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Leiria, 23/IV/2013, terça-feira
ORÁCULO SOLAR
I
Muito sol anda no ar,
hoje.
Terrível chega a ser,
tanta beleza.
As mulheres beneficiam
muito do dia.
A tarde espaneja-se toda
bandeira.
Fixo nas coisas um olhar
serenado.
Espero a pomba das três
horas.
Trouxe-lhe pão novo, é
claro.
Envernizadas, coruscam as
árvores.
Até a amargura vale um
esmalte.
Por onde seguiria, se não
por dentro?
O trabalho daquele cão é
ladrar aos carros.
Que irada irritação o
excita?
Ulcerado de sombra, o muro
humedecido
é escrito a hera povoada
de pardais.
E um gato tomado de sono
bebe sol.
E eu quase não existo,
quase não hesito.
Amarela como um recado
alegre, esta mulher.
Esta mulher aloirada de
seiva passando.
Passando e levando com ela
a gardénia macerada.
Tudo vale tanto, melhor do
que nada.
Desertada de gente, a casa
antiga apodrece devagar.
É à face do Rio, que
sereno brilha & vai & fica.
Falo com a senhora mãe do
Eduardo.
Conta-me ela de quando a
mãe dela era caseira.
Que nada lhes faltava na
quinta:
criação, horta, fruta,
sardinhas, azeite.
Conto-lhe a infância da
minha Mãe.
Conto-lhe dos pais da Mãe,
caseiros de quinta também.,
Azeite, sardinhas, fruta,
horta, criação.
Do milho, a broa-pão
sustentando gerações.
Tinta permanente: ingénuo,
perecível adjectivo.
Olho em qualquer direcção
cardial: a tudo pertenço.
Quando a noite visita os
olhos, apossa-se deles.
Não agora.
Agora, a claridade
instaura o País.
A claridade faz bem até
aos desgraçadinhos.
Os desgraçadinhos que
andam no gamanço e os outros.
E nos solares os fantasmas
são familiares.
E o Senhor Engenheiro tem
uma amante em Lisboa.
Ai aqueles olhos verdes,
perdição da carne, fúria do leite.
Amazona preclara,
intangível, mosqueada.
Matizada a cordões
nervosos à flor de álacre lacre do mamilo.
Rebentação de escumas,
penhasco dulcíssimo.
É se calhar casada com
algum advogado.
Ou pior.
Que bem se embalsama ela
de cremes franceses.
Ai que água de azeitonas
chilreia ela.
Escrevo as minhas décimas
à indiferença dela.
Boa para levar para uma
ilha mais uns livros.
Tem sido na prática assim
a minha vida adulta.
Digo: a minha adúltera
vida adulterada.
Escarneço a vida, mas
ainda sou laborioso tipo rã.
Pedem-me do Louriçal um
entreacto jocoso.
Escrevê-lo-ei amanhã,
entre bebidas e fumos.
Ponho isto aqui, sentido
lhe não demando.
Chega-me hoje p’lo fim da
tarde o Fernando.,
É meu Irmão – mais não há
que dizer.
O Sol é todo uma
Gréci’Antiga.
Afio o lápis, vou fazer
outra cantiga.
II
– Mais uma que não vai à missa – diz a mãe
do Eduardo, referindo-se a
uma brasileira-de-esquema
que surde pela Avenida 22
de Maio de telemóvel
(“célúlá”) na orelha pingona de cera.
Sorrio à expressão,
contentinho dos rins.
Uma alforreca tisnada
carrinho-bebéa a cria,
Um cão boceja no separador
relvado da via.
Segrego o pus benigno e
inócuo dos versos.
Deveria talvez fazer sopa
para a ceia.
Sei-a de cor já (à vida
ávida).
Volúvel, o Rio arde além
dele a febra fresca.
Aquilo é tudo um marulhar
de cristais.
Sempre que qual um ferrete
a estupidez das
pessoas genuflectidas ante
o não-mistério,
passo-me da mona, a
estupidez desmona-me todo.
Sobra porém Bach, sobra
todavia Ruy Belo.
Português qual pardal, tenho
muita pena de não ser católico.
O Senhor
perdoar-me(doer-me)-á, estou certo.
Ínsua de tangerinas face à
Vala do Norte:
infân’Mãe’distân’cia:
verdade, que bem na sei.
Quanto tempo hei ardido
para aprender a escrever?
Todo ele.
Sentido para isto?
Nenhum em
peculi’particul’ar.
Mal que isto faça?
Idem.
(Cospe as pevides, não as
tasquinhes.)
Às vezes, em Casa, abro o
caderno.
Abro o caderno, dou à
Mulher conta do dia.
Ela escuta, raposa
vegetariana na floresta carnívora.
Não há-de ser assim para
sempre,
a não ser que por escrito
fique.
É outra das albardas da
Poesia:
querer ficar, crer
ter-sido.
A gente masculina ante um
par de mamas:
boquiabre-se o eterno
efebo ante a
Mãe-Ressuscitada.
Ou, como há pouco
diss’escrevi:
Tudo vale tanto, melhor do que nada.
Nada.
A pomba da tarde com(a)pareceu
às 15h36m.
Miguei-lhe o pão, fiz-me
revoador alcoo’eólico.
Atirei-o-esmifrei-o ao ar.
Ela comeu-o de boa-bom
boca-bico.
Acabaram-se-me os
cigarros.
(A infância também, por
mais que eu.)
Lavanda nórdica eucalipta-me
a fala.
Falo com a mãe do Eduardo
no Café da Rita.
Há muito tempo não pinto
casas a lápis.
Excepto ontem.
Excepto ontem porque a
Graça quis saber.
Arejámos a sala,
sentámo-nos, havia água fresca.
Toma-cá-dá-lá, li-lhe o
lápis.
Ela ia reiterando com a
cabeça o próprio Pai.
O dela, que fez casas onde
’inda hoje outras pessoas.
Tardou nada, era noite.
Eu assim para ela: – Vês?
Ela assim para mim: – As orquídeas, há que mudar-lhes a terra.
E eu assim: – As orquídeas. E ela: – A Grécia (a Graça), às vezes tenho saudades desse tempo.
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