I
História Lenta com Hortênsia mais Dois Azuis
Aconteceu-me há momentos uma coisa que vos quero contar.
Não vou escrever um poema sobre o que se passou.
Vou só contar.
Por volta das seis da tarde, saí para descansar os olhos.
Subia pelo lado esquerdo da avenida, o lado do parque.
Do lado oposto, vinha descendo uma mulher jovem.
Vestia uma blusa azul-celeste.
Vinha longe.
Parei, voltei-me para o parque e tirei algumas fotografias
ao chão vegetal.
A luz era baça, outoniça
(ainda é, posto que escrevo vinte minutos depois).
Quando me preparava para colher a imagem de certa hortênsia azul
que ali vigora em solidão, ouvi nas minhas costas a voz:
– Boa tarde!
Ela tinha parado no passeio dela para me dizer isto.
Virei a cabeça e mergulhei naqueles totais olhos azuis
(como a blusa dela e como a minha hortênsia).
Eu dei-lhe a boa-tarde e levantei a mão em saudação.
Nunca a tinha visto por aqui.
É uma rapariga doente.
Tudo dela emanava a outra dimensão, a inexpugnável cosmogonia
da doença mental.
Ela deu-se por satisfeita, prosseguiu a descida nos seus
passinhos chineses, Ariadne enrolando o fio invisível
da vida dela.
Eu fotografei a hortênsia e subi até vós.
Eu e ela ficámos, por assim dizer, quites:
nada posso fazer quanto à loucura dela, ela
nada pode fazer pela minha.
II
Dezoito Rápidos
1
Ardem no lar cartões impressos.
Dissipa-se o corpo das embalagens.
Restam, legíveis, as letras.
Igual à vida e à memória.
2
Agora a noite abriu-se como um guarda-chuva
no ar enxuto e superlativo da montanha.
Nada conheço tão humano e tão só como isto:
a noite de domingo.
É quando, em casa, acelera dos retratos
o envelhecimento: crianças e mortos
habitam rapidamente o domingo à noite.
Delas e deles a eternidade fosforesce – e cresce.
Vem daí comigo às vegetais ruas do parque.
Enegreceu de individual sombra a minha hortênsia.
É agora o mais duro vidro, a água do espelho-de-
-água: vidro que a pedra pulveriza da Lua.
Que a esperança de mais te toque, a cabeça
erguendo a ver dos aviões altíssimos a ínfima
luz.
Podes vir, não está frio. Tudo é tão de memória,
sabes: um domingo único.
Se te apetecer dançar entre as translúcidas
raposas que os olhos ardem na sombra,
dança para elas. Também elas descansam
de correrias e de lebres.
Um sossego finalmente humano nos tocará
em sorte: e na viração respiratória, verás,
as árvores hão-de marulhar benignas
lamentações.
Agora abro-me na noite. Tu não és.
O domingo era.
3
Minha Mãe
andam homens levantando pedras do chão
perseguem águas enterradas no húmus
têm mulheres e crianças em casa
pela tardinha dão-lhes sacos de pão e carne
eles aceitam
guardam um pouco para as mães deles
eu faço isso com versos
todo o dia no mesmo chão
minha Mãe.
4
Foi em Janeiro de 1974.
Era como respirar cristal, ser tão novo.
A flor da pobreza não era menos colorida
do que as outras.
Era vivo o senhor Mário Janeiro, por exemplo.
Ele e o senhor Lopes da Dona Luísa.
Todos éramos vivos.
Lembro-me de a geada fazer estrelas nas plantas.
Lembro-me da humildade dos cães, até os ferozes.
Ia com o Quico à beira da Vinha do Faria.
Havia corridas de rapazes.
Deixaram-me entrar.
Corri muito, foi muito bom.
O ar respirava-me o sangue como
o vento o rio.
Devo ter pisado estrelas de geada, pois
era manhã muito cedo.
Naquele tempo, a geada perdurava como
uma ideia, por exemplo.
A ideia do senhor Mário Janeiro, a do
senhor Lopes da dona Luísa: viver
para sempre,
por exemplo.
5
É uma praça breve, dá para três ruas.
Tem farmácia, padaria-café, alfaiataria.
Tem candeeiros de pé verde e ardente cegueira-néon.
Todas as casas mansardam sob a Lua.
As pessoas reconhecem-se todas, manhã muito cedo.
De um canto, aflora, longe, a visão da menagem do castelo.
Quando chove, cheira a rio e a barcos.
As viúvas corvoam pelo comércio, ínfimas, pressurosas.
Não há crianças.
Quando sai um funeral, é de uma velha.
Só o alfaiate é homem.
À farmácia e à padaria, duas viúvas presidem.
Eu vivo só numa das mansardas.
Chamo-me Teresa.
Nunca me casei.
Tenho olhos azuis, cor desta blusa.
6
A mão pontuada de contas de vidro negro.
Um colar se desfiou algures no tempo.
Recolhi-as como a humanas camarinhas:
ou a portáteis cegueiras que até o fim
berlindaram olhos duros.
