I. Nós a Esta Luz
Esta luz é Portugal.
Cubo de ar esfarelado a ouro e a rápidas palhetas
verdes traspassadas de branco.
O ar, de uma brandura chamada bonomia, respira
por nós, dá-nos o dia.
Massas arbóreas, de si mesmas suspensas como
rotundos animais aéreos, alastram pelo tecido
a contracéu.
Um pouco de atenção basta para recepção
da furiosa alegria deste festival.
Sim, esta luz é Portugal.
Creio que sejamos irrisórios,
macaqueadores até dos antropos apátridas
que se nos anteciparam e nos sucederão.
Mas entretanto luz e ar são esta vidraria
– e nosso vai sendo o dia.
Levanto-me muito cedo por esta razão patriótica.
A criança transparente da alba – de ali – vem
incensando, maga, ouros e mirras.
A oriente, o primeiro laranjal sanguíneo
incendeia o frio. O desfechado cutelo da montanha
talha em iguais respirações a neve do lugar
e o lugar do lume.
Sou por vezes tão feliz,
que receio cegar de olhos abertos.
A um flanco sustento a rémora
da solidão,
manhã muito cedo,
no meu País.
A doçura adensa-se: pergaminha-se
como o arbusto do anis
no ar açucarado.
Entra então o outro país: a tarde.
É uma nação muito mais difícil.
É a pátria dos desesperos miligramáticos,
dos pânicos portáteis à flor dos rios secos,
das praias desavindas com o mar.
Tenho algumas tardes que comprovam
quanto vos digo.
Mas mais logo, sei, um instante há
em que a tarde se acinza das primeiras pratas
da noite, igualando-se à alba em eternidade
e vidro.
Volto a ser feliz em tal meu País.
E então, final e primeira, a noite
incha de ventos geológicos para nos devolver
as aves pintoras: as palavras mais negras,
sob a Lua e as estelares gambiarras
que todas as nações já foram e tornam a ser,
excepto enquanto
nós.
II. Nós sem Sombra
Na cama nos deitamos ao mar.
Luminosos como peixes vogamos.
De nossos corpos civis nos debandam as sombras.
Sozinhas regressam às ruas anoitecidas.
Os nossos passos do dia, repetem elas.
Como nós, falam elas sombriamente
com quem ao dia falámos – ou não.
Longas pelo chão, invertebradas, são-nos
mais verdadeiramente do que fomos
no dia. Enquanto dormimos no mar,
aterram elas as mulheres despertas
à insónia das janelas, que abriram
para receber a argentinaria lunar.
Sofremos no mar da desarmada inocência
amniótica dos fetos nadadores sem mestre.
Enquanto sofremos, vogam-nos as sombras
armadas vielas aguçadas pela repetição.
As sombras que nos contrapontuaram de dia
suportam mal a beleza de que capazes
tenhamos porventura sido. Debandam-nos
para na noite nos repetirem do lado
do horror. Babujam elas colas mortíferas
pelo rodapé dos estabelecimentos,
confrontam guardas-nocturnos com a solidão
duplicada. Fiodassedam-se todas, as sombras
que fomos, descasuladas crisálidas descoroçoadas,
filmando da Lua o perpétuo
lado obscuro, como se sonharam.
Nossos cegos manequins regelados
debandam de nós, trocando o frio delas
por nós, que sentimos nas correntes
dos sonhos do mar, sobre o fundo leito.
Enquanto sonhamos a morte genital da Mãe,
pulsam elas borrões perfeitos pelo papel
das ruas e dos cadernos dos homens
que escrevem em pastelarias longe do mar.
Outras sombras fumam a Lua: nuvens
traspassando do alto astro sozinho
o coração das insones mulheres à janela,
temerosas tanto de tão lustral, e corredora,
passerelle de sombras sem homens.
Chiam gonzos e cancelas ao toque
do vento silvicultor, marulha o rio
espumas de estéril lactação. Não o rio
mas o mar nos recebe, dormindo em
sonhos sem outra sombra que nossas
inocências fundamentais. Nesse arizona
marinho, ao sol ósseo que bebe dos
cactos a última humidade da terra,
temos sede de acordar, acudindo-nos
a desolada lucidez de não o fazermos
enquanto nos não voltarem elas, as sombras,
sendo manhã, tal que, de novo, sombrios
nos resultem o dia, a assombração,
a insónia janelar do mulherio
e quem com que falamos – ou não.
III. Nós Apeadeiros
Não me sucede agora já tanto,
agora que sou meu terminal apeadeiro
mas em menino sucedia
bastava desejar a ferrovia
e partia.
Gostava das janelas dos comboios
de sua rápida exposição de fotografias
a ínsua de molhadas laranjeiras
volvendo-se silo de rações
passando a casas por acabar de fazer
as varizes das guardas-linhas
traçando hemomapas a gatos e a filhos
cujas sobrevivências eram mortes e vidas
como aliás são chegadas todas as partidas.
Nisto se me resumem comboio e fado:
só queria a ferrovia de ter partido
não esta de ter chegado.
Palavras:
Caramulo,
manhã (I)
e tarde (II e III)
de 19 de Setembro de 2007.
Foto:
Caramulo,
manhã
de 6 de Julho de 2007
3 comentários:
Daniel, há palavras cheias de Luz:)
E é luminoso procurá-las, Alex
Se precisares empresto-te uma lanterninha daquelas que há agora que não precisa de pilha. Só não páres é de procurar ó espeleólogo filatélico dum camandro.
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