26/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 776 & 777

 

© Robert Doisneau

776

Sábado,
25 de Setembro de 2021

    Lembranças súbitas & impertinentes, dessas a que apetece logo clicar CTRL+ALT+DEL – quem as não teve/tem/terá já? Calma, não é hoje o caso. Está-se bem aqui na guarita. As casotas de cima, baixo & lados mostram-se neutras, sossegadas, sem bulício nem remédio. Cada um(a) em seu casulo, cada bicho em seu nicho. Antes caladinhos & recatados do que de nós/cada um(a) digam: Antes o teu pai tivesse feito um requeijão… Sim, antes. Lembranças impertinentes & desgraciosas é que não. Como a daqueles tempos em que bebia tanto, mas tanto, que, se caísse ao chão, me teriam de apanhar à colherada. Fosca-se, já lá vai. (Já ’tá cheio?) São preferíveis as epifanias em que algo se nos volve luminosamente óbvio – como por exemplo aquilo do copo-meio-cheio-ou-meio-vazio?, sendo a resposta: O copo está meio. Mas nem isto importa por-aqui-aquém. Alternam-se no mundo-lá-fora massas sombrias & clarões-hélios. Este papel mesmo muda de cor, rosto, pele, tensão. Jorra música do aparelho eléctrico ao canto-poente do cubículo. Talvez amanhã saia a dar uma volta pedestre. Hoje já não calha. Problema nenhum. Um bocado de jazz do bom. Um bocadão de Bach, que é bom por qualquer lado que se revire. O facto de eu ser hoje (bem) mais idoso do que os meus Pais eram na altura em que nasci – não obsta a que continue olhando para cima quando os encaro em ideia. Nenhum deles era vivo quando se (des)travou a Guerra Anglo-Boer. Desta perspectiva, tudo parece remo(r)to, impossibilitando ver no sol a rosa recente que há tantos éne-milhões de anos vem sendo. Bem, esta lembrança não é impertinente. Pode que seja tão-só uma flor do ócio sabatino. Escrevo sem abrir a boca, a Avó dorme, ladrar acordá-la-ia. Em silêncio pois, anoto (para amnésia futura) que não sou obrigado a gostar do canto do Andrea Bocelli só porque ele é cèguinho, só sou obrigado a lembrar-me do David Bowie de cada vez que vejo um cão de olhos um de uma cor, outro de outra. Nada de grave, nada de agudo. Aguda & grave é a situação nas Canárias, com todo aquele infernal aparato vulcânico na ilha de La Palma. Não tem graça. Vá que não morreu gente – mas a destruição de tantas casas-de-família dói à vista. A Natureza é soberana em regime absolutista, nunca brinca, nós é que andamos com mariquices idílico-bucólico-pastoris, com versinhos & coiso. Não sei. Não imagino o que seja perder materialmente tudo. Não sei que ou como faria sem a minha biblioteca, a minha gaveta das cuecas & das meias, os meus dois pares de sapatos, três idem de calças & quatro camisas e meia. Não dá para imaginar. Imaginar-imaginar, só cada noite, ao deitar. Ao deitar-me cada noite, gosto muito de montar a tenda ao relento, ou então em choupana de pau & pedra com lareira, adormecendo ao crepitar resinoso & rico da lenha perfumada & viva, havendo ceado toucinho, biscoitos água-&-sal, tomate coração-de-boi, broa-de-milho & melão com presunto fatiado, acamando o repasto com uma canecada de café / um copázio de aguardente-de-abrunho. Isso sim, isso sou eu capaz de magicar, inventar, cismar, anelar por. Não me faz mal algum, por mais dissociativo ou auto-alienante que possa parecer. Acabo por adormecer em candura. Os sonhos é que, depois, pioram um bocadito a comatosa jacência obrigatória. Aparece-me gente, falando-me até, que na vida-acordada (= vigília) só me desaparece & me desconversa. Acordando, retiro-lhe qualquer importância – que aliás não chegou a ter. Devidamente acordado (o que não ocorre sempre, nem automaticamente), boto-me a pairar sobre a realidade – mas não a imediata, antes sim a diferida, a das coisas escritas & a dos seres proscritos. É uma existência felizmente desgraçada, a minha. Sou de mísera alegria, pobrete & alegrete mancebo na orla pré-sexagenária do presente campeonato. Partilho com o Menino-meu-Gato, em rotação, a terrena