(www.miguelruibal.blogspot.com, com autorização do Autor)
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A NOITE EM BREVE
ou
CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS
(uma portugalidade delével)
ou
CORUSCAÇÕES NO IMO DE SOMBRAS
(uma portugalidade delével)
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Caramulo, manhã de 25 de Agosto de 2007
De golpe, a vigília. A hora juvenil do sábado acorda o homem estatelado no colchão. O quarto é amplo, a janela desvela o mundo possível. Iça-se o homem de sua caverna, vai à cozinha, espreme um limão para um copo de água, vai à varanda e saúda o dia com esse champanhe lavador. É a última semana de Agosto. Um frigir de pássaros cantores crepita pelo marulho ventoso do arvoredo. O vale espraia os legos: casas que resistem à usura involuntária das vidas.
Num jornal, o óbito do Murça, que foi jogador do Porto e do Belenenses. Meses depois do Bento do Benfica, foi-se o Murça. Noutro jornal, menos suicídios portugueses em 2005 do que em 2002. É a manhã de um sábado mais.
Uma manhã mais para não perder de todo na rede virtual. Continuo o homem, que sai de casa para comprar o jornal. Na pastelaria, café e água mineral. Derredor, sol e vento, ambos frescos. Encomenda no minimercado de frango assado para o almoço. Planos sossegados de trabalho para a tarde: poesia, rádio, John le Carré, café. Sobretudo, não permitir que o Bem e o Mal surjam como únicas alternativas. A dicotomia limita e esteriliza as possibilidades da consciência agente. Agir para conhecer, agir para partilhar. O homem vai agir.
Enquanto não, o jornal traz fotografias e uma turis-(publi, enfim )reportagem sobre o Caramulo. A Lady Di volta à ribalta (dez anos sobre a morte da “santa” frívola em Paris). Folheio o periódico como o outono faz às árvores. Já bocejo um pouco – o homem boceja. Lenta, a ulterioridade da atenção vai retirando do baralho as suas cartas particulares para jogar à vermelhinha com a solidão. Isto interessa o homem: construção e reparação são simultâneas. Percepção e recepção, também. Escrita e pensamento, também. E não – não são dicotomias. São outra coisa: essa “outra coisa” é ulterior e atenciosa. Também é ubíqua, no ser (ter sido, a-ser).
A manhã vai entregando o testemunho. Segue-se a suspensão existencial do almoço (esquartejar a ave, romper o pão, sangrar o tomate, assimilar a água). Depois, o país da tarde: moratório, brancamarelo, eterno. Depois, a outra eternidade: a noite. Entre as duas eternidades, o entardenoitecer: em luz palácio-conventual, a nave riscada pelas aves que circulam espirais de progressivo silêncio. Também, então, passagem dos bebedores de sábado à noite. Seus sapatos, seus automóveis obsoletos, suas obsoletas pulsões sexuais, seu precário labor de adultos tóxicos na infância mentirosa do álcool. Ainda não nada disto.
Enquanto, a mulher, ao lado, lê Simenon (um Maigret de 1964). Vento dourador de castanheiros, ao outro lado. Suspensão de cristais no ar-água da montanha. Um motociclista zumbidor na efémera tela-janela da pastelaria: capacete preto, veículo verde, camisa branca. Pois, já pulsa o palavreado. Já se realinham, de novo, as formigas. Traspassam o homem, flechas incorpóreas, imateriais relatoras relatadoras de si mesmas. Tocam nervos, abrem a boca. As palavrosas formigas estão muito contentes. Nada lhes resiste, nada pode resistir a tais veteranas das pragas bíblicas, gafanhatadoras do interior deserto populoso: coruscações no imo de sombras. Busca o homem alinhar seus dias e suas noites em uma concordata protectora. Para tal, e para tanto, tem apenas de emprestar-lhes o seu corpo de modo a que elas se tornem corpo – em linhas (frases, versos, formigas). Incisões brancas: os parágrafos.
Recordo pelo homem uma noite de chuva passada com dois cães dentro de uma barraca de madeira. Passou um quarto de século. Agora, não passou. É outra vez a chuva na folha de zinco que telhava a barraca. Havia um sofá escuro, três ou quatro cobertores. Havia uma garrafa-termos cheia de café quente. Havia comida para os animais: estava disposta sobre uma folha de jornal, no chão de madeira. Tinta em pó dormia em frascos redondos de louça azul-escura. Almanaques e revistas espíritas eram diagonais na única prateleira do aposento único. A chuva guardava esses três seres do Passado. Vejo-os olhando-se, agradados e guardados pela quarta companhia: a da chuva nocturna. Havia um rádio, mas o homem não o ligou. Os cães eram-lhe todo a música de que precisava. Eles comeram, vieram lamber-lhe a mão esquerda, deitaram-se na ponta do sofá. O homem pousou o caderno na prateleira espírita, envolveu-se nos cobertores, teve tempo para reconhecer a durabilidade daquela chuva, daquela noite, daquela casa, daqueles cães.
Caramulo, manhã de 25 de Agosto de 2007
De golpe, a vigília. A hora juvenil do sábado acorda o homem estatelado no colchão. O quarto é amplo, a janela desvela o mundo possível. Iça-se o homem de sua caverna, vai à cozinha, espreme um limão para um copo de água, vai à varanda e saúda o dia com esse champanhe lavador. É a última semana de Agosto. Um frigir de pássaros cantores crepita pelo marulho ventoso do arvoredo. O vale espraia os legos: casas que resistem à usura involuntária das vidas.
Num jornal, o óbito do Murça, que foi jogador do Porto e do Belenenses. Meses depois do Bento do Benfica, foi-se o Murça. Noutro jornal, menos suicídios portugueses em 2005 do que em 2002. É a manhã de um sábado mais.
