04/09/2021

PARNADA IDEMUNO - 749 a 752

© Robert Mapplethorpe



749

    Da janela do comboio, o mundo parece mais rápido do que a vida.
    Em curso, como na mente, os tempos do Tempo: instantaneidade de figuras, situações, palavras atiradas ao ar como as aves costumam.
    Amplos campos de que reconheço os cultivadores: e como eles redigem em fruto-produto cada jornada, a tempo do Tempo.
    Não saberia responder (mas não mo perguntam) se é o pretérito a instaurá-los ou o futuro a consumi-los – eu não sei.
    Sei que voltei a dormir a horas ponderosas, levantei-me às cinco em prontidão de trabalho, dactilografei quási uma hora, hora a que o mundo não atrapalha.
    Concluída essa operação, separei os papéis de que a manhã necessita: aqui os hei, ei-los aqui. Para almoço, sobra-me de ontem vaca cozida com arroz, limpo manjar cuja nomeação não destoa em pauta literária.
    Da janela do comboio, quando rapaz, algo me adiantava o perigo da velocidade. E não o do campo/mundo mas o da vida.

750

Sexta-feira,
3 de Setembro de 2021

    A cabeça funciona a quanto vapor pode. Está em permanente oposição eu-mundo. Não é uma distância pacífica. Há condicionamento biológico, psíquico, social, cultural. E há que fazer algo quando & enquanto está acordada. Ainda não lhe veio – ou se lhe impôs – a doença terminal ou o brusco desastre letal.
    Que temos hoje?
    Um crime em Metz, France, no ano 1998 d.C.
    A anedota trágica da ditadura albanesa do Enver Hoxha & C.iª.
    O esplendor goleador de Cristiano Ronaldo.
    E o sentimento justificado de nenhum eu ser superior a outro. À mediocridade própria não falta espelho por a alheia idem.
    Música & Literatura são a vi(d)a propícia. O resto é a certeza-da-morte-em-o-porvir. Certa pureza não é impossível ou sequer improvável.
    Em mente, vivos & mortos convivem.
    A cabeça visa esclarecer-se, ser partícipe da luz. O modo mais recorrente é a Poesia, arte que demanda a verdade mais depurada. Paradoxo real: até a má poesia a procura.
    Em certo bosquete próximo deste caderno mesmo, as aves voam aTempo. É maravilhosa pensá-las contemporâneas de uma existência atemporal. Não as vincula quaquer sofrimento humano.
    Esta cabeça que medeia os meus ombros? Esta apenas: não melhor & não pior. Também ela contemplou alguma alegria, certa ordem elementar.
    Em Metz, a assassinada Chantal, mãe de Justine & esposa de Didier.
    Na Albânia, a caricatura (mais uma) da Utopia.
    Não só pureza ou verdade: também o desajustamento integra a necessidade poética. Um certo a-mais-no-conjunto. E no gracejar e na ironia e no não-raro sarcasmo cruel. Autovitimação é que não. Inteligência suficiente para evitar tal ardil. (Autovitimação em vez de autovitimização; contextuar em vez de contextualizar.)
    Como pacificar o luto?
    Como resignar-se ao inaceitável?
    Como aceitar o intolerável?
    Como escutar alguém – a bem?
    Música, Literatura. Canja a cozer.
    Física & Química.
    Mudar as fechaduras deste abrigo.
    Fonte azul no verde panorâmico.
    Incessante demanda.
    Oclusão & reclusão.
    Denegação perpétua de gente que não merece a própria sombra – quanto mais a luz. Perícia afinal simples: silêncio-em-desprezo.
    Edmondo de Amicis – finalmente lido na íntegra.
    Compreensão de Proust/Joyce/Pessoa.
    Catalazete/Oeiras.
    Norte e Soure.
    A Língua Portuguesa como Viagem Vital.
    Aceitar que nunca se irá a Paris. Nem a Londres.
    Continuar escrevendo textos esquisitos.
    Unificação pessoal.
    Seguir guardando pétalas entrepáginas.
    Dante. Machiavelli. Italo Calvino.
    Eliot. Woolf. Greene.
    A senhora de Sévigné.
    A insuperável Yourcenar.
    E eu (a cabeça, digo) que não queria senão um Verão gentil, anoitecer em segurança na tua (de ninguém) pele.
    Reza-se hoje missa-de-sétimo-dia pela alma de Rui Manuel Marques Borges. Percebo a tradição. Isso a que chamam . Nenhum rito & nenhuma metafísica o devolvem todavia em-físico. Em pessoa singular. Em trabalhador-assalariado-contribuinte. É na terra onde fui infante. Depositaram-no no terreno-panteão onde apodreceram meu Irmão & meus Pais & meus materAvós & tantos Amigos meus. Festim esquisito. Olhai: nem salvação nem perdição.
    Mas:
    Como pacificar a luta? Que cabeça para tal & tanto?

751

    A partícula reflexa
    deve incidir
    não sobre o verbo-auxiliar
    mas sobre o verbo-principal,
    esse que infinitivamente
    volve absoluta
    a acção universal
    da oração (ou ora’c’ção).

    Penso nisto quando já não amo.
    Nem a V.ª ausência
    nem o V.º ter sido presente.

    Laranjas & pergaminhos.
    Se há perfeição – é a da impotência.

    A diferente entre Jesus Cristo & o Pai Natal
    é mensurável pela tabela-de-vendas
    não por o nosso vizinho socorrer os nossos filhos.

    Espero como desespero a tua morte,
    Como a minha não desespero.
    Isto vem do nascer, não vai da sorte.
    Quero & não quero, não quero & quero.

    (Depois de ver-te hoje, trouxeram-me de volta a este papel.) É um entardenoitecer de doçura exclusivamente portuguesa. Escolho um sítio a que os trabalhadores (ganhadores do dia) vêm temperar-se um pouco. Exerço um silêncio só por dentro retórico. Gostaria de este ser um Setembro como os de antigamente. Não sei que será. O futuro é, quase todo ele, incerto. Juntei provisões para a noite. Não tenho plano para amanhã. Hoje é dia de escrever este papel. O meu caminho é paginado.

752

Rosas vivas na frente da casa branca.
Toda a tarde a nuvem as olhou.
Este é um canto esquecido do mundo.
Ainda é vivo o que pintou de branco a casa.

Um que foi carteiro
(quando tal ofício era para toda a vida)
costuma trazer chocolates às crianças:
mas já por aqui não há crianças.

Há rosas – mas já por aqui não há crianças.
Acontece muito nos lôgos envelhecidos:
haver mais rosas do que infâncias.
As infâncias restantes, só recordadas.

Só recordadas: o que tem até sua graça.
Tem sua graça se não fizer chorar.
É triste um envelhecido chorar sem relógio.
Faz de relógio a nuvem olhando rosas.

Toda a tarde Vos olhei do meu ofício.
Trabalho fora do sistema – mas trabalho.
Os espelhos não me envergonham.
Os espelhos só me macambuziam.

Excelentes pinturas juncam o dentro da casa.
Refiro-me à casa branca de que é vivo o pintor.
O pintor é vivo no ter-sido carteiro.
Os chocolates acabam sendo dados às formigas.

As formigas não envelhecem nem foram crianças.
Já nascem formigas, sustentam a monarquia.
São como as abelhas, laboram, sustentam a terra.
E são como a consciência humana, que não cessa.

Rosas vivas
etc.






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Canzoada Assaltante