0
Quase toda a tarde vagueei em casa por entre caixas e sacos plenos de papéis velhos. Retirei de um envelope as cartas de F.D., duas vezes morta: ficou em coma vegetativo em Maio de 1986, morreu exausta e exaurida em Outubro de 1997. Tivemos correspondência. Éramos crianças amigas. Tínhamos dezanove anos, vinte, vinte e um. Foi até onde ela fez contas.
A última carta dela é do Natal de 1985. Em casa, sentei-me num banco, a caligrafia dela nos joelhos, ela outra vez viva e contando. Na minha casa, num Verão que termina, outro mais, sem ela.
Escrevo-lhe agora. Respondo-lhe esta tarde, este anoitecer, quando entrou o segundo terço de Setembro. Faço-o para que seja verdade o que me escreveu ela uma vez:
Daniel:
Someday
Somehow
I’ll be there.
Someday
Somehow
I’ll be there.
1
Vê
é esta a pastelaria
a que venho com
os mortos
da
minha vida.
É
uma pastelaria igual
a todas as pastelarias
inauguradas nos anos
sem ti.
Sou
um homem igual
a todos os homens
nas pastelarias contando
corvos.
Tu
já
viste.
2
Os ouvintes de música estão sentados em bancos
com cartas nos joelhos.
A música ilude-os com doçura:
fá-los pensar
que têm a idade da chegada das cartas
que são os mesmos que foram
quando
de pé
recebiam cartas.
Estão de joelhos na noite
ninguém lhes escreve
mas continuam
a ouvir a música.
3
É terrível
a ira do Senhor
que não existe.
Só a ira
existe.
4
O primeiro ano em que li Camus foi 1980.
Ia ao dentista, sentava-me à espera, lia A Peste.
Eu era muito novo, os meus dentes eram já velhos.
A felicidade era um cartão com doze quadrados no verso.
O meu Pai dava-me moedas para eu pagar cada mês.
A minha Mãe acompanhava-me ao dentista.
Via-me a ler Camus e considerava-me garantido no futuro.
Tinha razão.
Cá estou no futuro.
5
Vê.
6
Setembro é um bom mês para o amadurecimento da tristeza.
O amor cai ao chão nos pomares amarelos.
Picotados de osteoporose, os velhos vibram como candeeiros a azeite.
As crianças fazem de andorinhas outonais.
O pensamento sai das pessoas e anda pelas ruas procurando os mortos.
As pessoas ficam em casa e nas pastelarias sem pensamento.
Setembro é uma das doutrinas legíveis no ouro.
A madurez da tristeza dá fruto no olhar.
As pessoas encostam as barrigas às ourivesarias.
Esquecem depressa a fervura do mar, não a da infância.
O trigo da tristeza doutrina de ouro a visão.
Dentro das casas, as pessoas esperam a volta do pensamento, esse
pomar amarelo que junca de folhas de cartas
o chão das pastelarias.
7
Fazemos do coração uma casa-museu
e fechamos à segunda-feira
todos os dias.
8
Ouço música sentado num banco
com palavras nos joelhos.
A Lua da tarde
arquitecta a janela do quarto.
Crianças riem-se além-janelas.
Não estão vivas.
9
Encontrou-as
o pensamento.
10
Em uma das duas últimas noites de Outubro de 1986,
tomei duas chávenas de café no Café Vianna, em Braga,
depois de conseguir chegar a uma mesa sem pisar padres.
Já então eu tinha começado a entristecer a gasóleo:
bastava-me acordar, esperar meio minuto – e a coisa
pegava logo ao apagar das luzes.
Tudo era então, apesar de tudo, possível.
Assim olharei sempre o passado:
como um dos entãos do futuro:
como a morte,
como tomar outro café.
11
Outras vezes
saem as pessoas de casa
fica o pensamento
sozinho em casa
olhando dos olhos dos retratos
a casa vazia.
12
Fingimos não esperar a ceifeira
sabendo-nos trigo.
13
Em água metemos os pés
para nos tornarmos diagonais
como flores
comedoras de terra
bebedoras de luz.
