31/03/2008
Um Março não este Abril ainda não
Um março mais acaba para que sejamos menos
no tempo que mês a mês nos come nos consome.
E eu ando todo feliz na felicidade triste da cidade
atento ao néon das repartições ao óxido dos portões.
Vejo cães passando como dias gatos como emanações lunares
e por meia dúzia de moedas arranco poemas aos bares.
Sou o filho de meus pais alcanço a idade deles
custa-me deitar o corpo na cama levantar-me dela.
Sou talvez um poeta estatuto nada recomendável
hoje em dia a um europeu de atlântica nostalgia.
Vendem agora embalagens de espinafres já com queijo
tudo aparece pronto e diferido como a minha poesia.
Uma rima aqui uma lata de sardinhas em tomate além
um telefonema para casa a saber como está a Mãe.
Despeço-me deste março que tantas palavras me trouxe
eu a fazer de areia as palavras a fazer de ondas.
Como o Manuel Barata sabe dou muita atenção à forma
até por causa da manifesta escassez de conteúdo.
Continuo porém achando que não tem mal
’inda no outro dia o disse a um amigo que é guarda prisional.
Não calma ’inda não é este o abril da nossa morte
outro será mesmo que em diferido mês era uma vez.
Levei três sacos ao contentor do lixo sentei-me aqui convosco
tenho música em casa que ouço olhando a janela.
Comprei uma secretária antiga tem mais gavetas que eu futuro
e às vezes entristeço na cozinha embolando de cuspo o pão duro.
A minha barba encanece já não subo escadas como outrora
mas ’inda assisto furtivo à beleza das raparigas que passam.
Sim ’inda hoje vi três ou quatro filhas de alguém nascido
mães de alguém por nascer que isto a natureza não perdoa.
Tenho Camões em casa de vez em quando vou falar com ele
regresso dele dignificado por um compatriotismo dulcíssimo.
Tenho Cesário tenho Osório tenho Belo tenho afinal tanto
que num café fora de casa quase não evito o ledo pranto.
Estou vivo calma e dirijo-me-vos de gardénia à lapela
um toque de perfume lobular um casaco decente um poema.
Não de facto não me importa o carácter fósforo dos meses
alguma vez algum dia descansaremos será manhã.
Tenho muita esperança nos amem ’inda no futuro
e digam Olha este escreviveu deitou-se cedo comeu algum pão duro.
Humana, Ribeira Gente de Avenida
tarde de 30 (X a XVIII) e
manhã de 31 de Março de 2008 (XIX)
homem que é e ribeiro também,
por me ter iluminado a tarde de sábado,
29
ao fim de todas as ruas e de todos os rios
Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates
Desconheço o essencial da vida
desconheço até que a vida
não é nem tem essencial.
II
A partir das duas da manhã
podemos todos ser poetas
no bar que não encerra
como a vida.
III
Tenho muita pena
mas enlouqueço
como toda a gente
viva.
IV
Andamos infelizmente
todos ao mesmo
mas não à mesma
felizmente.
V
Não acredito em deus não acredito em ti não acredito em mim.
No diabo nas avenidas e nos ribeiros sim.
VI
Um idiota da televisão que acaba de publicar um livro
é entrevistado na televisão por um idiota colega dele
que por esta altura já deve a pensar em publicar
um livro também.
Esta maralha é ao contrário dos almeidas:
em vez de levarem o lixo da rua, trazem-no-lo
para dentro de casa.
VII
Um único amigo tenho que trabalha no mar
nós não embarcámos nós só ficamos
condenados à terra que nem a chuva quer
o vento cantor do sol dos grandes gelos
o presidente da república é que tem dinheiro
para ser se o quisesse marinheiro
temos retratos de barcos nas paredes
escotilhamos à janela a maré de prédios e prédios e prédios
prende-nos o coração a âncora do tédio
acedemos a trocar de mulher que nos troque
por um marinheiro um verdadeiro
os nossos filhos caranguejam de plástico pelos shoppings
já nem quinze dias de praia por ano podemos dar-lhes-nos
somos os que ficámos sem litoral
literalmente somos terráqueos
bocejamos como gatos arrotamos quais batráquios
o mais que podemos é jogar nas hortas o chinquilho
em marmitas de plástico o bolo de bacalhau o arroz de tomate
os cus das nossas mulheres porosos de casca de laranja
as nossas olheiras fumadas pelo carrascão
com que em vez de rum acalentamos o coração
em vez de rum em vez de rumo
não marítimo nem polar é o nosso azimute
aos domingos de manhã botamos cerveja no vermute
falamos do guimarães-marítimo
e tudo se nos volve um descomunal etc.
vale-nos a arte da calçada portuguesa
algumas desenham as ondas do mar
tão bem feitas que nos molha os pés essa maresia de pedra
a que de bom grado daríamos a vida e o dia
as moscas pousam nas enciclopédias ilegíveis da sala
os naperons amarelecem como ovos
nos psychés há tranças de avós mortas
só no mar toda a ânsia toda a serenidade
isto aqui é só cidade
nem pátria juntas somam as cidades da terra
uma pátria porque valesse a pena morrer a pena viver
como o capitão homem ribeiro não fazemos ideia
quem foi o grande morto à esquina como uma mulher da vida
da vida que levamos sabemos que nos leva
nada mais nos é dado saber dela excepto
que não é essencial como no-la vendem
nos bancos dos hospitais nos bancos do débito nos bancos do jardim
nas tardes de sábado comemos amendoins ao quilo
à noite os cus tornam-se-nos oleodutos
arroz massa batata feijão são-nos os mais comuns condutos
vale que as rosas ainda nos espantam
a feminis crianças maduras as cotejamos na madrugada
quando saímos atrelados ao cão pelo silêncio anil
as rosas que brotam como cifras de deus
telegramas últimos da beleza da terra
a terra que pensando bem até amamos
a terra de que somos em que nos volveremos
como avós de psyché como capitães da grande guerra
e no fim da vida sabemos quão mal amámos
quão mal amámos tudo as mulheres os homens a terra
quão mal amámos em nome do mar que é a terra
onde trabalha o meu amigo joão henriques
não nós os que ficámos em terra
capitães nem da grande guerra afinal
resta-nos ainda talvez amar as pedras
que nos calçam de maresia os pés
as pedras que às montanhas sobem para ser catedrais
de nenhum outro deus que elas mesmas
guaritas de lobos açulados pelo vento mais níveo
o vento que do mar lhes chega como uma cortina
os lobos enfunados pela conivência das montanhas com os céus
os lobos que não passeamos à trela entre rosas
na madrugada urbana e anil da nossa condição
pedonal e tristonha e ainda assim humana
amendoins e bolos de bacalhau aos fins-de-semana
na nossa cama as nossas mulheres sonhando marinheiros
que não fomos nem somos nem vamos ser
não nesta vida apeada nossa inessencial vida nossa
quieto fotograma não enviado cabograma
ainda se ao futuro entregássemos as qualidades do passado
como quem dá as chaves de um quarto a um sem-abrigo
como quem dá água a um cão pão a uma pomba
ainda se tivéssemos sido felizes amanhã
magoados de alegria entre canteiros e cedros
o coração furioso de contentamento
aceitando a lua como um negativo benigno do sol
e a terra como o que o mar nos deixou
em memória dele.
VIII
Já por outros varais se estendeu a tua roupa
mas eu amo a tua nudez.
IX
Um bosque é beethoven por dentro
é um coração que pensa gravemente
pelos fagotes dos pinheiros
agudamente pelo cristal dos pássaros
muss es sein es muss sein!
X
Tenho sonhos tão pobres
que acordo com a cama cheia de moedas.
Dão-mas os anjos do sono.
XI
Um louco da rua diz
– O domingo não é nosso.
XII
Ai os sistemas as grécias o meu amigo jacinto
a quem se não minto
pertencem as cidades e as serras e
as favas com chouriço.
Estou no domingo
tenho lido alguma coisita
estou à espera
que telefonem aos meus
a dizer
– Olha
foi-se embora
o domingo não era dele
nem as cidades nem as ruas.
Favas contadas.
XIII
Chego tarde a casa saio cedo
elas estão a dormir
deixo um pouco de pão na mesa da cozinha
amo-as como um fantasma
decentíssimo e
panificador.
XIV
São-nos as mãos estrelas
do mar em terra.
Somos organismos tão
delicados quão
relojoarias.
Merendamos entre amigos
nas tardes frias.
Somos de terra passamos a vida
a pensar no mar.
XV
Mudou o dia
não o nosso amor
Mãe
Pai.
XVI
Serei para ti o moreno rapaz das colheitas
ourejando o outono nas parras nos trigos
por essas eiras arrastaremos as carnações
prometidas a casamento o mais virginal
só de júlio dinis livros te deixarei ler
e aos domingos a teu pai ofertarei cálices de moscatel
que tu és virgem, maria,
e eu, daniel.
XVII
Sinto perto a tua morte
como minha.
Tenho
Mãe
experiência comprovada
aceito referências.
XVIII
Delicada jarra japonesa
com flores de pergaminho
é a minha pele
na vossa
na tua.
XIX
Quão tempo teremos ainda até o fim da avenida
quão de facto grande é a nossa grande guerra
somos homens somos ribeiros somos da terra
despojos dados hoje à praia do passado
apeados marinheiros à babugem dos dias
um pouco assustados na noite é certo
transidos de frio nas pastelarias aquecidas
entre velhas comedoras de farinhas cozidas
hei-de ganhar o pão com a água da minha boca
o meu verbo far-se-á carne
gosto de alguns aspectos da tristeza é certo
é por exemplo muito bonito saber que outros olhos
reescreverão estes mesmos versos em particulares corações
gente que também foi à grande guerra da avenida
e é humana e é ribeira toda a vida.