Uma manhã mais para não perder de todo na rede virtual. Continuo o homem, que sai de casa para comprar o jornal. Na pastelaria, café e água mineral. Derredor, sol e vento, ambos frescos. Encomenda no minimercado de frango assado para o almoço. Planos sossegados de trabalho para a tarde: poesia, rádio, John le Carré, café. Sobretudo, não permitir que o Bem e o Mal surjam como únicas alternativas. A dicotomia limita e esteriliza as possibilidades da consciência agente. Agir para conhecer, agir para partilhar. O homem vai agir.
Enquanto não, o jornal traz fotografias e uma turis-(publi, enfim )reportagem sobre o Caramulo. A Lady Di volta à ribalta (dez anos sobre a morte da “santa” frívola em Paris). Folheio o periódico como o outono faz às árvores. Já bocejo um pouco – o homem boceja. Lenta, a ulterioridade da atenção vai retirando do baralho as suas cartas particulares para jogar à vermelhinha com a solidão. Isto interessa o homem: construção e reparação são simultâneas. Percepção e recepção, também. Escrita e pensamento, também. E não – não são dicotomias. São outra coisa: essa “outra coisa” é ulterior e atenciosa. Também é ubíqua, no ser (ter sido, a-ser).
A manhã vai entregando o testemunho. Segue-se a suspensão existencial do almoço (esquartejar a ave, romper o pão, sangrar o tomate, assimilar a água). Depois, o país da tarde: moratório, brancamarelo, eterno. Depois, a outra eternidade: a noite. Entre as duas eternidades, o entardenoitecer: em luz palácio-conventual, a nave riscada pelas aves que circulam espirais de progressivo silêncio. Também, então, passagem dos bebedores de sábado à noite. Seus sapatos, seus automóveis obsoletos, suas obsoletas pulsões sexuais, seu precário labor de adultos tóxicos na infância mentirosa do álcool. Ainda não nada disto.
Enquanto, a mulher, ao lado, lê Simenon (um Maigret de 1964). Vento dourador de castanheiros, ao outro lado. Suspensão de cristais no ar-água da montanha. Um motociclista zumbidor na efémera tela-janela da pastelaria: capacete preto, veículo verde, camisa branca. Pois, já pulsa o palavreado. Já se realinham, de novo, as formigas. Traspassam o homem, flechas incorpóreas, imateriais relatoras relatadoras de si mesmas. Tocam nervos, abrem a boca. As palavrosas formigas estão muito contentes. Nada lhes resiste, nada pode resistir a tais veteranas das pragas bíblicas, gafanhatadoras do interior deserto populoso: coruscações no imo de sombras. Busca o homem alinhar seus dias e suas noites em uma concordata protectora. Para tal, e para tanto, tem apenas de emprestar-lhes o seu corpo de modo a que elas se tornem corpo – em linhas (frases, versos, formigas). Incisões brancas: os parágrafos.
Recordo pelo homem uma noite de chuva passada com dois cães dentro de uma barraca de madeira. Passou um quarto de século. Agora, não passou. É outra vez a chuva na folha de zinco que telhava a barraca. Havia um sofá escuro, três ou quatro cobertores. Havia uma garrafa-termos cheia de café quente. Havia comida para os animais: estava disposta sobre uma folha de jornal, no chão de madeira. Tinta em pó dormia em frascos redondos de louça azul-escura. Almanaques e revistas espíritas eram diagonais na única prateleira do aposento único. A chuva guardava esses três seres do Passado. Vejo-os olhando-se, agradados e guardados pela quarta companhia: a da chuva nocturna. Havia um rádio, mas o homem não o ligou. Os cães eram-lhe todo a música de que precisava. Eles comeram, vieram lamber-lhe a mão esquerda, deitaram-se na ponta do sofá. O homem pousou o caderno na prateleira espírita, envolveu-se nos cobertores, teve tempo para reconhecer a durabilidade daquela chuva, daquela noite, daquela casa, daqueles cães.
3 comentários:
cqeuuaÈ bom ler Simenon. Leva-nos sempre a compreender as motivações do crime.
Fosse Maigret um homem de carne e osso e um dia iria "au quais d'Orfévres" para beber uma imperial com ele. Ou ir à cental radio da polícia e comer um naco de morcela com o operador "Janvier".
Abraço, Daniel.
Manel: lê um livro terrível terrível terrível - Memórias Íntimas desse grande escritor Georges Simenon. Há tradução portuguesa na Livros do Brasil. Não me esqueço daquelas páginas, juro. Mas é terrível, já aviso.
bonjour les amis, d'accord avec daniel, Simenon nao era um homem fàcil de perceber, acho-o detestàvel, desculpe manuel, quem nao ia tomar o que quer que fosse com o Siménon, era eu, e qualquer mulher devia pensar duas vezes antes de o fazer, era um tipo limite...nao sou amante de livros policiais, putas policias e mulheres bem comportadas em casa a fzerem boeuf bourguignon ...à espera do marido inspector, hum, aquela maneira terrivel, o daniel encontrou a palavra...terrible,de apontar les faiblesses, les aigrures de l'homme et les fustrations du couple bourgeois, dans un province ou pas, où les riches sont tous puants et sans scrupules, les pauvres veulent devenir riches et puants, donc impunes, c'est sombre et sans une ombre d'espoir, névroses and cie!
Acredito naquela disciplina de escrita, certes, acho que ele soube canalizar um a hyper energia que tinha prà literatura, o que teria sido se nao fosse?
Desculpem là, mas a vida desse senhor tem coisas terriveis...
beijos de Paris, de cadela nao policial, policiada..? jà me chatearam às vezes a cabeça...
LM
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