Outubro não tarda aqui
vai tornar-se pedra a água
sabemo-lo bem
nós os vivos
em casa
sentados num banco
os pés pisando
folhas de cartas outonais
como mortas andorinhas.
14
Como relojoeiros
envelhecemos a horas certas.
O atraso vem da mocidade vitalícia
das cartas arquivadas.
15
Vê
é esta a ourivesaria
onde trabalho.
Muitos bolos.
Um relógio.
16
Belos são os rostratos
que a tristeza tomou
como a uma bebida triste.
Posters tridimensionais
do plano mundo
tais rostos olham
dias que não vivemos.
Olhamo-los na noite.
Eles olham dias.
O sol arquitecta a manhã de lápis branco
na mão transparente.
Das faces orocaligráficas tossem cal
as casas pobres.
Cabras e gatos sulcam a vegetação
irremediável.
A Lua instaura a tarde.
Sentamo-nos num banco
tremem-nos os joelhos
como luz de azeite.
Eles olham noites
Vê
é esta a pastelaria
a que venho com
os mortos
da
minha vida.
É
uma pastelaria igual
a todas as pastelarias
inauguradas nos anos
sem ti.
Sou
um homem igual
a todos os homens
nas pastelarias contando
corvos.
Tu
já
viste.
2
Os ouvintes de música estão sentados em bancos
com cartas nos joelhos.
A música ilude-os com doçura:
fá-los pensar
que têm a idade da chegada das cartas
que são os mesmos que foram
quando
de pé
recebiam cartas.
Estão de joelhos na noite
ninguém lhes escreve
mas continuam
a ouvir a música.
3
É terrível
a ira do Senhor
que não existe.
Só a ira
existe.
4
O primeiro ano em que li Camus foi 1980.
Ia ao dentista, sentava-me à espera, lia A Peste.
Eu era muito novo, os meus dentes eram já velhos.
A felicidade era um cartão com doze quadrados no verso.
O meu Pai dava-me moedas para eu pagar cada mês.
A minha Mãe acompanhava-me ao dentista.
Via-me a ler Camus e considerava-me garantido no futuro.
Tinha razão.
Cá estou no futuro.
5
Vê.
6
Setembro é um bom mês para o amadurecimento da tristeza.
O amor cai ao chão nos pomares amarelos.
Picotados de osteoporose, os velhos vibram como candeeiros a azeite.
As crianças fazem de andorinhas outonais.
O pensamento sai das pessoas e anda pelas ruas procurando os mortos.
As pessoas ficam em casa e nas pastelarias sem pensamento.
Setembro é uma das doutrinas legíveis no ouro.
A madurez da tristeza dá fruto no olhar.
As pessoas encostam as barrigas às ourivesarias.
Esquecem depressa a fervura do mar, não a da infância.
O trigo da tristeza doutrina de ouro a visão.
Dentro das casas, as pessoas esperam a volta do pensamento, esse
pomar amarelo que junca de folhas de cartas
o chão das pastelarias.
7
Fazemos do coração uma casa-museu
e fechamos à segunda-feira
todos os dias.
8
Ouço música sentado num banco
com palavras nos joelhos.
A Lua da tarde
arquitecta a janela do quarto.
Crianças riem-se além-janelas.
Não estão vivas.
9
Encontrou-as
o pensamento.
10
Em uma das duas últimas noites de Outubro de 1986,
tomei duas chávenas de café no Café Vianna, em Braga,
depois de conseguir chegar a uma mesa sem pisar padres.
Já então eu tinha começado a entristecer a gasóleo:
bastava-me acordar, esperar meio minuto – e a coisa
pegava logo ao apagar das luzes.
Tudo era então, apesar de tudo, possível.
Assim olharei sempre o passado:
como um dos entãos do futuro:
como a morte,
como tomar outro café.
11
Outras vezes
saem as pessoas de casa
fica o pensamento
sozinho em casa
olhando dos olhos dos retratos
a casa vazia.