30/03/2008
Os Meus Pais - Tesouros I e II
Tesouro II
Minha Mãe
o sol tornou hoje como uma febre benigna
todo o santo dia andei como um cristo
de braços abertos través o incêndio
tenho comer em casa
a Senhora não se preocupe
as janelas da sala dão para uma praça
antiga como a Senhora
majestática me parece ora a praça
como a Senhora
e como a Senhora
ordenada e ordeira e limpa
o nosso amor
Mãe
ao sol nas praças
como antigamente
ao sol que torna
antigo até o futuro
do nosso amor
minha Mãe.
Tesouro I
Vi os olhos do meu pai na cara de um homem que passava na rua.
Durou pouco, o regresso desse olhar de cão batido.
O homem olhou-me com um olhar que já era o dele.
Fiquei parado na rua.
Fazia sol.
O meu destino, que na altura era ir ao multibanco, tinha perdido o sentido, como todos os destinos.
Os olhos do meu pai, caramba.
Estes anos todos sem ele, e ali estavam os olhos.
Preciso sempre de uma explicação.
Preciso sempre de saber tudo.
Continuei parado ao sol, à espera de perceber.
Não durou muito, a explicação.
Eu tinha parado diante de uma montra espelhada.
O sol devolvia-me todo um corpo de vidro e luz parecido comigo.
Olhei-me os sapatos, os joelhos, a aba do casaco, a gravata, a cara.
Nessa cara alheia, lá estava outra vez o olhar do meu pai.
Nunca mais volto ao multibanco.
Nunca mais vou precisar de dinheiro.
Um tesouro olha por mim.
29/03/2008
Outro Vestido de Noiva com um Homem Dentro – versos para um baile no Cartaxo
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Viseu, tarde de 28 de Março de 2008
I
Um homem dentro de mim procura-te.
Não sabe quem és.
Eu sei – e não te procuro.
Tenho sofrido muito como um bom cristão.
Ele não, por isso te procura.
Somos tão diferentes, ele e eu:
ele importa-se de morrer.
Quer sofrer ainda em vida.
Ele vai, vê lá tu, de relógio para a praia,
coisa que um homem como eu
nunca faria nem fez nunca,
vê lá tu,
que pode dizer-nos um relógio
perante o mar?
As ínfimas areias, como sabes, contam
estrelas, não minutos.
Temos ambos os dias contados, é certo.
Os dias são como as pessoas nas filas,
as de trás iguais às da frente, é certo.
Eu não me importo de viver.
Trago-o dentro de mim mas é ele
quem me leva pelas finitas ruas,
poços de ar horizontais
de nossos rasteiros voos.
Ele procura-te nas outras mulheres.
Sorri, brande frases delicadas, elas
olham-me de lado, desconfiadas
talvez da minha higiene, não sei.
Sei que ele te procura como um vedor
de freáticas águas de olhos,
nunca te viu nem verá, sei-o eu,
que te conheço e não procuro.
II
É decerto deus – ou o diabo por ele – quem
troca flores por horas na cinzacidade da tarde.
Zunem carros amarelos e vermelhos seus trovões particulares.
Os homens-do-lixo em vez de braços têm asas.
A mulata de blusa verde bebe café de perna traçada.
Era melhor ter tido um amor – pensa aquele velho.
Ansiolitigados disputam trinca de milho às pombas.
Noutros tempos ir para o Brasil era bom.
Em vez de braços têm asas de mosca.
Não sei onde pus o meu livro com gajos do século XVIII:
este gajo dentro de mim põe-me a casa de pantanas.
O Jornal de Notícias diz estas mesmas coisas de outro modo.
Um cãozito mínimo investiga a vida de um relvado,
procede a graciosas assinaturas urinárias:
toda a vida não escreverá outro poema.
Tenho um condão para remexer cinzas.
Remexo cinzas e encontro cidades.
Sou um colector de pompeias
caducas e perenes.
(Se fosse vós, não me riria:
assim é cada dia.)
Um lagarto vermelho: homem com escamosa doença de pele.
Um rapazinho de brinco agrafado ao lóbulo de cera.
Soergo-me na hora passada, pretérita, divina.
Muito gostaria de trocar-te por esta flor
em vez de braços.
III
O meu tio Alberto nasceu no primeiro ano da Grande Guerra.
Dezanove depois, ano da subida de Hitler a chanceler,
cortaram-lhe uma perna.
Em 1977, saiu O Que Diz Molero, fui com ele ver passar
a Volta a Portugal que Adelino Teixeira ganhou.
Três depois, o meu tio Alberto antecipou-se em
quatro meses menos uma semana e um dia
ao John Lennon e morreu no sanatório do Caramulo.
Há quem faça tudo e de tudo para ficar na História,
mas não quero que penseis isso do meu tio Alberto.
IV
Salomónicos salmões de a(qua)viário ao meio fendidos
expõem sua carnação cor-de-laranja-crepuscular
na montra frigorífica do nosso hipermercado
de estimação.
Tarde na noite vamos às compras.
Buscamos vitualhas e gasalhos nutrientes
entre galerias pensadas e prensadas para
pobre gente que como nós trabalha e não tem
tempo por aí além nem por aqui aquém dinheiro.
Gostamos de ver os salmões, extinta estirpe
de nadadores alpinistas, seus olhos em que
a pérola do rio se regelou a pérola de frio,
parentes subidores da dúbia enguia, além, em
latas da Ria de Aveiro.
Apreciamos do porco a venta pré-cozida
embalada em vácuo como as ventas
de quem não lê.
Dou por nós dando às vezes os olhos
à fileira de especiarias, cravinhos e açafrões,
coloraus de pimentões, a canela coentrando
a cheirosa esmiuçada noz-moscada.
Adiante, o pão de série não é para levar a sério,
que a honesto suor de padeiro não cheira,
como antigamente.
Antiga mente é de cada um a nossa, que
no hipermercado demandamos em vão a odorífera
mercearia primacial da infância.
Vale que, quinze minutos antes das onze da noite,
raros são os como nós navegadores de mar enxuto.
Escolhemos o jantar entre congelados e espremidos,
do humílimo agrião à hierática corvina,
um dedo de azeite industrial, uma unha de fiambre.
Ela, da mortadela, sabe que me sabe a infância.
Eu sei que queijo lhe sabe a beijo.
Quando o mundo nos passa um cheque, vamos
na noite hipermercar, mínimos peões do magno xadrez
dos salmões.
V
Só quero isto que me quer: a Língua,
que me faz pessoa portuguesa, um
meio velho que, de quando em quando,
volve a menino
por idioma
e destino.
VI
As nossas vidas são relógios lunares,
ângulos de sombra apontam ponteiros de cedros
aos quartos decrescentes.
Derivamos muito por inclinações montanhosas,
os pés estalidando segundos de poroso cristal,
qual quartzo pedregoso, breve pó eterno de dias contados.
Não me ralo: enquanto tudo for quando, vivo
convosco a Grande Hora Efémera, cinza de ciganos
sazonais brevemente acampados na praia,
sem relógio.
VII
Como vós tenho amigos que sangram,
amigos a quem é possível dar um braço
ao longo do litoral de bares do rio,
numa língua tablada de madeira
onde outrora o operário pescador, a lavadeira.
Sou como vós: sou como voz:
tenho amigos que o dizem por mim,
como nós, sangrando.
VIII
Hão-de colher-te, de ouro e de prata,
ontem.
Não sobrarás
amanhã.
IX
Saem das igrejas e vão comer carne a casa.
Estrepitam fulminantes morais de calendário.
São catolislâmicos, acreditam que a NASA
é um’ONU de estrelas e que Meca, o Calvário.
Acreditam que Deus neles acredita.
Portas de alumínio lhes vedam a casa.
São meus patriotas, aqui na territa.
Islâmicatólicos, ó nus das estrelas, ó micos da NASA.
X
É muito bonito ter olhos de cão, ser humano dentro.
Não adianta nada para a vida, mas é bonito.
Os homens da rua da minha infância ou eram
cães ou não eram homens.
Havia oliveiras, o merceeiro sabia-nos os nomes,
encontrávamo-nos todos em pontuais
casamentos e funerais.
Não sei de onde me perdi, quando, cinzas remexendo,
me desencontro noutra cidade, numa cidade
desprovida de infâncias.
É muito bonito ter olhos de cão na rua,
ao frio e ao vento, as árvores relvadas
pelo musgo do tempo, de uma vítrea baba
de caracóis.
XI
A tarde atira uma flor à cara do mundo:
uma mulher formosa, vê.
XII
É o homem dentro de mim que tens,
não a mim.
XIII
Um floco de espuma faz de ovelha
na colina da minha mão:
tossir espuma de cerveja
faz-me pastor de expectoração.
XIV
Longamente, subido ao monte geodésico, vi as cheias
que estanho eram nos campos da agricultura.
Entretecíamos, os nós-agora-eles de antanho,
uma infância de papagaios de papel-de-seda,
cola de cuspo-e-farinha, meias canas longitudinais.
E viver, então, não era de mais.
Mais longamente vivo agora, de montes exilado
como um viriato pós-moderno, uma coisa com pernas
que demanda as ruas do exílio.
Sou, alado, um dos homens-do-lixo.
(Um floco de espuma na mão: que é isto,
um bicho?)
XV
Era o meu corpo do tamanho de uma mão
quando vi a águia.
Impressa e distribuída pela
Agência Portuguesa de Revistas,
uma águia de
Lisboa-Porto-Luanda-Lourenço Marques.
XVI
De alto a baixo é o corpo feito de águas usadas
mas o que dele conta, ou não, é a residual areia
do fundo.
O mais que há por aqui são pensões e cafés geminados,
em cujos imos é possível adentrar
o mais mulato amor de aluguer para imaginar
outra vida,
outro vestido de noiva.
XVII
Vi a rua vi a névoa vi a cinza vi a gente
de mãos dadas,
nenhum dos dois corpo tendo,
sequer águas.
Éramos ambos areia, ambos
contadores de estrelas.
XVIII
Troca-me por uma hora,
qual flor.
XIX
Não tenho qualquer interesse enquanto pessoa.
