I
Aos olhos aflora-me o vinagre arterial de alguma lágrima
ante a evidência coralífera do crepúsculo, à hora
a que as aves se soltam do bosque em uma última
passagem circular pelo sangrento circo do ocaso.
Espraia-se-me uma ânsia respiratória, depois serena,
ante a evidência de muitos de nós voltearem já, como as
aves, em passagem derradeira pela explodida violeta,
p’la roxa campânula de cada apocalipse civil.
A eternidade de cada hoje, vivarquivada na memória
fulminante e fulminada, a tudo considera nada
– e nada é tão importante quão indiferente
ante o amável desamor da Lei que rege casos e ocasos.
II
Enjaula o corpo como a não inocentes animais
as horas más de alguma terça-feira, algum
verão durante que a laranjeira da tristeza
haja dado à luz os frutos de sua sombra doçamarga.
Desce por dentro o olhar a beber da enegrecida água
pelos animais maus servida à contemplação
ante tal obscuro represo licor. Não pode o olhar
senão beber fartamente, longamente beber, represo.
Nenhum corpo é isento de cripta, descido o olhar
à fartura nigeriana da cisterna memorial.
Corredores verticais palpitam a néon a farmácia
imprestável aos dolorosos – todos os corpos.
III
Brisa azul escumando folhas e flores e tabuletas do comércio:
rápida é a formação das crianças eternas em transitórios adultos.
Pelos cantos da casa – e no jardim, em agrestes arbustos – soltam
a escama de serpentes solares até só que osso bruna delas.
Só consigo mesmas voltam a parecer-se quando velhas,
as meninas que, tais bandeiras, o vento da sexuação adejou.
E os meninos, fumando frases moles em bares oblíquos,
comentam a chuva que pelas ruas dança nua ao frio.
Conformam as três paredes da casa o tecto salarial,
divisórias de contraplacado alheiam as velhas crianças
de seus eternos filhos, escumadas serpentes escamadas que, nos
quartos exíguos, insensatamente sonham com arbustos ao sol.
IV
Às paredes da cara afixamos os quadros da expressão,
coruscando os olhos em função de cristaleiro candelabro.
Aos hemisférios violetas da boca uma linha preta
aparta, tal que a dentição garanta a memória lacustre.
Entornadas asas são os braços, alquebradas lanças
atiradas ao malogro do arremesso, cada balanço
anuário do registo comercial. A sul, os pés
incham como lábios tóxicos, bolbos enterrados em napa.
Ao pé dos animais enjaulados, outro deles – o coração – é
o que urra em silêncio, à esmola de mais vinho venoso
e menos memória. Distraídas unhas raspam da pele células tão
mortas quão certas segundas-feiras, antes de certos verões.
V
De carro, a caminho de algures, pode a bruta Natureza
deixar cair um anel que uma lagoa seja – ou um diadema
subido a cristaleira gambiarra de estrelas acesas: ou olhos.
Pode. É sempre então que a analgia adormenta o vivente.
Muita é a beleza não ensinada deste mundo nu. Escusado
é lograr uma indiferença ante essoutra Lei: a que
rege a humanidade estatuária dos penedos brutos
na montanha que mar foi, antes de nós todos.
Iniludível é, ainda, o teor marinho das manhãs ao ente
do mar saudoso. Tanto a tristeza rima com beleza,
tanta uma, outra tanta. E das cercanias da estrada, violetas,
violentas, as bocas da Natureza um só recado dizem.
VI
Podem reunir-nos em categorias bacteriológicas, igrejas,
hábitos de consumo e livros de Verão. Podem casar-nos
e separar-nos, entre vivas, vaias, putos e apupos.
Podem chamar-nos nomes com que não nos escrevemos.
Podem olhar-nos como olham as estátuas de gelo que nos
revelam forma e massa. É até possível que nos filmem
nas ruas natalícias, muito contentes a gastar os cêntimos
do amor em lojas especializadas no amor a cêntimos.
Podem fazer-nos tudo: hospitais, tribunais, escolas,
finanças, creches, cafés, associações, aeroportos,
clubes, tertúlias, feiras, freguesias, pulhices. E nós
demandamos, aindassim, a felicidade numerada das portas.
VII
Cortarás a água com um espada feita de braço.
Farás, da mão, lâmina: e cortarás
enviesadamente, dadas as físicas leis que
regem a Esgrima e a Dinâmica.
O dia chegará quando te tuteie ninguém, ou ninguém
te fale na noite, excepto tu, em sonhos geológicos
mineralizados pelo frio da rua a que caíste.
(Pode ser em tua casa.)
Da poesia, a magia é nada disto recordares
ou recortares, quando, então: pois é tão belo
o esquecimento quão um anel-lagoa,
uma distracção voluntária das estrelas, altamente.
VIII
Eu agora entro para pedir: me não falte o azeite
gasto pelos pobres em seringadoras noites de borda d’água,
quando eram meninos solares meu Pai e os Vossos.
É pedir o não exposto: nenhuma jóia de ourivesaria alguma.
Eu sei. Ainda assim, esse azeite peço porque, passo
a explicar, são escuras as minhas noites não cronológicas,
as verdadeiras – aquelas de desejar azeite no escuro.
E no escuro muito se deseja – tudo, propriamente.
Só a Deus nada peço porque para tal Ginásio não
conheço sapatilhas. Peço mais à lagoa que siga
sendo deitado azeite de estrelas combustíveis, nela e nelas
ardendo a Lua, essa maior prece sem resposta.
IX
Partilha no corpo a escatologia dobre sentido
de porcaria e futuro: merdas áugures.
Cocós e boas intenções jactam dejecções
afinal símiles, como autógrafas cópias mútuas.
Em pastelarias devastadas pelo futuro, cólicas
coléricas e bucoólicas interjeições gaseiam a costura
das gangas sentadas a bever a bola e a veber o licor.
Dos costumes nacionais daremos o ponto.
Agrafa-se-nos a agravada ciência da tristeza.
Sábado já, já noite, estoira a granada fria
da certeza: a gorda vanidade das feiras, poéticas
embora. Isto é: falar da Hora, não falar do Tempo.
X
Frangos e papagaios domésticos franjam a testa marítima
da cidadezinha que de sal faz luz e de luz, sal.
Caminham nórdicos e escoceses em demanda de bares.
Na marina, tainhas abocam quilhas oleosteoporosadas.
É o sal do tempo no relógio da Câmara: ao lado,
o Partido Comunista Português vermelheja sindicalismos;
em baixo, tosse haxixe o arrumador cinquentão.
Estivadores bicepam cervejas degoladas à nascença.
É o sal da minha vida, é a luz da minha vida:
surdas músicas, sórdidas pinturas: megafonam
todas nas praças expostas ao perfil dos barcos:
ao invencível perfil de gazela dos barcos.
XI
A mais branca cal estampa-se a negro de viúvas
à igreja acorrendo a carpir seus operários
defuntos. Depois, breve, tudo passa: esse egipto
e essa hora. O sino tange, vibram os azulejos ao bronze.
Peça a peça, compõe a igreja seus brinquedos:
as pessoas de joelhos, ante as adorações do vinho
e da farinha. Quintais paroquiais à parte,
é uma fé boa, pois que só dói quando é precisa.
Da estratosfera, satélites infotográficos dirão
de massas de cor, povoados, savanas, árcticas
coisas de como nos juntamos para matarmos
e nos matarmos. E a branco ardermos mortos, à cal.
Caramulo, entardenoitecer de 15 de Setembro de 2007
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