1
Na língua estão a infância e a morte.
Ambas nos são estrangeiras nações.
Falamos bem de uma, mal da outra:
ninguém nos entende as orações.
Na luz estão o futuro e a cegueira.
O futuro é um ontem corredor.
A cegueira é uma maneira de dizer.
É glauca a fala do orador.
O amor entre as pessoas ouve mal.
Se bem ouvira, de si mesmo dissera:
sou cego mas ouço a fala severa
da infância da morte, pois sou só mortal.
A língua da morte nos diz da infância
ser primeira morte à inversa distância.
2
Este século é o nosso último, como todos.
A nada nem a ninguém chamamos já primo.
Tudo se nos repete, à boleia dos milénios.
Poucos de nós torcemos dentro uma bandeira nova.
Em procissão flúem os animais da nossa vida e
as nossas vidas. Acumulamos quintais na lembrança
como a mosaicos quebrados de alguma obra em
velha casa. Em departamentos aquecidos temos
o frio que nos vive por dentro como uma herança.
Século número fim da derradeira criança,
ainda temos tempo p’ra um copo e uma dança.
Nas gasólestações, cumpre muita atenção
prestar às bolachas cuja validade
’mas têm, outras não, conforme a idade.
3
Tiro de aqui dentro anéis que nem sabia
deles ser possuído antes de os tirar.
São vincos de luz no pano do dia.
Se os não escrevo, durmo, é mau o sonhar.
De aqui dentro tiro cebolas de prata
e alhos de um ferro mais ferruginoso
que o óxi’ daquilo que nasce e que mata
e que é tão feio quão maravilhoso.
Tudo tiro p’ra fora, que nada me sobre:
nem anéis de ouro, anilhas de cobre.
Riqueza é perder o nunca ganhado,
que lucro se chama ao mais bem roubado.
Na morte demoram a língua, a infância,
qu’assim sonetando se acaba a estância.
Caramulo, tarde de 18 de Setembro de 2007
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