© Robert Mapplethorpe
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Da janela do comboio, o mundo parece mais rápido do que a vida.
Em curso, como na mente, os tempos do Tempo: instantaneidade de figuras, situações, palavras atiradas ao ar como as aves costumam.
Amplos campos de que reconheço os cultivadores: e como eles redigem em fruto-produto cada jornada, a tempo do Tempo.
Não saberia responder (mas não mo perguntam) se é o pretérito a instaurá-los ou o futuro a consumi-los – eu não sei.
Sei que voltei a dormir a horas ponderosas, levantei-me às cinco em prontidão de trabalho, dactilografei quási uma hora, hora a que o mundo não atrapalha.
Concluída essa operação, separei os papéis de que a manhã necessita: aqui os hei, ei-los aqui. Para almoço, sobra-me de ontem vaca cozida com arroz, limpo manjar cuja nomeação não destoa em pauta literária.
Da janela do comboio, quando rapaz, algo me adiantava o perigo da velocidade. E não o do campo/mundo mas o da vida.
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Sexta-feira,
3 de Setembro de 2021
A cabeça funciona a quanto vapor pode. Está em permanente oposição eu-mundo. Não é uma distância pacífica. Há condicionamento biológico, psíquico, social, cultural. E há que fazer algo quando & enquanto está acordada. Ainda não lhe veio – ou se lhe impôs – a doença terminal ou o brusco desastre letal.
Que temos hoje?
Um crime em Metz, France, no ano 1998 d.C.
A anedota trágica da ditadura albanesa do Enver Hoxha & C.iª.
O esplendor goleador de Cristiano Ronaldo.
E o sentimento justificado de nenhum eu ser superior a outro. À mediocridade própria não falta espelho por a alheia idem.
Música & Literatura são a vi(d)a propícia. O resto é a certeza-da-morte-em-o-porvir. Certa pureza não é impossível ou sequer improvável.
Em mente, vivos & mortos convivem.
A cabeça visa esclarecer-se, ser partícipe da luz. O modo mais recorrente é a Poesia, arte que demanda a verdade mais depurada. Paradoxo real: até a má poesia a procura.
Em certo bosquete próximo deste caderno mesmo, as aves voam aTempo. É maravilhosa pensá-las contemporâneas de uma existência atemporal. Não as vincula quaquer sofrimento humano.
Esta cabeça que medeia os meus ombros? Esta apenas: não melhor & não pior. Também ela contemplou alguma alegria, certa ordem elementar.
Em Metz, a assassinada Chantal, mãe de Justine & esposa de Didier.
Na Albânia, a caricatura (mais uma) da Utopia.
Não só pureza ou verdade: também o desajustamento integra a necessidade poética. Um certo a-mais-no-conjunto. E no gracejar e na ironia e no não-raro sarcasmo cruel. Autovitimação é que não. Inteligência suficiente para evitar tal ardil. (Autovitimação em vez de autovitimização; contextuar em vez de contextualizar.)
Como pacificar o luto?
Como resignar-se ao inaceitável?
Como aceitar o intolerável?
Como escutar alguém – a bem?
Música, Literatura. Canja a cozer.
Física & Química.
Mudar as fechaduras deste abrigo.
Fonte azul no verde panorâmico.
Incessante demanda.
Oclusão & reclusão.
Denegação perpétua de gente que não merece a própria sombra – quanto mais a luz. Perícia afinal simples: silêncio-em-desprezo.
Edmondo de Amicis – finalmente lido na íntegra.
Compreensão de Proust/Joyce/Pessoa.
Catalazete/Oeiras.
Norte e Soure.
A Língua Portuguesa como Viagem Vital.
Aceitar que nunca se irá a Paris. Nem a Londres.
Continuar escrevendo textos esquisitos.
Unificação pessoal.
Seguir guardando pétalas entrepáginas.
Dante. Machiavelli. Italo Calvino.
Eliot. Woolf. Greene.
A senhora de Sévigné.
A insuperável Yourcenar.
E eu (a cabeça, digo) que não queria senão um Verão gentil, anoitecer em segurança na tua (de ninguém) pele.
Reza-se hoje missa-de-sétimo-dia pela alma de Rui Manuel Marques Borges. Percebo a tradição. Isso a que chamam fé. Nenhum rito & nenhuma metafísica o devolvem todavia em-físico. Em pessoa singular. Em trabalhador-assalariado-contribuinte. É na terra onde fui infante. Depositaram-no no terreno-panteão onde apodreceram meu Irmão & meus Pais & meus materAvós & tantos Amigos meus. Festim esquisito. Olhai: nem salvação nem perdição.
Mas:
Como pacificar a luta? Que cabeça para tal & tanto?
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A partícula reflexa
deve incidir
não sobre o verbo-auxiliar
mas sobre o verbo-principal,
esse que infinitivamente
volve absoluta
a acção universal
da oração (ou ora’c’ção).
Penso nisto quando já não amo.
Nem a V.ª ausência
nem o V.º ter sido presente.
Laranjas & pergaminhos.
Se há perfeição – é a da impotência.
A diferente entre Jesus Cristo & o Pai Natal
é mensurável pela tabela-de-vendas
não por o nosso vizinho socorrer os nossos filhos.
Espero como desespero a tua morte,
Como a minha não desespero.
Isto vem do nascer, não vai da sorte.
Quero & não quero, não quero & quero.
(Depois de ver-te hoje, trouxeram-me de volta a este papel.) É um entardenoitecer de doçura exclusivamente portuguesa. Escolho um sítio a que os trabalhadores (ganhadores do dia) vêm temperar-se um pouco. Exerço um silêncio só por dentro retórico. Gostaria de este ser um Setembro como os de antigamente. Não sei que será. O futuro é, quase todo ele, incerto. Juntei provisões para a noite. Não tenho plano para amanhã. Hoje é dia de escrever este papel. O meu caminho é paginado.
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Rosas vivas na frente da casa branca.
Toda a tarde a nuvem as olhou.
Este é um canto esquecido do mundo.
Ainda é vivo o que pintou de branco a casa.
Um que foi carteiro
(quando tal ofício era para toda a vida)
costuma trazer chocolates às crianças:
mas já por aqui não há crianças.
Há rosas – mas já por aqui não há crianças.
Acontece muito nos lôgos envelhecidos:
haver mais rosas do que infâncias.
As infâncias restantes, só recordadas.
Só recordadas: o que tem até sua graça.
Tem sua graça se não fizer chorar.
É triste um envelhecido chorar sem relógio.
Faz de relógio a nuvem olhando rosas.
Toda a tarde Vos olhei do meu ofício.
Trabalho fora do sistema – mas trabalho.
Os espelhos não me envergonham.
Os espelhos só me macambuziam.
Excelentes pinturas juncam o dentro da casa.
Refiro-me à casa branca de que é vivo o pintor.
O pintor é vivo no ter-sido carteiro.
Os chocolates acabam sendo dados às formigas.
As formigas não envelhecem nem foram crianças.
Já nascem formigas, sustentam a monarquia.
São como as abelhas, laboram, sustentam a terra.
E são como a consciência humana, que não cessa.
Rosas vivas
etc.
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