Nem sequer falo alto ao telemóvel nas ruas.
Mudo de antena quando dizem o trânsito de Lisboa.
E acho que os olhos são, da cegueira, capicuas.
Não me assiste sequer a redondinha redundância.
Lancho carapau frito a mil desoras.
Entre o ser e o estar, ele há distância.
Deus, ou o diabo por ele, trocou-me as horas.
Não tenho qualquer interesse enquanto cinza
etc.
XX
Tenho um amigo que toca viola-baixo
em bares de rodapé de vulvas desquitadas.
De dia, é oculista. Nas horas vagas,
ouve discos de jazz à base de contrabaixo.
É alto, o meu amigo. Tem um casaco
que furor faria, furão, n’anos 70.
Aos 50 hoje, é um cossaco
de próstata apeada, mas ’inda tenta
a nota certa, coraçãozinho
que a baixa nota é da viola-baixo.
Não sei por onde anda, mas sei certinho
qu’este fim-de-semana é no Cartaxo.
XXI
Nem orações nem corações, por favor.
Estamos todos fartos de versos de bar de fumadores.
O mais é sobreviver, mesmo
que nos chamemos, como este senhor,
Marcolino e que, como ele, voltemos
de graça atrás para mais
duas minis e um telemovilema alto
para o chefe da oficina,
ou o senhor me garante o carro às sete
ou vou marcolinar alhures outras condições.
Não.
Nem orações nem corações.
XXII
Cada vez que estou para tinir versos,
há uma mulher que sabe.
Deve ser porque vibro como uma colher de alumínio
num pires de louça exposto a vibrações.
Não é importante. Não são importantes
nem os versos, nem que eu tina, nem
que ela saiba.
A memória das cidades é feita mais
de engenheiros que redesenham ruas que
de versilibretistas vibradores.
Mas de repente uma mulher
etc.
XXIII
E à flor da boca a flor da Língua.
XXIV
Disponho ainda de algumas propriedades
que partilham com a emoção
o carácter imobiliário:
bens à Lua,
enfim.
XXV
Não me vejas árvore, mas fruto de meu Pai.
XXVI
Alegre inconsciência é a infância
que dizima de si mesma o lírio pelos pátios.
Brune cimento o azul entre gatos
elanguescidos pela do menino terna vizinhança.
Eu fui um menino, eu fui um menino.
Que farei agora de tantos pátios?
Eu sei qu’ele há gatos, mas estes gatos
não são idioma nem destino.
XXVII
Vês? Trouxe-te até aqui pela mão
(e vamos já no XVII)
– e nenhum de nós é corpo,
águas usadas sim
XXVIII
O homem dentro do vestido de noiva
quer ser amado com mão-de-ferro.
Orienta-se mal nas cidades, prefere
hipermercados, onde a mortadela mora
estrategicamente no sítio repetido:
é a pós-mortandelidade, por assim dizer.
O noivo dentro do vestido de mulher
ama todas as mulheres repetidas
nos pátios. Dá-lhes, aliás, lírios, qual rapaz
que à praia não leva relógio.
Atento às areias estelares, conta os dias
com os dedos cortados de uma só
decepada mão,
a que não escreve,
a que treme no cinzeiro
perante o altar da imolação.
E só isto quer que o quer:
um coração e um vestido
e uma Língua e uma mulher.
XXIX
É muito bonito ter olhos de noiva, ser
um lírio num pátio.
XXX
Uma mulher dentro de ti procura-me.
Veja ela por esses pátios se me encontra,
a ver se algum lírio, se algum gato.
A espuma de uma hora, uma ovelha carnal
no espírito lunar da noiva.
Deus longamente subido, longamente geodésico,
cheias do diabo, nunca decrescentes.
A infância afinal frigorífica dos
salmões premonitórios,
nossa carnação laranja de papel-de-seda
em bares do mais cívico alterne.
É muito bonito ter olhos e ter braços,
não asas, que nem asas, nem
orações nem corações,
atento o carácter imobiliário da perda,
ou da perna,
diria o meu tio Alberto, que
morreu solteiro
como todos nós,
dentro de mim,
dele
e
dela.
28/03/2008
Estenoginografia – versos de sereias
Viseu, manhã de 28 de Março de 2008
Intróito do Mau Estenógrafo
Bem vos avisei, em poema escrito ontem e hoje aqui canilado, que
Paro num sítio, ponho-me a ouvi-las.
Foi o que (re)fiz, agora mesmo. Antes de almoço, fui a um café de semente-de-arrepio, aqui perto. Havia três mulheres a uma mesa perto da porta. Eu estava a ler o primeiro número da fanzine poética A Coisa. Deixei de ler, que a conversa delas era irresistível: sereias pobres cheias de uma poesia improvável e comprovada. Transcrevi o que pude, que não sei de outra estenografia que a da poesia: não gastar as linhas até ao fim. Vai tudo em itálico porque os versos são das sereias, não meus.
o carteiro passa aqui muito cedo ainda assim
como as cadelas andam ao cão
/salta-me o muro
eu disse logo
no mês passado
foi assim
a minha vizinha disse-me
/a primeira para quem vem
nem vi o correio
/até abril
não se preocupe porqu’á-de vir amanhã
ela já nos viu
e eu, carago!,
ai mas eu ainda não
eles antes cortaram-na
a minha comadre recebeu uma carta
/a dizer assim
e ela não percebeu
para o mês que vem já vais receber
ah!, tá tá tá tá!, eu caí da cama
ainda não foi à cama
não me lembro mas diz
/que não fiz
tem favas todo o ano
sabes porqueque não truce mais?
não tenho aqui nada na cabeça
só bati co’ela
tinha dois mas ficaram vinte
se quiser vir buscar o fatinho
/da Comunhão da menina
quando vi aquilo
não me lembro do que fiz
tirei-lhe o pijaminha
/diz tudo
perdi-me exactamente no mesmo sítio
ele foi comer marisco ela não foi
puseram tudo estava lá
/um tacho por lavar
acho que foi com vitela
nem no prato havia um vestígio
uma carninha qualquer coisa nada
mas fiz-l’e
pensava ele
não havia mais filtros
vejo lá muitos ventis muitos ritzes
olha esta merda
obrigado
Mãezita, diz qualquer verso
punha Nossa Senhora
agora sou eu
tenho d’ir pà cozinha
ainda estou à espera mas não
/olhes p’ra mim
ai ó Mãe!
a Rita que é a mulher dos olhos
/dele
até a minha cunhada teve medo
/de pedir a ele
a Mãe não gosta
não l’e sabe dizer que não
a Rita pode dizer horrores
que passava horas p’la internet
ele retirou a queixa ela deixou-o
nem as coisas dela
bem feito
tu não estás capaz
ela fez uma jura
são bem merecidas
será que?
ela deixou-o
como é que consegue ser tão
/burrinho
/ a esse ponto?
isso é quê, 96?
tenho 16 e pouco
sé pa’ 96
meidia e 20
vê lá se dá pa’ ligar
triplicar o saldo
saiu-ma dos quinzeuros
o dinheiro não l’e permite
tá tá tá tá!
o quê
cabelo
digo eu assim pà Rita
não ligo mais
se chegares ò dia 31
45
45 euros só pa’ 96
digo eu pà Rita
vocês têm amigos 96?
hoje é dia quê?
se tu visses
eu passava horas
/mesmo contigo
tenho mensagens grátis
quando é que foi Sexta-Feira-Santa?
tinha trinta dias
15, não!, com 20
por isso
quanto tempo é que tinha
de 21 a 21, 11 de Maio, não,
1
c’a Mãe
a Mamã não pod’ir
onde é que tu andaste com a cara?
uma mensagem
não há ninguém que me faça isso
gostas mais de quê?
só fumar um cigarro
estás tão branca hoje
a minha irmã está no
/quarto-de-banho
à Quinta do Galo
pront’então eu vou-l’e perguntar
espectacular
a gente a olhar de lado
sim, tu
no Palácio do Gelo
às vezes também tenho essa mania
tenho uma filha muito
/linda, anda cá pá, Chiquita,
no queixo, no narizito
oh sim!
ela já ’tá a caminho
qu’ela ’tá à’spera que
/eu l’e digalguma coisa
’tão ’pèraí
não sei se
olha, ’tàqui a chave
já l’e disse
cala-te!
cala-te!
só há esta
sim sim sim sim
a minha irmã e as
/crianças
sabes porquê?
parecia-me uma senhora
eu se pudesse.
O Vosso Rosto e a Chuva em Beleza seguido de Soneto dos Jantares Sós
Viseu, tarde de 27 de Março de 2008
1
O teu rosto e a chuva partilham
a perpendicular natureza da precipitação.
Oh eu sei!, toda a cabeça é uma pensão com águas correntes.
A cabeça do poeta, a cabeça do calceteiro,
a tua cabeça: todas vós desenhais pedras
à chuva.
O meu dever é congelar isto por escri(s)to.
Olho o teu rosto pantanoso, onde rãs
burburinham sequências por assim dizer
verdes.
Olho a tua boca, marmorto de tanto sal
antigo.
Já surpreendi em mulheres
a delicadeza de meu Pai,
essoutro rosto.
Em cães também, devo dizê-lo.
Disse-o uma vez algures: que
os rostos circulam como moedas.
A prata do teu não é de lei,
deveria até,
estimo-o bem,
ser objecto de interdição.
Não estou a pensar em Goethe,
que de noite
todos os goethes são pardos.
Estou a pensar no que faz as pessoas.
Estou a pensar no que faz as pessoas
ter um rosto,
uma moeda
ao preço da chuva.
2
Entro em ti para tocar os órgãos,
a piça lírica dentro da catedral.
Toda reboas, as costas para o tecto.
Ele há ’inda amor em Portugal.
3
Revoadas de crianças azulam as ruas.
Sou o verdadeiro coleccionador de pequenos nadas.
Nadas-vivas, azulejando as asas.
Revoadas azuis acriançam as ruas, as casas.
