De quando fomos marinheiros não sobra sequer tábua
do sal corroída à flor de óleo em algum embarcadouro.
Fizemo-nos ao mar, desfez-se-nos a embarcação.
A terra voltámos como alunando: assim caminhamos
saltando graves sem gravidade nem poiso certo.
Aos domingos derivamos pela cidade por ruas
sentineladas de jardins como portas fechados.
Hasteia o sol seu glauco pavilhão, não manda a Lua
marés nenhumas mais, não a nós, que fomos
que vamos tudo o que fomos, no imo.
Do remoto mar, nestes agoras de areia enxuta, só
a voz gravada: o vento nas árvores em pelotão
por montes não urbanizados ainda a catrapilo
para efeito de mais dormitórios da vida.
Tácitos parlamentos entrecruzamos em salvaguarda
de nossa pretensa sanidade: na condição sumária
de não mais, nunca mais, ser o mar a ordem do dia.
Fomos todos marinheiros, todos estamos na pastelaria.
Horas em décadas volvemos, de dedinho espetado à ingestão
de copinhos de benzina, entre requentados mármores e zincos
frios. Que o mar não era ânsia de chegar, mas de partir.
Assim se nos volveu: partimo-nos. Juntamos cada
madrugada os cacos, tesouramos os passos do
eterno retorno, zaratustros de astros nenhuns.
É certo: anzola-se-nos ainda em âncora o coração
enterrado nos lodos férteis. Digo: paióis de corais
explodindo em furta-cores como minas-ouriças de luz.
No caldo nutriente (a tristeza), pupilam peixes
triangulares riscados de amarelo e preto e
água profunda como um sonho paterno.
São barcos anónimos os nomes dos anos, moluscos
se lhes alapam ao musgo das faces, uma fervura
escuma essas baías incartografáveis.
Cachimbamos vigias sem farol. Não arde já a rápida
prata do mosaico marinho que ladrilhado foi de
golfinhos e de outras lustrais almas.
Sapatos de napa a catorze euros calçam
nossas mãos do sul, hoje, na pedra borrada
de pombos munícipes, perto de vãos povoados
de cartões frigoríficos dentro de que dormem
homens tóxicos e cãezitos que nunca foram lobos
do mar.
Outros de nós não suspiram já. Evitam até
a bordadura litoral de certas ruas a que o hálito
da água retira pedra do chão e volumetria de casas.
Albergam a oceânica orfandade em associações
recreativas promotoras de marchas populares e de
torneios de sueca. Felizes parecem, quando
terraplanam o que nunca mais podem ser,
não nós.
Nós também não podemos, mas dizemos,
cada um por si, nenhuma coisa a outra coisa que não
seja a duna de prata da noite marinha,
quando fumamos perto de tubarões poliglotas e
mudos.
Muito bom é que não saibam os meninos os marinheiros
que não vamos voltar.
Assistimos, na cidade, aos infantis cardumes
abocando o engodo da felicidade das solidões colectivas.
Temos pena dos meninos feitos de pedra dos montes
julgando-se emplumados lordes de impérios
que são pastelarias.
Quanto onçado tabaco fumámos à tona do mundo,
quanta salgada fibra ingerimos pensando legumes,
quanta aguardente de cana usámos contra o frio,
quanto chá nos ferveu nos ossos a fonte do olhar?
Outrora, muito tudo de tudo isso.
Sermos os vivos custa.
Sermos os da terra custa.
Na cidade, vigiam-nos as estátuas verdes
dos pretéritos a preto-e-branco da História Oficial.
Parques acutilam investidas fálicas.
Barcos de papel imbecilizam fluviais navegações
turísticas.
E nós ressumamos lances ópticos tristes, isso
de os pardais aparecendo como morenas miniaturas
de albatrozes.
Pedra sob o caminhar: visita-nos os pés, das mãos irmãos
do sul, o pensativo coração náutico.
Se não fosse haver tanta gente, tão pouca água.
Se não fosse tanta a colectiva solidão das pastelarias e
dos meninos.
Sabemos pouco em terra.
Não mais um azul diferente de céu oxida
o diferente verde da água tempestiva do mar.
Não mais a viração a bordo agudiza um
salitre de caldo de peixe servido entre névoas
e portos que nunca foram importantes senão à
largada.
Bascos, dinamarqueses, chilenos, portugueses
– tudo apatridava sua mesma condição natal,
ao salitre do desterro.
Vigorava acima o natal perpétuo das constelações,
sob a quilha cortava a geometria descritiva
das lâminas vivas: peixes, afogados, fascículos
da profundeza.
Agora, bolos de sossegada farinha amornam
as imprecisas cinco da tarde.
A televisão pública apresenta toureiros e beldades
evacuadas da terceira dimensão.
Velhotes tossem aposentações fabris.
Senhoras gordas metem pa’ dentro laranjadas
e chocolates.
Do nada que este tudo é, este gosto a terra na boca,
este sal no coração, este vagaroso naufrágio repetido
no cerce infinito de não voltarmos nem do mar
nem ao nós que fomos, entre tábuas boreais, largando
angras em noites de nenhuma semana,
à flor.
Caramulo, tarde de 17 de Setembro de 2007
3 comentários:
Napas, cacos, frigoríficos, tóxicos... alguma vez se ouviu, distintamente, o mar, não foi Daniel? Por alguma razão donde zarpamos se chama Angra. Algum heroísmo existe ainda no regresso à marítima terra. No meu tempo...
All aboard
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Lindezas
"Do remoto mar, nestes agoras de areia enxuta, só a voz gravada"
"Juntamos cada madrugada os cacos, tesouramos os passos do
eterno retorno, zaratustros de astros nenhuns."
"Sapatos de napa a catorze euros calçam nossas mãos do sul, hoje, na pedra borrada de pombos munícipes, perto de vãos povoados de cartões frigoríficos dentro de que dormem homens tóxicos e cãezitos que nunca foram lobos
do mar."
"Do nada que este tudo é, este gosto a terra na boca, este sal no coração, este vagaroso naufrágio repetido no cerce infinito de não voltarmos nem do mar nem ao nós que fomos, entre tábuas boreais, largando angras em noites de nenhuma semana, à flor." - sublime
Daniel, é sublimissississimo!!!!
EStou de acordo com a rc.
Merci.
Abrem-se-me mundos desconhecidos
atravé a sua escrita.
E vou sempre bem acompanhada.
Um abraço de Paris.
LM
Hoje, 18 de Setembro de 2007, falei com a minha filha Teresa. À noite, apresentei Betty Carter e Gaiteiros de Lisboa aos senhores ouvintes. Mandaram-me uma música nova por causa da FD. Está tudo bem. E tenho galinha caseira para o jantar. E vós estais aí: para quem não acredita em Deus, já vi pior.
Merci.
Merci mesmo.
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