Conheço de pessoas iguais contas:
a mão lhes não dou, porém.
7
Ainda ambulo ruas de neve perante meninas
vendendo fósforos apagados para sempre.
A elas e a mim perseguem-nos os lobos familiares,
rápidos papéis negros na noite nívea.
Avenidamos todos enquanto se nos não embota de todo
a saúde – como um mau aço de lâmina
ou um barro mal vidrado.
Recolhem-se os que podem a suas capelinhas.
Murchou muito chilra a flor à laranjeira.
Engastou-se-nos tóxica a opala do coração.
Ainda ambulo ruas de meninas perante neve.
Só não vou às putas, que delas
me sobra a vida, irmã delas.
8
Os anos não perdoam
a culpa que nos deram.
9
Em breve retornarei à rápida noite.
Do meu coração a circunvalação moverá
brusco giz de farolins rubiscentes.
Ou não.
O mais certo é meus sapatos baratos
tartamudearem guinchos de borracha
na vitrificada pedra, como aliás a água,
de domingo à noite.
Volverei, ainda assim, minha silhueta
a seu armário de sombras.
Ele há sempre cabides, aonde
retorno.
Era em Outubro de 2007.
10
Tanta água nos olhos.
Tanto vidro.
11
A gente corre tudo.
Eu corri toda a Vinha do Faria.
12
Era quando eu era uma árvore ao vento.
No palácio da avenida, os Irmãos Marx não eram
marxistas, faziam o que podiam no technipretibranco
de quando o tempo era
como um vento e como uma árvore.
Não vejo nisto nem disso qualquer carcinoma.
Só é preciso estar muito vivo em toda a antemão
de tanto tão por-vir.
Recordo a alegria absolutamente lavada
de minha Mãe distribuindo roupa e sabão.
Era quando vós éreis e vossa Mãe lavava.
As poucas pontes artesanavam rios feitos à mão.
Fluía do comércio uma enxúndia local.
Dizia-se que aquele ourives se dava a pederastias.
Deus era pontual ao domingo, mais que isso
não.
Um clarão de guerra houve, colonial era
como os cromos da caderneta, cada equipa não era
equipa se não tivesse um preto,
o Belenenses chegou a abusar,
até.
A notícia é que sou o vento na árvore,
agora, que eu
agora me vou embora,
mas levo palavras,
como todo o vento que se preza.
13
Sim, ainda.
Uma conta negra na mão branca.
Uma camarinha ácida.
O colar de algum pescoço de neve
retratado na sala,
colhendo rugas no delta de domingo,
nilo de versos,
barcarolas triangulares, bermudadoras
da desaparição.
14
Dez anos colhi, a casa tornando, a flor de gasóleo
que nos cais irisava a passagem das nossas vidas
nunca idas
ao mar.
Vi a lorpa tainha nadando como se nada
fosse,
viver.
Certos, só o recolhimento – e a desistência
que o antecede.
Fui um rapaz breve, as judaicas orelhas
cartilaginando a madrepérola dos pobres
cerúleos.
Coleccionei caranguejos vivos de cegas tenazes
tesourando babugens e glaucomas.
Fui um dos meninos da Escola de Natação
do senhor Araújo.
Além, era a América, mais além o Japão.
Atrás, era a Figueira e o Portugal.
Devo ter ficado: dez anos – ou
43.
15
Nada digas quando tempo já for de nada.
16
A casa onde o coração tosse dele
a infantil tóxica mocidade
envelhece com ele e com ela:
o coração, a tosse.
17
Todos arqueólogos, os avós:
coleccionam fragmentos de osso,
os filhos lhos deixaram
via netos.
18
Há histórias que não quero.
Fui pelas iguais diferenças.
Já não são bem nem malquerenças:
há só histórias que não quero.
III
Um Poema para Dois Rápidos
Dois rápidos papéis azuis na tarde:
os olhos da louca que me boatardou, segunditos poucos
antes da hortênsia.
Tanto azul.
Tanto vidro.
Tanta água.
Tanta pedra.
Caramulo, entardenoitecer e noite de domingo, 14 de Outubro de 2007
(fotos ibidem)
1 comentário:
titulo magnifico.
adorei a historia do encontro com a desconhecida, olhos e blusa azul.
" as arvores hao-de marulhar benignas lamentaçoes...", todo o poema é intenso e enrolado, ou sou eu que me deixo penetrar por todas as imagens que se formam au fil des mots...
"lembrar-se da geada fazer estrelas nas flores", jà vivi essas coisas antes que as suas palavras me devolvam as suas memorias e cheiros.
mas se as nao escrver vou esquecê-las, merci .
Obrigada pela energia e investimento nestas escritas que ponctuam os dias e as noites, sao eternas e porque quotidianas nos roubam ao tempo, prenda maior nao hà, é amor puro ou beleza pura...beijinhos, bonne journée, està sol, e frio e outras nevralgias me atacam a cabeça, mas nao deixar passar a exposiçao de Giacometti, com ou sem enxqueca vou no ir...
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