4
Trata-se fundamentalmente de propagar a beleza.
O idioma range todo na boca.
As pessoas, coitadas!, julgam escolher as palavras,
quando elas as usam, às pessoas.
O meu cabedal é feito de assistências.
Paro num sítio, ponho-me a ouvi-las.
As palavras a ranger as pessoas.
As palavras a engendrar o comércio.
Elas com corpos de gente a partir das bocas.
Os corpos sentenciados às bocas.
A beleza disto, irmão, a beleza disto.
Toco algumas cores, faço de vento, toco e deixo.
Rãs que falam verde perante um rosto,
chovendo.
Uma beleza.
******
II. Soneto dos Jantares Sós
Viseu, noite de 27 de Março de 2008
Noite, minha noite, de nós todos noite.
Corporal noite de espíritos cozinheiros.
Das casas pobres mana a comida aérea.
A noite ao corpo agarrada qual moléstia venérea.
De nós todos é a noite, cada um por si.
Cada um por incomum si na cidade comum.
Cada um espraiando areias de um ouro que não há.
Refeições inox servidas em raras salas.
O bater do néon, o empregado que espera.
O mosquedo das motorizadas na nossa noite.
Vagens, talos, ervilhas, enchidos.
A humildade do pão imitando a terra.
Fechamos à meia-noite, que a noite encerra
a todos, todos nós, anoitecidos.
27/03/2008
Algumas das Últimas Cores
Manhã rica, a de hoje, isso sim. Levantei-me cedo, canilei a crónica 45 d'O Ribatejo, comprei uma secretária antiga numa loja de toxicocristãos, fui ao Avenida soltar-me das palavras que seguem infra e – na volta do correio – recebi de presente um abraço autógrafo com livro por fora: O Amante Japonês, de Armando Silva Carvalho. Rica manhã, isso sim.
******
Algumas das Últimas Cores
Viseu, no Avenida, manhã de 27 de Março de 2008
I
Desconheço se acabo de vê-lo, se há anos o tenho em exibição no cinema da memória – é um rapaz de olhos avariados pelo pó, cerrada barba negra anoitecendo-lhe a cara: um cavaleiro da heroína. Pede esmola à porta de um centro comercial do burgo. Estende a mão de defunto como se oferecesse uma flor de papel vegetal. Nem sempre posso dar-lhe alguma coisa, também tenho pouco. Desconheço se o vi esta manhã, se a morte o levou já. Quem diz a morte, diz a vida. Também desconheço em que cidade escrevo – e em que manhã. Sei que, em cada regresso a casa (qual casa?), as palavras (mais e mais e mais palavras, sempre) me esperam, ávidas. Não sei livrar-me delas. Estão por todo o lado. Segregam imagens, babam postais: o rapaz esmoler, dele a amarelidão hepática – uma iluminura. Sim, isso: iluminuras, as palavras de que sou lebre e batedor, tambor e alfobre. Também me vejo de costas, no centro de uma praça de gravilha, o casaco preto afastando-se. São raros momentos de paz. Escapo-me e branquejo num limbo sem versos. Depois volto, a barba negra anoitecendo-me a cara que meu Pai tocava pelo adormecer, não sei se há pouco, se há muitos anos, noutra cidade, antes da palavrosa cavalaria da vida a que pertenço iluminuramente.
II
Fiz as contas
sobrou-me isto
meia dúzia de versos
uma ponta de cigarro
um olhar que arrefece
nas últimas cores da manhã.
O Amante Japonês - de Armando Silva Carvalho
Numa Avenida do Paraíso - nº 45 da série Rosário Breve
Pode muito bem acontecer que a desesperança nos parta o coração em dias e bocados separados, que depois é preciso re-unir com a vassoura da resignação.
Penso, sinto e escrevo isto num café igual a todos os cafés do Mundo Português. São, aliás, coisas assaz idênticas: a patriótica desesperança portuguesa e o mundo dos cafés do mundo. Em torno: uma criança feminina com uma fita verde no cabelo e uma boneca cor-de-rosa ao colo; de casaco de napa, um homem cujas orelhas, de tão vermelhas, me levam a dizer-vos que parece ter dois bicos-de-lacre pousados nos lados da cara; uma senhora de setenta mil anos portadora de um guarda-chuva mais roxo do que o coração do Senhor dos Passos; um homenzinho de gestos basculantes como um gnomo inclinado, o cabelo prateado e as sobrancelhas nigérrimas, os pèzinhos breves e embolados como tamanquinhas de casca de amendoim; e as mesas vazias aguardando mãos – como todos nós, às vezes.
Outrora, não era assim. Não era no Café Avenida, em Viseu. Era no Paraíso, na Figueira da Foz. Eu tinha a eternidade de sete anos e alimentava-me de bolas-de-berlim. As ruas não eram todas a subir, como agora são. E derredor não havia qualquer mesa vazia, ninguém tinha adoecido, as famílias festejavam a festiva ausência de futuro, pois que 1971 eram anos suficientes para todos nós, que hoje somos eles no passado.
Ainda assim, tenho, naturalmente, projectos. Uma mobília de sala-de-jantar. Um candeeiro capaz de fases lunares. Uma boquilha de ébano. Um casaco de napa. Uma bola-de-berlim.
Pela vidraça do meu café de Viseu, passam raparigas de Santarém: e vão altas e coloridas como estandartes. Este senhor polícia de cá boceja aí, as mãos algemadas de tédio nas costas do dólman. E aquele pombo cata aqui uma migalha de pão em uma rua da Glória do Ribatejo.
É assim agora. Não tem mal algum. É outra vez a eternidade de um dia, pela tarde: uma eternitarde. Não importa que o número do ano não seja 1971: ainda há casacos de napa, há bolas-de-berlim ainda. Mas o que me fazia jeito, hoje, agora, era a tal vassoura.
26/03/2008
Quadras para Louça Popular
Viseu, casa, manhã e tarde de 26 de Março de 2008
Existe fortemente ao ar um fontanário de 1805.
Vê: um homem de camisola encarnada veio à água.
O vento respira alto no cedro ainda não cortado.
É outra vez a janela expondo manhãs de papelão.
O frio conservando as coisas lá fora.
O frio ligado à corrente dos céus.
É o que não muda em silêncio.
Às vezes a tristeza ensurdece-a, só lhe resta olhar.
Procura legendas no rodapé das casas, só vê caca de cães.
Só vê pés de homens pobremente calçados no chão.
Um coração é como ter engolido um guarda-chuva.
O coração dela à janela da cozinha, uma quarta-feira.
Depois um sábado, um novembro, outro ano anterior depois.
O gosto dela por quadras populares escritas em louça.
Sua saudade de lagartixas, musaranhos, rápidos gatos pesados.
Emudeço com ela à espera do sol.
Há água quente, há pataniscas ainda de outro almoço.
Juntamos biscoitos e hemistíquios.
Eu às vezes ladro, ela não.
Ronda dos Adormecidos
Viseu, Caramulo e Viseu, tarde e noite de 25 de Março de 2008
Vim às ruas ver passar os adormecidos.
Escrevo em silêncio tal que não despertem.
Dizem passando algumas palavras, que uso.
São vocábulos fundos e frios como cisternas.
É como estar ao telefone ouvindo desconhecidos.
Vozes que fingem de pássaros, que se não repetem.
Só os cães públicos estão acordados.
Faço de cão público, guarda de adormecidos.
Uma adormecida compreendeu o sonho que a leva,
ei-la que atira transparentes braçadas de rosas.
As crianças adormecidas levitam como santos.
O silêncio adquire coruscações de neve.
Eu estou calado e escrevo as palavras.
Eu sou um acordado e escrevo as palavras.
Um adormecido, velho como uma igreja, ralha.
Sinto que odeia de si mesmo o corpo.
Muitos são translúcidos, vejo-lhes os órgãos.
As vísceras cantam encarnado no ar frio.
Eu nunca dormi, por isso nada sei.
Escrevo para pedir a esmola de saber.
Estou acordado entre eles, vivo caninamente.
Os adormecidos amam de olhos abertos.
Os adormecidos olham a cegueira do amor.
A cidade dos adormecidos é definitiva.
Quartzos de joalharia pulsam narcolepsia.
Considero muito importante não despertar.
Não despertar nem adormecidos nem expectativas.
Folhetos-jeovás párabrisam-lhes os carros
de uma felicidade brasileira.
Eu ando de bicicleta nas pernas qual cão amestrado.
Eu sou feliz no sono alheio.
Eu sou sonhado por meus amados.
Os vivos e os mortos, amados todos.
Ele há de tudo na minha vida insone.
Vim às ruas ver passar os adormecidos.
Isto não é Alcobaça, onde chove desde sempre.
Uma vez, em Alcobaça, um homem à chuva.
À chuva, parecia um cão antes de mim.
O ar cheirava a fruta molhada, anos e anos.
Um dos adormecidos chamava-se senhor Isidro.
Vendia queijo, que com café servia.
A vida parecia-me outra coisa.
Talvez eu dormisse, em Alcobaça,
isto não é Alcobaça.
Isto é um público cão que passa
entre linhas.
Os amados todos, todos vivos, mortos todos.
O ar molhado na fruta dos adormecidos.
De repente sou posto na rua.
Uma voz de pedra amando as casas,
essa legião.
Uma vez, em Lisboa, vi os barcos dormindo.
Era um quarto arrendado, longe do rio.
Vi os barcos dormindo num quarto.
Eu devo ter passado cidades.
Eu devo ter cidades do passado.
Eu sou sonhado por cidades.
A vida já foi Alcobaça, mas agora.
Os cães ligam destinos urbanos.
Os cães não dormem.
Julgamos que dormem mas não, cão.
Antes de aqui ter chegado, eu, o sono.
Uma pátria que se não sonha nem revê.
As ruas das cidades sem rio arrefecem.
Arrefecem muito, as adormecidas.
Vim às ruas ver-me passar, insone.
