10/09/2007

Corvos na Árvore Japonesa

Dois corvos no cimo da árvore japonesa.
O sol já nasceu: uma dedada de sangue a ouro.
Todo o vale é leito de oceano: as nuvens caíram.
Todo o vale juncado de casas naufragadas.

Ao longe, a outra montanha deitada: como
uma mulher saciada.
A manhã revela películas de frio manchadas
de corvos.

Estou à varanda como uma menina envelhecida,
fumo como um carroceiro, tenho o olhar
nos corvos que subiram a árvore japonesa.

Apesar da vida, nasço outra vez: contabilista
de corvos.

A beleza bate-me uma tábua no peito.

Convalesço para morrer em perfeito estado
de saúde.

Uma hora, o mar levanta-se do vale.
Os corvos atiram-se a devorar os peixes,
as pessoas. Depois, pousam nas chaminés.

Muito branco, o sol arde ao gás dos milénios.

No parque, labaredas frias devoram as árvores:
as sombras.

Estou na rotunda da vila como um sinaleiro de bronze.
O vento levanta-me a um muro negro.
A outra montanha ergue-se: é um tornado de pedra.

A tarde: clarão angariador de cegos,
de corvos.

Bebedoras de luz sufocam na doçura insuportável
da não terna idade:
as plantas.

Pedras caminham dominós na montanha
de aqui.

A doçura atira-me uma pedra ao peito.

Desço ao mar alto do pico da montanha japonesa.
Crocito cerâmicas quebradas: fragmentos
de versos.
Gasto o coração engastado: onde batem
a tábua, a pedra.

Outra hora: estende a noite seu pano negro
como o muro.
A noite imita os corvos:
a noite imita a árvore japonesa:
a noite é negra contra tudo o que quis,
a sangue e a ouro,
nascer.

Outro mar sobe do vale, barcarolando as casas
natatórias um pouco, náufragas logo.

Estou na pastelaria desertada.
Estou sozinho dentro da cabeça.
Digo:

Jasmim

trazem-me licor.

A vida toda excede nascimento e morte.
Dois corvos no pico da árvore japonesa
conversam versos quebrados, fragmentárias
cerâmicas cozidas pelo sol, arrefecidas pela noite,
trazidas pelo vale aos pés do carroceiro,
aos pés da envelhecida menina.



Caramulo,
manhã e entardenoitecer
de 9 de Setembro de 2007

5 comentários:

Manuel da Mata disse...

Presente.
Abraço,
Manuel

LM,paris disse...

olà daniel,
bonjour, ontem dois corvos em plena cidade de Paris, com avenida e carros, pessoas a atravessarem a rua, dois corvos, brincavam, ou batiam-se por causa de um bocado de pao, que um deles trazia no bico.Uma das grandes asas bateu-me no braço, assustei-me!
Depois pousaram no topo de uma cabine telefonica em vidro.
Incrivel!
Nao têm medo de nada aqueles passaros.O seu poema é um filme,
basta seguir as suas imagens interiores.
Vou tentar fazer um desenho...
um beijinho e paris, com frio, corvos e arvores japonesas jà sem flores.
Lindo poema daniel, lindo.
LM, paris.
" A beleza bate-me uma tabua no peito "

Patrícia João disse...

Fabulástico. Incrível como nunca deixa de surpreender. Genial. Brilhante.
Daniel, permita-me a pergunta. Depois de "O preço da chuva" e "licor, sabão e sapatos" para quando um novo livro? Certamente já terá pensado nisso...
Parabéns!

Paula Raposo disse...

Um poema completo...beijos.

Daniel Abrunheiro disse...

PC:
sem ser por aqui, é difícil publicar a poesia.

Tenho umas prosas prontas a publicar. A ver o que/como dá. Mas agradeço a pergunta, desde já.

Canzoada Assaltante