12
Fingimos não esperar a ceifeira
sabendo-nos trigo.
13
Em água metemos os pés
para nos tornarmos diagonais
como flores
comedoras de terra
bebedoras de luz.
Outubro não tarda aqui
vai tornar-se pedra a água
sabemo-lo bem
nós os vivos
em casa
sentados num banco
os pés pisando
folhas de cartas outonais
como mortas andorinhas.
14
Como relojoeiros
envelhecemos a horas certas.
O atraso vem da mocidade vitalícia
das cartas arquivadas.
15
Vê
é esta a ourivesaria
onde trabalho.
Muitos bolos.
Um relógio.
16
Belos são os rostratos
que a tristeza tomou
como a uma bebida triste.
Posters tridimensionais
do plano mundo
tais rostos olham
dias que não vivemos.
Olhamo-los na noite.
Eles olham dias.
O sol arquitecta a manhã de lápis branco
na mão transparente.
Das faces orocaligráficas tossem cal
as casas pobres.
Cabras e gatos sulcam a vegetação
irremediável.
A Lua instaura a tarde.
Sentamo-nos num banco
tremem-nos os joelhos
como luz de azeite.
Eles olham noites
e noites.
17
O tempo anda para trás no pensamento
quando o corpo não está em casa
excepto em retratos na sala.
18
Vê
agora
aquele azul adormecendo como uma ferida antiga
é o papel-de-prata-lunar para que à Lua
apontem as árvores enegrecidas.
Vê
é quando
o homem da pastelaria recolhe o caderno
por ter merecido a noite que Setembro
catequiza de borla.
Tu não vês
mas a máquina de viver purifica o sangue
derramado.
É muito importante
estar vivo
ter uma janela
não ouvir as crianças brancas
na luz branca
sitiadora das janelas
dos ouvintes de música.
Não vejas.
Ouve.
19
Não ouças.
20
Mulheres de cabelo de ouro doutrinam Setembro.
Também só morrem em Outubro
nunca nos retratos.
21
Pensam-nos.
Estas crianças que morreram
pensam-nos.
Estamos a viver de cor
sem pensamento
num quarto lunar
cartas nos joelhos
o cu num banco
e as crianças
pensam em nós.
A sala cheia de frascos
de bebidas bebidas.
Música.
22
O ouro na cabeça.
Ela descalçou-se uma vez
na feira popular.
Emergia da noite
como um peixe vertical
ou
uma ambulância.
As pessoas queriam encostar as barrigas
à cabeça dela.
Não podia ser.
Ela já tinha morrido
ela ia morrer.
Maio a Outubro.
1986-1997.
23
Agora vê
como sigo admirando a patriótica resistência
das pastelarias que há
às situações crepusculares
de tinta-da-china
corvos japoneses
e
árvores nacionais.
Admira
por favor
a minha coragem
de corvo sentado.
Aqui se vê.
Vê.
24
Santa Clara-a-Nova
olha do alto
a triste Clara
Santa e Velha
de afogados pés
no Mondego.
Em água
também
metem as claras santas
os pés
para
como nós
diagonais serem.
25
(F.D. morava – vivia – em Santa Clara.)
26
Há instâncias intermediadoras
de pessoas e objectos.
São os retratos.
Eles estão como objectos.
Eles olham como pessoas.
Eles aparecem a horas certas
é sempre segunda-feira
é sempre Setembro
são sempre antes.
Estão no futuro
como sempre.
Vão ao dentista.
Contam corvos.
Outubram como ratos argelinos.
27
As mulheres doutrinam o ouro
dissipam-se nas segundas-feiras
abandonam homens em Braga
morenam verões impossíveis de televisão
aparecem na revista em clarões fotográficos
embebedam-se de chá com japoneses cobridores
e riem-se como crianças
além-janelas.
Estão vivas.
28
Escrevo deitado há tantos anos
que só as árvores me parecem interessantes.
Apontam o outro deitado: esse céu
sindicalizado por estrelas e jactos de
Agência Portuguesa de Revistas
Lisboa-Luanda-Lourenço Marques.