Vozes desconhecidas em alheio telefone.
Blocos geométricos padecem frias matemáticas.
Hamburguerias amarelejam filhos iguais.
Os adormecidos frequentam as expos.
Desconhecem António Osório, refilam pus.
Cantam de cor pipilações de registadora.
Querem um carro, acordar é que não.
Saí às ruas a ver os adormecidos viver quais medusas.
Uso-lhes as palavras, são humanas.
Eles não sabem os versos que deixam.
Piscam ou não piscam à esquerda nas rotundas.
Compram móveis leves, trocam botijas de gás.
Falecem subitamente contra toda a corrente.
O dinheiro inquieta-os, fá-los moralizar.
Há adormecidos ao abrigo do Banco de Portugal.
Estou acordado entre cães.
Numa cozinha, a Mãe afaga-me, que durma.
Mas os cães públicos acordados como retratos.
Na sala, entre aquisições duvidosas, acordado,
os cães, os retratos.
Faço a ronda.
Em menos que nada, serei nu, contigo,
e serei o teu melhor amigo,
nada que me esconda,
mordido de transparentes braçadas de rosas.
25/03/2008
Um Rio Amado por Ti
Um Rio Amado por Ti
Texto: Viseu, manhã e tarde de 25 de Março de 2008
Fotografia: Coimbra, manhã de 20 de Fevereiro de 2008
Não digo sempre mas às vezes poderias amar-me
como se ama um rio e eu seria o rio e não me tocaria
o Tempo de morrer na areia como um peixe como
uma árvore que no rio reflecte e pondera a vocação de céu
que as árvores usam sempre não digo sempre mas poderias
deixar-te fluir nas minhas águas sem outras margens
que as de vidro o palavroso vidro que me passeia à flor
de morrer sempre um pouco mais a vinte de fevereiro
ao longo da cidade que perdi como se perde um verso
para ganhar o quê uma gaivota fluvial uma fluvial andorinha
um monte de lixo um carro abandonado um comboio escuro
uma palavra dita numa cozinha quando o meu corpo era
de menino e não chegava à torneira mas para tudo chegava
não hoje não agora dou por mim a tossir à sombra das igrejas
e não sou um rio mas um ínvio almegue um vão corredor
sentado entre bolos e velhas em pastelarias seculares
atento ao fraseado do mundo aos trapos de cor enforcados
em arames de janelas húmidos olhos escuros das casas
da cidade estoutra cidade onde pulso lagrimetas de exilado
até os cães públicos falam outra língua entre muros
de diversa natureza são as pedras deste promontório
que todos os dias volto a subir com uns míseros cêntimos
no bolso do lado do coração com um jornal entre o peito
e a camisola interior por causa do muito frio que faz
o muito frio que me consubstancia poses estatuárias
à beira de uma fonte à beira da rodoviária à porta da cervejaria
longe de ti como longe de um poema por escrever
o fundo poema que há tantos anos persigo e me escapa
cada vez que bordo de sombra o rio da minha cidade
na outra ponta do comboio que não vou apanhar
não hoje vinte e cinco de março nem amanhã
ando no meu pensamento como se andasse de comboio
pelas escotilhas do barco de ferro alongo o saudado rio
assim me amasses tu como quem pensa com os olhos
e não precisa do coração para confirmar as águas as horas
as infinitas manhãs que de tarde recordo vestido de noite
todos os poros sitiados pelo frio que tudo torna de ferro
os passos pelas muitas cidades perdidas que me dei
enquanto tu não podias amar gente que como eu fala só
cosida com as empenas das casas amarelas no azul do mar
esse caído céu a que vai suicidar-se o rio oleoso de Tempo
nenhum açúcar deixou alguma vez de acabar sal
assim as palavras todas que de cuspo imitam rios
na minha boca demora o travo fumado do horizonte
de repente é estio mas continua a estar frio
há perto deste papel um cedro que a Lua bebe de noite
numa solução de prata silhuetada por imparáveis gatos
esses tigres pobres da Lusitânia de ao pé da porta
dentro dos bares as raparigas vigoram como velas
os homens mais velhos compram cigarros
junto ao urinol oxidou de desemprego a máquina de preservativos
eu penso num rio em como seria ser um rio amado por ti
longe desta gente igual a mim que se te não iguala
longes branqueados de aldeias no veludo dos montes
fumos níveos esfarrapando os olhos de gaze rostos no céu
cortinas todas cagadas das moscas transparecendo velhas
senhoras que esperam o mensageiro da final côngrua
estou aqui há uma eternidade mas não me demoro
espero o teu amor mas pode não ser por mim nem por
aquilo em que me tornei ao cabo de tantos versos
arrancados às ruas à força de olhar tanto tão cegamente
o dia virá talvez em que o rio suba as amuradas
e nos toque as mãos como um velho conhecido da escola
quando dentro de nós começaram fermentando os livros
suas invencíveis insídias suas prolongadas mentiras
sigo ao longo da avenida do rio não tarda chegarei
e depois alguém que venha por amor levar o menino
tocado pelo Tempo dentro de ti meu outro nome.
Alguns Livros
Espero que alguns vos sejam de equivalente importância.
La Soledad del Manager – Manuel Vásquez Montalbán
Sonetos a Orfeu – Rainer Maria Rilke
A Mancha Humana – Philip Roth
Hotel Savoy /A Lenda do Santo Bebedor – Joseph Roth
O Náufrago/Trevas/O Sobrinho de Wittgenstein/Antigos Mestres/Betão/Perturbação – Thomas Bernhard
Livro de Memórias – Teixeira de Pascoaes
Mendigos e Altivos/A Violência e o Escárnio – Albert Cossery
Teatro I e II – Harold Pinter
Romeu e Julieta – Shakespeare
Coração, Cabeça e Estômago/Novelas do Minho – Camilo Castelo Branco
O Ajudante/Jakob van Gunten-um diário – Robert Walser
Além – J.-K. Huysmans
Maigret & Pietr, o Letão – G. Simenon
Impiedosas Imitações e Pias Visitas
Poema: Cafés Avenida e Paris, Viseu, tarde de 24 de Março de 2008
Foto: Viseu, manhã de 8 de Março de 2008
I
Florescem os dias no coração
que de si mesmo é floração
nocturna embora.
Traz o vento um hálito de neve
longe caída
como sempre longe cai e se reergue
a vida
esse alheio espectáculo cuja piedosa imitação
impiedosamente nos oferecemos
em caídos dias de florescidas
neves.
Infinitos improváveis números nos
contamos e representamos
quantos passos quantas batidas
quantas ruas e avenidas
quantos tantos nadas nos somamos.
Dos lábios a poesia nos aflora ainda
vocábulos que foram das bocas
de sepultados romanos
soldados mercadores ciganos
na terra solta de um verso
digamos
português.
Os olhos de uma cadelita prolongam
a trela
dou por ela farejando ossadas
digamos
romanas
na cidade condenada ao futuro
isto.
Queimam-se-nos os pés nos mosaicos pobres
das frias manhãs da mais deserta cidade
a de dentro.
Nunca mais fomos atlânticos
por mais que à praia tenhamos ido em pequenos
pequenos somo-lo agora
agora e para sempre desejando
refeições económicas sapatos duráveis
no baú fechamos os retratos dos amados
como a empalhadas rolas
de uma altanaria que deu já
o que nunca teve a dar.
Também
é certo
somos arrepiados de quando em quando por
inomináveis alegrias
tem dias.
Esta mesma manhã colhi de uma página de jornal
dezasseis poemas de rica composição e compostura
e fui feliz e absurdo num café onde me
dizem ser possível abrasileirar um engate
ou assim.
Certo é que lhe sucedeu a tarde
outra baça lâmpada que Alice reconheceria
na mesma noite do próprio dia.
De um outro lado nos vem chegando
a asa aérea da borboleta respiratória
forja-se-nos o duro coágulo que às neurovias
obstruirá
instituirá
o fim dos dias
tenho sabido de casos assim
as pessoas muito bem em suas casinhas
e então a notícia
o alegre pânico na rua
fulano de tal coitado
já está
de um outro lado.
Envelhecemos quando menos e menos nos chegam
notícias de nascimentos
quando a necrologia se nos atém como
desporto de eleição
nos jornais a página dela
é a das palavras finalmente cruzadas
solucionadas finalmente pelas agências
com a conivência de Deus
e Seu economato.
Enquanto porém nos não
como nas finanças e nas padarias
toca a vez
é talvez mais avisado reler
Caio Valério Catulo
e Martin Lindsay
um senhor que foi à Gronelândia e
voltou.
Tudo é tão ultimamente:
o bater da porta do urinol
a desabitação das igrejas
a fúria existencial dos taxistas
as janelas como olhos de cegos
o musgo nas têmporas das fontes
o cigarro tremendo um pouco na mão que não escreve
o feijão gomando os intervalos dos dentes
a cerveja respirada por invisíveis mergulhadores
os frios coitos dos casais arrefecidos
as putas de lotaria ao sorteio das ruas
a itália repentina de um par de calças
uma mulher definitiva e litoral como uma praia
uma praia deitada e nua como uma mulher
uma coleira ortopédica tornando busto vivo uma cabeça
a inominabilidade da alegria e os mil nomes da amargura
aquele casaco castanho sem corpo dentro à passagem
as vozes articuladas dos móveis na noite da casa
Raul Brandão no Chiado
um renque de choupos na retina de meu Pai.
Darei o peito em breve
ao dédalo de sapatarias e expositores de pão-de-ló
nunca mais serei criança fora de versos
à poesia volto como os onicófagos aos dedos
tudo me é possível nos grandes marços
da minha vida
só dói um pouco a princípio
depois as sinapses negoceiam tratados indolores
com o idioma
bruscos clarões de couros queimam de negro fósforo
as estepes
e é que são
cavalos na neve
longe caída
como tudo longe dentro cai.
