26/04/2013

RIO-FLÚX - 10

Leiria, sobre o Lis, 21 de Abril de 2013




10

Leiria, 24/IV/2013, quarta-feira

COLÍRIO

I

Voltaram as jornadas quentes. Dizer jornadas é dizer fornadas. Por quanto é vista, dá-se da flora a pujança, a furiosa alegria da cor ao ar. Tudo propicia o quase entendimento do para-quê de se ter nascido. A terra bebe quanta água pode, retribuindo em alimento e oxigénio. Os animais aderem à contracena da contraluz povoando o fresco das sombras, saciados de açúcar solar. Isto da vida: esta orquestra que ela é em fervor. Bailo devagar a seu compasso. Isto é: respiro com os gestos. A harmonia é legível. E o de Leiria é o mais bonito dos castelos de Portugal, peço perdão mas é. Quando a casa voltarmos, o meu Irmão Fernando e eu hemos de avançar beira-Lis. Pais jovens com suas crias juvenis veremos que auferem o licor etéreo do pré-Verão. Como feridas boas e brancas, nuvens suspendem o azul muito puro. Há toda e mais alguma razões para crer, seja no que for, sem recorrer à esperança. A esperança é a usança da espera – a evitar, portanto. Mais tarde, quando o crepúsculo tomar todos e cada um (um por um, sem falha nem remissão), a hora será de esvaimento – como é de lei & Natura.

II

Recordo certo instante vespertino, voltava eu de Aveiro ou de Oliveira de Azeméis, não estou certo de onde já.
Viajava sozinho no meu carro.
(Sim, já tive um carro.)
Dei por mim ante um vale maravilhoso.
O Sol parecia subi-lo.
A vegetação era viva de animais minuciosos.
Detive a marcha, suspenso de tanta maravilha.
Recordo isso agora, não sei por nem para quê, enquanto com o Fernando espero que o chamem para a consulta de Oftalmologia.

III

Cavaleiros frúem a fresca álea a manso trote.
Os alazões são de uma nobreza maviosa.
Em V, duas encostas da serra dão-se em decote.
Uma fonte canta cristal sem que se note
tristeza ou euforia nas voltas dadas ao mote.
Respirar é uma arte deliciosa.

Vamos rumo a oeste tecendo loas
à bolina da brisa que, zéfira, é favónia.
Ver com a mente faz bem à cachimónia.
Aquela é Albertina, a outra é Lurdes; vão c’Antónia
beber chá frio e comer as doces broas.

Compressa de bons campos, a velha Cidade
parece remoçar-se, ladina qual pardal.
Deriva-se por ela em andor de Portugal.
O passo é leve e lento em liberdade.

Sou por vezes agraciado de sonhos cuja simplicidade
chega a ser movente, comovente – e tocante.
Ontem sonhei, veja-se cá, com bacalhau.

Despertei sorrisonho, o que não é nada mau.
Refrescado, de atavio aprumado, dei-me levante

e fui à Rita, que serve a melhor bica da Cidade.

IV

Às imagens do mundo acresce o vidente.
O nada não é a ausência das coisas mas
a do sujeito.
Não é, ainda não, o nosso caso, valha-nos isso.

À orla litoral uma quase-alegria do corpo.
O iodo penetra as frinchas do estar-em-ser.
Se feminil figura lacra a luz o passeio marítimo,
então o caso é mirar com educada discrição
a gino-estesia patente andante adiante.

Regueifada de boas chichas, Maria Eduarda
adentra-me, lípida & boazonamente, o campo visual.
Foi ninfeta outrora. É ora matrona.
E, como disse, boazona.

Puxa-me entretanto a obrigação para casa.
Espécie de doce fadiga me torna seda a pestana.
Hoje, francamente, nem vou com o grão-na-asa,
tenho-me portado bem toda a semana.

V

Lacrimeja colírio a arrependida,
beija em delírio seu saudoso.
Foi escolha dela, o ter esta vida.
Regressa ao futuro o passado danoso.

É de mamas moles e palavras duras.
Não é má pessoa, a vida é-lhe avessa.
Enfuna o decote, assim tipo condessa.
Mas chora no escuro ’mas mil amarguras.

Chama-se Yvette, o que não ajuda.
Tem quatro afilhadas, mas co’ elas não fala.
Vive mais na cozinha, sem visitas na sala.

Namorou-se em tempos de um sargento casado
que nunca a estimou e a cobriu apressado.
Amanhã vai para um lar. E já fez a mala.

4 comentários:

Malena disse...

Só os grandes homens sonham com coisas simples! :)

Sempre uma escrita que encanta!
Obrigada!

Daniel Abrunheiro disse...

Sou eu quem agradece tanta desmesura, Mad.

Malena disse...

Não é desmesura. É verdade! Por vezes, nem me atrevo a comentar de tão belos são os textos. Temo estragá-los!

Daniel Abrunheiro disse...

O leitor / A leitora: são a razão cervical dos textos. Merci, merci, Mad.

Canzoada Assaltante