Às vezes
sento-me num quarto
protegido pela parede
dos retratos da sala.
Então
olhas-me
através da janela.
E vês.
29
Amanhã
segunda-feira
o meu coração
uma carta
por abrir.
17
O tempo anda para trás no pensamento
quando o corpo não está em casa
excepto em retratos na sala.
18
Vê
agora
aquele azul adormecendo como uma ferida antiga
é o papel-de-prata-lunar para que à Lua
apontem as árvores enegrecidas.
Vê
é quando
o homem da pastelaria recolhe o caderno
por ter merecido a noite que Setembro
catequiza de borla.
Tu não vês
mas a máquina de viver purifica o sangue
derramado.
É muito importante
estar vivo
ter uma janela
não ouvir as crianças brancas
na luz branca
sitiadora das janelas
dos ouvintes de música.
Não vejas.
Ouve.
19
Não ouças.
20
Mulheres de cabelo de ouro doutrinam Setembro.
Também só morrem em Outubro
nunca nos retratos.
21
Pensam-nos.
Estas crianças que morreram
pensam-nos.
Estamos a viver de cor
sem pensamento
num quarto lunar
cartas nos joelhos
o cu num banco
e as crianças
pensam em nós.
A sala cheia de frascos
de bebidas bebidas.
Música.
22
O ouro na cabeça.
Ela descalçou-se uma vez
na feira popular.
Emergia da noite
como um peixe vertical
ou
uma ambulância.
As pessoas queriam encostar as barrigas
à cabeça dela.
Não podia ser.
Ela já tinha morrido
ela ia morrer.
Maio a Outubro.
1986-1997.
23
Agora vê
como sigo admirando a patriótica resistência
das pastelarias que há
às situações crepusculares
de tinta-da-china
corvos japoneses
e
árvores nacionais.
Admira
por favor
a minha coragem
de corvo sentado.
Aqui se vê.
Vê.
24
Santa Clara-a-Nova
olha do alto
a triste Clara
Santa e Velha
de afogados pés
no Mondego.
Em água
também
metem as claras santas
os pés
para
como nós
diagonais serem.
25
(F.D. morava – vivia – em Santa Clara.)
26
Há instâncias intermediadoras
de pessoas e objectos.
São os retratos.
Eles estão como objectos.
Eles olham como pessoas.
Eles aparecem a horas certas
é sempre segunda-feira
é sempre Setembro
são sempre antes.
Estão no futuro
como sempre.
Vão ao dentista.
Contam corvos.
Outubram como ratos argelinos.
27
As mulheres doutrinam o ouro
dissipam-se nas segundas-feiras
abandonam homens em Braga
morenam verões impossíveis de televisão
aparecem na revista em clarões fotográficos
embebedam-se de chá com japoneses cobridores
e riem-se como crianças
além-janelas.
Estão vivas.
28
Escrevo deitado há tantos anos
que só as árvores me parecem interessantes.
Apontam o outro deitado: esse céu
sindicalizado por estrelas e jactos de
Agência Portuguesa de Revistas
Lisboa-Luanda-Lourenço Marques.
Às vezes
sento-me num quarto
protegido pela parede
dos retratos da sala.
Então
olhas-me
através da janela.
E vês.
29
Amanhã
segunda-feira
o meu coração
uma carta
por abrir.
Caramulo, entardenoitecer de 11 de Setembro de 2007
4 comentários:
Trabalho de/em filigrana.Merece o superlativo belíssimo. Sobretudo o 15.
Só a beleza é eterna.
Abraço e a camaradagem do,
Manuel
Estas "cartas", Manel, saíram-me ontem. O motivo delas não mais me sairá. Éramos jovens, amigos e confidentes.Para não a perder de todo, decidi partilhá-la com pessoas como tu.
Só a beleza é eterna.
E a alma de quem escreve por amor e paixão às letras? Também.
E Setembro é mesmo perfeito para amadurecer a tristeza ...
Boa noite Daniel.
Seja bem-vinda, Alex, que vem bem de gente de bem.
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