Frente a burguesas vivendas amarelecem relvados
e crianças
insones como epifanias de mesas-de-pé-de-galo
meninos e meninas a quem basta
o papel de um areal e o lápis de um molusco
para a mais duradoura escrita
em jornadas atlânticas a que não voltaremos
dado o preço dos sapatos das refeições
das calças italianas.
Sabemos e concedemos
por humanidade
que o coração é um acontecimento local
com implicações de âmbito regional.
Os homens que foram à Lua
terão visto isto
como eu vejo nas montras o pão-de-ló
os sapatos caríssimos.
Como quando
lançados nas estradas
aceitamos a lança contínua
que aos peitos nos sansebastianiza
a condição viajante
parados dentro do olhar
que à sangria de laranjas do crepúsculo fixa
coleccionador.
Mais terrível é ir ao barbeiro e descobrir
no espelho
o quadro do menino-que-chora.
Também
na velhice
as mães se nos põem a fosforescer como
senhoras-de-fátima incontinentes
de súbito amargas
como um longo poema
ou
um longo jantar
com estranhos.
Se mamamos das máquinas o leite quente
mais válido nos resultará um verso de água
à beira de uma barragem que hidroeléctrica
é a flor do coração de abertas comportas.
Digo isto assim porque me tornei impossível
outro modo e outro tempo.
Parei nisto vai para meio século.
É sempre possível não ter isto em conta
como incontáveis são
os passos as batidas
as ruas e as avenidas.
Importa-me lá muito.
Às cinco da tarde em ponto
desfolho pelas mesas e cadeiras
um olhar de gardénia.
Um velho que aposta no totoloto
conta as pétalas e regista o número delas
sacana do velho
com esta idade óssea
e a apostar ainda no futuro
úrico.
Único
púnico
guerreiro sozinho a minha flor de cem anos
antiga rosa que com o coração
trava a impiedosa imitação.
II
Sento-me nesta sala branca à espera de uma palavra.
Todo o idioma é todo uma sala-de-visitas.
Cada um de nós na sala é um tu prometido.
Valemos nada cada um excepto cada palavra.
Quero ser visitado enquanto olho cortinas.
No pátio de gravilha enferrujam limoeiros.
Restolho de risos? Talvez meninas
correndo rastos de meninos poedeiros.
São-nos brancas as noites fátuas.
Tais santas de quartzo, luminescem frases.
O horário das comidas, o asséptico assentamento:
quantos filhos tivemos, e onde, e contra quem.
Lúmenescem graves cascatas brancas têmporas ao lado.
Pulsa nas fontes a dolorosa água madura.
E na boca um travo de couro veste de blusão a palavra.
Toda a criança nasce velha p’ra ser futura.
Estou sentido na sala branca de nenhuma espera.
Torno-me parecido com a mãe do meu vizinho.
Os telejornais garantem a chegada da primavera.
Mas onde o pássaro rubro como a flor do azevinho?
Estou sem tudo nos nadas somados, à desespera.
Correcto oficial do economato de Deus virá um dia.
Chorarão rápidas gotas as mulheres da copa.
Nunca faltei uma gratificação, senão a própria.
Agora, calma. Agora as moscas.
Passam e bradam, violetas, as toscas
do operático cimento, fora, no pátio:
duras gangas sopranas, de homens, cantores.
Um cão rápido – e no espelho-de-água
lentos peixes que a cor diluem escamada.
É o tempo – são a hora – da floração dos corações.
Uma pessoa tem de ser pessoa de palavra.
Disseram-me isto há muitos anos.
Recupero, só na sala, brancamente, as visitações.
Mas vêm tão poucas vezes: coitados,
sujeitos a sapatos, calças e imitações.
24/03/2008
Crowe da Manhã
Sabeis aquele filme com o Russell Crowe, não m’alembra agora o nome da película mas se calhar é Uma Mente Brilhante, em que ele faz de génio matemático com uma grande pancada na corneta? A personagem (que no fim da história ganha um Nobel e tudo) é assolapada por manias-e-teorias-da-conspiração, a ponto de descortinar bélicoespionágicas mensagens cifradas em tudo quanto é publicação – etc.
Bem, eu não sou nem matemático nem brilhante – nem para lá caminho, longe disso. Mas, de facto e deveras, também tenho e transporto também uma mui razoável avaria na cabaça. Modos que, esta manhãzinha pós-pascal, peguei em metade do meu orçamento para o dia e zás!, fui-me ali ao quiosque do Rossio e troquei as quatro moedas de vinte cêntimos por um exemplar do Correio da Manhã.
Desandei, desandei, desandei – e arribei ao Café Paris, ao cabo da Avenida Homem Ribeiro, sítio de dores e fumadores que gosto de integrar armado em poeta calado e ensimesmado. Vai daqui, pus-me a “des-cifrar” os dezasseis poemas infra: se vo-los apresento todos em itálico, é pela razão de, deles e neles, nenhuma palavra me ser da lavra. Todos os “versos” foram “ex-traídos” da última página da edição CM desta manhã fria e tranquila de 24 de Março de 2008.
Òbrigadinhos.
Disse ontem que foi levado anteontem
pela mulher cujo cadáver volta hoje
a ser presente.
Debate-se com um problema
apesar desta situação.
2
Atirou um saco para o chão quando
na companhia do indivíduo em liberdade.
Resolveu mandar no mesmo dia
durante toda a operação.
3
Ontem um convertido
preso novamente
saiu e aconteceu.
4
Uma delas, com gravidade, disse
que foi chamada a resolver
a forte medida de co.
Considera justificadas todas as medidas.
5
Inicialmente detido por coacção,
para além dos mortos,
está fora de questão.
6
Havia violência dos insultos
acerca de um menor
filho do salão paroquial.
7
O tribunal preparava a pesada
última hora.
8
Quatro pessoas,
motivo de orgulho
para todos os chineses
menos dois,
ficaram feridas.
9
Vila alentejana chegou a ser
possibilidade de um boicote.
Zona onde a razão determinante
se desviou, continha seis,
sete pessoas.
Perdeu o reconhecimento
por posições muito críticas no hospital.
10
Mal saiu de Galegos, Penafiel,
envolveu dois casais que
no ano passado
tinham morrido.
Nos três primeiros dias,
foi encontrado em Faro,
Serpa e Cartagena, Múrcia,
em Espanha.
A GNR tentou ainda introduzir-se,
mas a PSP promete polémica e
pancadaria na capital algarvia.
Desta vez, além disso, saiu
a subscrever, no mesmo dia,
a autoria do restante material
espiritual.
11
Ficou livre e perdeu,
quinta-feira à tarde,
seis anos.
Realizou a visita
em igual período do ano passado.
12
O suspeito
está a investigar equipamentos
de uma nova consciência
como protesto
ao fim de três dias.
Crime igual apoiou,
em Moçambique,
o Papa, que,
conhecido por extremismo,
deteve, àquela hora, um
juiz judeu.
13
Na via pública,
sem burocracias,
o original extraviado
foi roubar.
14
Mais mortos do que
residências
em 2007.
15
O padre
obriga toda a freguesia a recordar
que, de forma rápida,
os divorciados,
face ao baptismo,
foram assistidos
com
violência.
16
Antes de decidir,
(mínima 13,
máxima 17),
consulte o seu
Rei da Manhã.
Princípio
não muitos são os fins mas um só.
Baça lâmpada é de hoje a manhã
congelando igrejas e calçadas e a pobre gente.
Refaremos sem moedas nem algibeiras
uma volta mais pelo comércio das ruas
das praças dos jardins caídos como do céu
dos jardineiros esses mudos costureiros da cor.
Ao espelho do barbeiro longamente recolheremos
do mesmo rosto matinal a nocturnidade
mesma que pelas ruas a cada olhar
se acolhe em escura transparência.
Já do tálamo desertámos cedo
para que isto fora possível.
Já pelas ruas recomeçamos fluentes
cosméticos mais que cosmológicos os corpos
nossos
em princípio.
23/03/2008
Saudadárvores, Urbanamente
Saudadárvores, Urbanamente
Estou aqui.
Vim para instituir, entre casas, ao cabo de ruas,
que as árvores são os mapas venosos dos corações.
Ao cabo de ruas, entre casas, tenho saudades delas.
Têm-me sido um bálsamo refrigério sempre,
sempre que a amargura incita suas fogueiras ao meu caminho.
Nestoutra floresta, os íncolas revestem-se de peles mortas,
bebem leite chilro, tossem tossezinhas civilizadas,
compram cornetas electrónicas aos filhos, não passeiam
um verso sequer do arbóreo incunábulo da nostalgia.
Mas, não!, que direito tenho eu a arborizar os indígenas?
Cada um é de suas sendas, cada um azinhaga
como pode, mais do que quer.
Sei apenas que lhes digo bom-dia, aos mapas venosos,
antes ’inda de abrir os olhos, cada dia.
Confio muito na educação.
Confio muito na educação e não quero que me esqueçam, elas.
Visitei-as muito, em outras albas grisas.
A noite retrazia-mas pela mão: como a meninas
altas e magras, escurecidas, tremendo de frio ao vento.
Na contraluz da contranoite, apareciam verticais como poemas,
elas todas.
Bonitas e poderosas como frases lidas de lado.
Não digo místicas: digo-as frásticas, fáticas, poderosas
e bonitas.
Todas de tinta-da-china no ar vegetal.
Palimpsestando todas a escrita primacial do Tempo,
todas gráficas na leitura improvável das nossas vidas.
Desdobravam ruas entre elas na terra vegetal,
ruas sem cabo possível, infinitos versos novos
que os passos sublinhavam e sublimavam
uma a uma, um a um.
As que piscavam pássaros, as que ofereciam frutos,
as que respiravam como amantes saciados,
as que pensavam para fora folhas e folhas, páginas e páginas,
livros vivos de ramos inumerados,
uma única página lida do alto da montanha.
Sei-vos, seivas, de outro sangue.
Expostas ossaturas à carnagem do vento, quando
arrepia sentir delas a voz por assim dizer
humana.