translação. Os bens consumíveis vão-nos proporcionando a ambos a, aliás insistente, subsistência. Ocasiões de banheira são aquelas em que me dou ao despudor de acariciar, com sabão & tudo, o meu próprio corpanzil. Não é auto-amor. Não é oblíquo onanismo. É livrar-me de imundícies involuntárias resultantes da fricção & do atrito entre as gorduras exsudadas & as rugosidades da fazenda têxtil. Em tais ocasiões, não é raro que cados de maus sonhos acabem escoados pelo ralo, eles também. Torço-me depois em toalha gorda, lavada, gulosa. Nessa esfrega, vejo-me (imaginariamente, claro, lá está) de novo em balneário de futebol-distrital, em que quase fui CR6 – ou menos. O resto? É só ir respirando, que o resto sempre vem – e em forma de restos, geralmente. De restos sei eu, aliás. Tenho tido de abocanhar & deglutir alguns – em geral âmbito como em particular minúcia. Mal nenhum. Até o que mal se come bem se caga. De maus usos & piores experiências, ai, ninguém se livra. Não seria eu a nascer excepção. Do comércio comportamental-interactivo é que se faz a humana associação da grei. Esta subdivide-se em três: género-masculino, género-feminino & género-tipo-coiso. (Este último não se divide – multiplica-se; é só ligar o televisor ou a internet.) Mas enfim, sim, é interessante cada coisa em conformidade a cada bico. Não há nisto escandalosa novidade. Do que (julgo) V. falava, era de certas lembranças abrutalhadas que rompem a uma pessoa a seda, por assim dizer, de seu sossego. Mortos, desquites, emaranhações de índole erótico-cavalar, dívidas à Segurança Social, tristezas demoradas & euforias palermas, ingratidões próprias (perdoáveis, portanto) & alheias (fideputices, portanto), etc. Se nem tudo faz arte, tudo faz parte. É de lei-natura. Depois, morre-se – esmifrado o pedaço, estica-se o pernil, bate-se a bota, enrijece-se a nalga, expira-se a derradeira nicotina, volatiliza-se o derradeiro copázio. The End, como no fim dos filmes dUSAmericanos. Fazem-nos cortejo ou não fazem. Derramam-nos flores ou não derramam. Choram-nos crocodilamente ou não crocochoram. É-nos bestuntamente igual. Digo: ser-nos-á bestuntamente igual. Invejável é a paz serena dos mortos. Bons ou maus que em vida hajam sido, irmana-(n)os o passamento. Tenho conhecido muitos casos. Uns, partidos cedo de mais. Outros, demorados como o carago. Mas todos enfim, alfim, deitados ao torrão em género cadáver ou boião de cinza. Já os bebés vivos, bem, são outra coisa. Encantam com tão supina quão involuntária facilidade. Mostram & exercem a inocência dos animais. São rechonchudos, róseos, cheirosos, luminosos. Os Vossos, não sei – mas os meus (digo: as Minhas) assim foram tal-qual. É quase uma pena que os bebés cresçam, se desinfantilizem, por assim dizer, se tornem obnoxiamente adolescentes, redessocialmente adultos, caquecticamente astronautas de lares-terminais. Mas pena pode ser muita coisa – qualquer galinha no-lo reiteraria sem cacarejar duas vezes. Sei bem que sim. Vai da própria polissemia da pena mesma – mas não vamos (não ora) por aí. Era (não era?) da irrupção de lembranças que íamos perorando. Toda a gente – queira-o ou não – é de muita recordação. Toda. Toda mesmo. Farta-me o sarcasmo sempre que alguém se vangloria de só-viver-(n)o-presente. Como se houvesse coisa menos fiável – e/ou menos estável. Perdoado o futuro pela morte em que nos trará & perdoado o passado pelo nascimento a que nos forçou – o mais sensato há-de ser, talvez, saber conviver com a esquizodinâmica de tempos-espaços sobrepostos. (A propósito, ontem até V. citei a sagaz Rosamond Lehmann, não foi? Foi.) O próprio hoje é quase ontem já. Que agora me lembre, a mim, tem sempre sido assim.

777

Arauto da raridade consciente
Flor em absoluto vertical
Raro arauto & flor-de-gente
Cravo terreno & também sideral
& o mais que não tenha responso:
Ecce homo José Afonso.


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Canzoada Assaltante