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Leiria, entardenoitecer de
28/IV/2013, domingo
ESPÓLIO
I
Uma
mulher diz:
– Eles falavam sempre um com o outro,
eu não os percebia, acabava por adormecer, acordava sozinha, já o meu tinha
saído de casa e nem sempre a noite mo devolvia.
A
outra mulher faz que sim com a cabeça, entende-a bem, o suficiente para nem
aventar um arremedo de consolação da amiga. Está grávida, tem mais de quarenta
anos, não sabe se há-de chorar ou se há-de chorar.
II
A
penumbra instala-se em câmara-lenta-e-muda, carvão em pó o mais fino, farinha
de carvão, pública cegueira de uso privado. As árvores alastram, a mancha delas
toma conta das águas múrmuras. E o saibro é crespo, canta estaladiçamente no
calfe dos pés peregrinos. Ou fugitivos.
III
Um
dia, não já mas não remoto também,
restolho
de papéis será o espólio:
sombra
de idas sombras,
bálsamo
não demandado,
nem
resto nem rosto já.
IV
Um Cecil Trevor Broom de há cem anos à porta de uma estalagem de mala-posta depois do desjejum. Choveu muito durante a noite, a estrada é um arroio de lama que se vai enregelando devagar. De pé, a um passo do pórtico, Broom fuma a cigarrilha dominicana. Pensa no que conversou com o sócio Ralph Neville McPherson, o mais leal dos seus amigos, talvez mesmo o único Amigo. Nem por sombras (sombra de idas sombras) pensa na mulher. Na de McPherson sim, pensa. Está grávida. E isso fá-lo sorrir na penumbra da manhã, espólio do século.
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