Um homem está entre árvores como entre pensamentos,
como uma mulher está dentro dos filhos.
Entretenho-me agora entre comércios e comedores,
gosto de ver a brisa dando nas lotarias, nos lençóis
que caem das varandas como colchas pobres
para procissão laica de dias ditos úteis.
Aos, como hoje, domingos, é mais difícil,
um pouco-nada mais difícil.
O encerramento vespertino das igrejas evidencia
a suma indiferença de Deus,
o Mesmo que nunca trepou, em Menino,
a uma árvore.
Vim para dizer isto dos mapas, dos corações, das lotarias
a que o zéfiro empresta números voadores
e volantes coruscações de papel, à sorte.
Mas é a minha vida: rumorejam-me agora
as conversações da pobre gente entre garfadas,
ângulos de copos com bocas e pescoços,
trânsitos da digestiva mortandade.
Das árvores, não mais que a taxidermia dos livros,
arrumados em casa como postais alfabéticos
a reler no turismo invernoso das noites,
as glaucas noites eléctricas sem Lua das casas,
onde a madeira não chia o mar.
O lápis tomba da mão como um tronco mínimo,
a mão sobe-me à cara para afagar
um cansaço urbano não silvícola,
do coração a introspecção venosa oblitera
cartões antigos de um único amor único,
precário é o domingo no café eléctrico,
pela tarde, ao cabo de ruas, entre casas.
Também nem vejo por que admiração:
todos teremos sido, entre árvores, outrora, pascais:
mortos e renascidos em três passadas,
três dias para quê.
Se longamente amamos alguém, é entre árvores.
Ou foi.
(Em Ur havia um bar
o bar de Abraão
palavras cruzar
sem ter solução.)
Na roda-rosa dos tempos-ventos,
um sopro de cordas quartetando atrás,
um vento luminário de festifoguetes,
o perfume da sardinha rechinando lumes
como se o mar ardesse em terra: e
arde.
Todas as circunvoluções pregando o mesmo
Cristo cerebral, o das igrejas fechadas,
dominical.
A cidade, ai a cidade!, vã e fértil,
ubérrima de cabritos empregados na banca,
nas repartições, nos quiosques, nas mercearias e
nas bibliotecopastelarias que, sumas, condensam o papel
das árvores.
Estou aqui.
Este é o meu tempo. Um vórtice de todo-antes
para um depois-de-versos.
Na cama, o vento lá fora hipotalamando os sonhos,
os acordados sonhos gentios, que não gentis,
de um poeta desprovido de Deus
e de arvoredos.
Na cama, abrindo por dentro os olhos fechados,
tal que uma simples barragem hidroeléctrica
brote em torno tantas ilhas-do-tesouro
quantas pívias-crusoe batidas à conta
de mulher de robinson nenhum.
As árvores, as árvores, ar, ar, ar, árvores,
azar-vores-vozes.
A trigueirita ruiva que flameja na loja de roupa.
A velha-muito-velha que s’embacia de velas-de-altar.
O poder versalheseano dos mortos absolutistas.
O absurdo, aliás mínimo, do versilibrismo
o mais funalunanoctâmbulo.
A essência narcoléptica da felicidade.
E tão poucas árvores na cidade.
Dizia-te que me perdi, certa ocasião, em Londres
lida do alto, não tinha ’inda eu
abertos os olhos.
Saudava eu aqui e além – e do meu coração
subia a fundamental aceitação
da cidade, de seus comedores,
suas árvores, não minhas, gravadas em pedra,
longe, dentro de aqui,
onde estou.
Texto: Viseu, tarde de 23 de Março de 2008
Fotografia (com tratamento especializadíssimo de S.B.): Caramulo, 23 de Fevereiro de 2008
Valsa do Homem com Boneca - seguida de - Na Noite de Comboios
Viseu, entardenoitecer de 20 de Março de 2008
Vi o homem dançar com a boneca,
tocava a banda transeunte, invisível.
Era uma valsa, como todas triste.
Havia uma furiosa alegria alcoólica a partir do homem.
A boneca, como todas, não era alegre.
Devia esperar por ele enquanto ele dançava ao peito dela.
Isto era outra vez em XIX, esta tarde.
Os burgos, sabem?, cimentados a bispos
e gente que pena e pune – mas não
valsa.
Eu vejo.
Tudo é tão de borla, ver.
O mundo passava e nem olhava
0 homem valsar com a boneca.
Tocava a banda invisível, transeunte.
As pessoas, também, desenrascam-se como podem.
Também nem toda a gente tem boneca.
Nem toda a gente sabe dançar.
Isto foi uma tarde, em Viseu.
Nem só Viena de Áustria valsa, cada
Dia de Ano Novo.
A boneca olhou-me, porém,
rápida:
era Março e ela sabia-o
ao peito dele.
IV Sonetos em Prosa
Viagem Pombal-Mangualde, noite de 15 de Março de 2008
I
Estou na noite de comboios.
É uma fria noite de comboios.
Há três, quatro corpos na plataforma da gare.
São corpos como o meu: vigiados pelo relógio imóvel.
Sinto com grande nitidez o ranger da eternidade.
Estive num café vazio: no televisor ardia futebol.
O toldo negro da tenda noite estendeu-se sozinho.
Houve árvores entre o café e a gare, terríveis, desoladas.
Pareceram-me mulheres sem filhos, negras, à espera.
Um homem masturbava-se no urinol, a porta entreaberta.
Olhava de lado como um peixe.
Vi-lhe a mão rápida, de pedra.
Entrei no bar da estação, desci a um copo.
As palavras emaranharam-se-me aos pés, heras.
II
Estas são algumas palavras.
Vão chegar a algumas pessoas, entrar nelas.
Vão convocar nelas, delas, a secreta viagem própria.
Mas o que digo – é só na minha vida que digo.
O que digo – é só daqui até Mangualde.
Viajarei sempre antes em cada depois.
Também vigiarei: a morte e o comércio, os animais e as árvores.
E o aroma desenhando sozinho a palavra rosa.
E o homem masturbando-se no fedor a mijo.
E esta força motriz, mortífera, matriz.
Dá-me umas moedas para o bilhete de comboio.
Recorda-me numa frase tua.
Percebe que percebi um azulejo de água numa mata.
E que vivo como vou morrer: entre comboios e sonetos.
III
No comboio, a galeria de rostos.
São os rostos dos mortos do futuro.
Estão numa cor para além do branco.
Sinto à passagem as palavras de cera dentro dos rostos.
Cera, hera: cara, cara.
A tristeza enquistada como uma flor dura neles.
Cada olhar tentando não desviver de todo.
A indiferença coetânea de cada um.
Os títulos que empilham como medas.
O irrisório das nomenclaturas.
Duas gajas fotografam-se estupidamente de telemóvel.
Riem-se num cristal muito estúpido, as gargalhaduras rachadas.
Um gajo de cabelo rapado incomoda com reggae de portátil.
O Ultimatum de Álvaro de Campos é superior ao Manifesto de Marinetti.
IV
Ou então ir comer um hambúrguer, ser feliz.
Não pensar na morte da bezerra – ou na da mãe.
Fumar longos cigarros perante um rio.
Ter uma mulher que seja uma amurada.
Descer numa estação diferente da escrita no bilhete.
Entrar numa pensão, cumprimentar em torno os fantasmas.
Morder devagar um sexo lavado, uma maçã limpa.
Ter dentes para tal.
Corpos como o meu entre comboios vão chegar.
No comboio, a galeria para além do branco, negra, à espera.
Para além da dura flor coetânea dentro do rosto.
Medas de cristal vivo.
Mangualde rápida, de pedra.
Estarei antes, tentando cada.
21/03/2008
Uma Santa Manhã
Viseu, 21 de Março de 2008
Sexta-Feira Santa com a Primavera no bico.
Oito e picos da manhã, um sol largo como uma rosa no frio muito puro.
Ideal para aquecer os joelhos na esplanada do Rossio.
Uma bela chávena de chá de limão, um saco cheio de pão.
Não trouxe livros: a manhã é para ler.
Passa um rapaz de barba suja, os dentes estragados.
Vai a sorrir-se sozinho de qualquer coisa: parece um poeta (pelos dentes, não pelo sorriso).
Está ali um senhor polícia.
É uma cara fechada nos óculos escuros.
As pernas afastadas em posição de mola-da-roupa.
Coitado: Sexta-Feira Santa e ele ali, sem poder escrever um poema em prosa.
Vale-lhe que aquece os costados ao sol da rua.
Chama-se Rua da Paz, a rua: tem um polícia e dá-lhe o sol.
A fonte redonda canta água.
Em torno dela, flores disciplinadas por remoto jardineiro municipal.
Abre cedo, o quiosque dos jornais.
Uma placa de cabeleireiro: Salão Azul.
Ando aqui sentado a ler a cidade.
(O Rui nasceu aqui, mas não foi hoje.)
Uma excursão de espanhóis.
Empoleirada num banco da praça, a guia ora.
Um correctíssimo cavalheiro de correctíssimo jornal desportivo.
Não sei o nome dele.
Vontade de levantar-me, chegar ao pé dele e fazer este verso:
– Bom dia, correctíssimo cavalheiro do Record, como se chama?
Não é boa ideia, apesar do sol, da água, do saco cheio de pão fresco.
Agora, além, uma correctíssima dama de luvas de couro.
O castanho das luvas mais escuro que o do casaco longo (mel, digamos).
O chá povoou-me a boca da possibilidade de ter mordido uma árvore.
(Abandonei por momentos a mesa da esplanada, que é vermelha, fui lá dentro beber um copo de água, a rapariga do balcão estava a ler um livrinho católico. Isto aqui em Viseu fia fininho.)
Chá e água no bucho: olha se me tivesse portado sempre assim.
Estou suspenso em doçura: como um feto velho no ar amniótico.
Passa um Veículo Equipado com Ar Condicionado.
Agora, um casalinho de adultos pequeninos: algum café deve ter ficado sem dois matraquilhos da mesa das traseiras, entre grades e vasos de jardineiras.
Ociosa fila de táxis e taxistas: coitados, parecem-me sempre guardiães de Salazar.
O sol nos joelhos, nas coxas: um consolo de gato redactor.
Aquele rapaz além: patilhas rapadas a navalha e um casaco como nunca hei-de ter.
O senhor polícia cruzou a rua, veio tomar café (não sei se está no Regulamento).
Agora, um cidadão conversa com ele.
Talvez falem do que leram ontem: o cidadão, Aquilino Ribeiro, decerto; o senhor polícia, T.S. Eliot, só pode.
(Às vezes, amo a vida de propósito.)
Olha, olha, outro belíssimo casal – ele é pequenino também, ela é de uma largueza de cómoda de quarto.
Ela empurra brandamente um carrinho com bebé dentro.
Ele olha em torno, vigilante como um patriarca mínimo.
Todo o cuidado com os filhos é pouco (sobretudo antes de feitos).
Olha, estou a sorrir-me: dentes estragados, pareço um poeta.
Acho que é proibido dar de comer às pombas, mas já ripei um bocadito de pão e daqui a pouco, à passagem para casa, deixo cair as migalhas aos pés delas.
A terra rodou, mudo de mesa para um pouco mais de sol.
Explico a manobra ao empregado.
Ele diz:
– Tudo bem.
E está, realmente: está tudo bem.
Extraordinário: há pouco, atirei uma migalha para o chão.
Havia pomba nenhuma.
Uma acaba de filar o bocado.
Já tem outra a disputar-lhe o tesouro.
Olha: já arrulham, contrariadas.
Estas voadoras não conhecem dias santos, pois que todos lhos devem ser.
Os automóveis acordaram.
Passa o camião dos Talhos Irmãos Oliveiras: estranha coisa, em dia de comer peixe.
Passa um carro fúnebre vazio atrás: temos de esperar por Domingo.
Falta pouco: não sei para quê.
Solto uma escarróbia no guardanapo de papel, embrulho discretamente a prenda, é uma bolinha molhada ao lado do caderno.
Passa um velho com uma saqueta de parafusos na mão: que se terá desprendido da vida dele?
Isto é tudo muito bonito.
Às vezes, o mundo é pela primeira vez.
Um crânio careca e brunido, além.
Um rapaz de bicicleta, dentro de um capuz branco.
O número 50 escrito num autocolante de táxi.
(Qualquer dia faço aquele número.)
Percebi finalmente, caraças: o senhor polícia está de guarda à agência do Banco de Portugal.
Portugal é o meu País.
Como crias ao pé da Mãe, três bancos de uma assentada: BPI, Banif e Caixa Geral de Depósitos.
(Só espero que o senhor polícia não suspeite de que estou aqui a rabiscar coordenadas de assalto, que até estou, mas ao ouro da manhã, não ao outro, o vil.)
Limpeza a Seco numa Hora – diz uma carrinha cor-de-laranja sem abrir a boca.
O rádio do senhor polícia vai grasnando, de quando em quando, umas tosses eléctricas: palavras que soam a voz de pilha.
O empregado começou a abrir os chapéus-de-sol da esplanada.
(Não abra o meu, senhor empregado.)
Autocarro de Oliveira de Barreiros, uma senhora de casaco cor-de-xadrez, uma rapariga com um ramo de flores-de-loja-para-altar, que isto aqui em Viseu fia fininho.
Dois rapazes e duas raparigas, de ar prototípico bloco-de-esquerda, perfumam, à passagem, um rasto de xamon.
Há um carrossel infantil na praça: montra dos frutos do sagrado matrimónio.
Estou aqui todo contente.
Não tarda, iço o cu e vou dar uma volta.
Mas primeiro vou levar o pão a casa, que é para isso que ele nasce.
E todas as manhãs de nascimento de pão são santas, que o sabemos as pombas e eu muito bem.
Santas e com a Primavera na boca, como uma memória de limão, uma mordedura de árvore.
20/03/2008
Toda a Gente, Ninguém e mais Seis
quando, ninguém, bordo de passos as ruas.
Cedo a rimas e a tabernas,
componho odes não modernas
e em petroleiros vejo faluas.
A minha vida é um papel amarelo
do sol que lhe dá, a que se recurva.
Os óculos escuros daquele senhor na minha cara,
minha mal dormida noite no cansaço
daquela senhora comprando tangerinas.
Passam então seis meninas:
que gráceis flores, de gaze brisas…
Tudo de que, ó eu, precisas
é de comprar ’mas tangerinas.
Mas não há faluas. Ele já nem há rios.
Todo o ninguém faz de toda a gente.
Ele só há ruas e desvarios
de alguém que passa, indiferente.
A estreme beleza do homem azul
à porta da oficina oleando um mecanismo.
Às mãos dele, lúbricas, na peça
de duro metal humano, solar, azul.
A velha da lenha arrastando o carrito
de gravetos crucificados, pascais.
Os soluços que sobem do coração ao diafragma dos olhos,
que a alegria é tão irremediável quão sua contrária.
Eu agora vou estar sempre aqui.
Exerço uma justiça inalienável.
Tenho p’ra com o comércio o modo amável:
quanto custa a chita? e o organdi?
Pulsa o sol membranas de terileno.
Uma linfa baba lunalbuminas.
’inda me lembro de, em pequeno,
achar, à brisa, gazes, meninas…
Agora é tudo onde floresta foi.
Máquinas desventram túneis p’ra que máquinas
possam adentrar ventres, rápidos, rápidas.
Chama-se Cidade, mas há ’inda uma
zona histórica muito interessante,
umas igrejas e tal, e tal uns bares,
a estátua de não sei quem.
(Como falo p’ra ninguém, toda a gente
sabe de que falo: na Cidade,
a banca de tangerinas é um espelho de ouro.
E não há quem borde tão bem
quão um ninguém.)
Uma mulher toda ancas passa a trote,
seus relogiovários marcando a hora:
a tempo nutrir de sebo o filhote,
que, se o pai sabe, pod’ (até) ir-se embora.
É preciso todo o cuidado com o homem da rua.
Dele é todo o poder, del’ a força toda.
Os homens são muito poderosos quando param.
É absolutamente necessário dominar o código comercial.
E esse milagre venatório dos olhos das senhoras?
Quem o peregrina além-oftalmologia?
Olhos que parecem a mesma luz do dia,
olhos sem olhar, olhos sem senhoras
dentro, caramba! Mas, enfim,
toda a graça será um dia connosco,
embora um só dia:
ninguém nos leu
estes versinhos em pequeninas letrinhas
do código comercial.
Por isso, ninguéns,
todos bordamos,
em justiça plena,
as ruas, onde as tangerinas.
É então que passam as seis meninas.
19/03/2008
Mentecapta - nº 44 de Rosário Breve com direito a intróito e tudo
o preço do petróleo que paga o terrorismo anti-terrorista
a expulsão do padre da Praia do Pedrógão
a morte de Arthur C. Clarke
as unhas dos pés de Jorge Nuno Pinto da Costa
os Chineses no Tibete Olímpico
o senhor Durão Barroso
o piercing na língua
o “acordo” “ortográfico” também na língua
os poetas da net
a CGTP e os Amanhãs que Cantam no Chuva de Estrelas
a etnia cigana e o sabão
as 30 mil flores cortadas para nada, certo dia de 1986, na Abadia de Westminster
o senhor Rui Rio,
Felgueiras: the landlady
as roubalheiras impunes do Poder Local
a tropa
os coimbrinhas
o Scolari
o senhor Manuel Monteiro
e o casamento de Sarah / André, certo dia de 1986, na Abadia de Westminster.
Tudo isto conjuga a mais gritante felicidade aos pavilhões auditivos de um triste alegremente devotado ao ofício de sê-lo. Posto isto, deixo-vos a crónica nº 44 da série Rosário Breve, a partir de amanhã em papel e online n’ O Ribatejo do costume.
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Mentecapta
Assoma-me por vezes tão perfurante fadiga, que a temer chego me suma, de tanto me assumir ela. Digo: uma fadiga da pátria piolheira e do piolho patriótico, um e outra querendo, não sabendo nem outra nem um escrever, ensinar-me-nos ortografia. Neste rincão que ladra e morde, parece que o inimigo é a consoante muda, a qual, muda embora, mas precisamente porque não muda, nos permite o aroma da memória: a etimologia, a raiz, o cadinho genesíaco que nos faz ser, precisamente, portugueses.
Esta gentinha dos “acordos” (plural que se lê “acôrdos”, não “acórdos”, como eles dizem), esta lama que de alma só tem as letras trocadas, é tão incônscia e divertida, que até apita nas curvas que os aviões dão a caminho de Bruxelas ou Brasília. Agora, depois de 1911, depois de 1945, depois de 1986, depois de 1991, voltaram à carga com um disparate “ortográfico” que só significa uma coisa: como não têm nada melhor que fazer no intervalo de nos roubar, decidiram, entre cachaçadas de caipirinha e beijinhos de cálice de porto, obrigar-nos a aceitar que a Língua Portuguesa é para ser escrita conforme o cânone telemobilístico SMS. Porra e chiça, que é aleivosia! Gaita e catano, que se não pode ser crítico sem se saber riscar o diacrítico!
Não, isto não é acintoso amor meu à verruma catilinária. Isto é só saber escrever português, idioma cuja assumpção sempre me foi sempre, e me será sempre, a gema preciosíssima e o vero tesouro único de um palheiro nacional onde o melhor muar é o das patas no ar para efeito de coice em quem os tem, ortograficamente, no chão.
Fadiga sinto, mas não vontade de desistir. Serei sempre vogal e vocal, jamais consoante os ventos que despassaram pelos ares as turvas turbas de arribação legidecretadoras. Triste corja, que de mente só tem parte – e logo a parte capta. Com aquele “p”, claro, que mudo nunca foi.