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Quinta-feira,
2 de Setembro de 2021
Dar-Vos-ei os bons-dias todos os dias
Enquanto não falir a corporação minha própria
Daqui (em papel-tinta-lápis) já não saio
A não ser que me queimem os cadernos
Ou as mãos, o destino é esquisito, não ama
Esta manhã ainda respirar é possível
Milagre não-pequeno que não agradecemos
Damos por certo & contado o cada-dia
E não é bem assim, a necrologia é contumaz
Vicinal embora, a solidão vigora pertinaz.
Antigamente as raparigas, hoje quais avestruzes
Uma ida à beira-rio valia ouro-de-lei
Hoje é mais escasso um ombro firme, uma palavra
Hoje é enfim agora, mistério simples & pessoal
Grandes promessas merecem contentores municipais
A deriva é uma epopeia única, não aceita bilhetes
Antigamente as raparigas, gazelas frescas
Hoje extintas de verniz, coiffeur, botox
Não digo que não valha a pena viver
Vale, claro que vale, não valem os bons-dias?
Isto é papel-tinta-lápis, não vale um suspiro
Isto é um homem vendo-se bom-diando o deserto
Estive na fila dos Correios, guardei & aguardei vez
Sou civilizadíssimo, não vai de mim mal ao mundo
Entretive-me mirando o arrumador-moedeiro
Os professores-reformados, seus cafés-com-leite
Certa tristeza institucional dos professores-reformados
O apartamento enfim pago, mas certo dissabor
Que sabe a filhos ingratos, a netos superlativados
E na faculdade não era isto, era outro Joyce.
Tenho um Irmão doente, durmo com ele na ideia
Ontem não foi o caso, sonhei com aves-marinhas
Um navio azul no mar encarnado, mas não há cores nos sonhos
Sei que era azul por sonhar a palavra encarnado
O cérebro é assim: símio inventor, atónito pintor
O meu Pai é que sonhava vint&4-horas-por-dia
Digo: cismava/magicava/recontava/revia/entristecia
Cada dia me subo um dia à idade dele
Ainda não sou avô mas não é preciso, não ainda
O meu Pai não doente finalmente, mas o meu Irmão.
Namorei no Jardim Botânico como antigamente se namorava
Aos beijitos & sem coito, tudo em pureza gardénio-oscular
Gostaria de saber onde-que-é-desfeito tal rapazito
Lia Jacinto do Prado Coelho sobre Fernando Pessoa
E a namorada era bonita como a rosa rociada
E amá-la era ser criança na mesma mas atrevida
Durou pouco que é quanto o perpétuo dura
Duro é ser hoje um velho, ter passe-de-autocarro
Ir a consultas, depender do colesterol, não escrever Os Lusíadas.
Na paragem-bus, fala-se de uma velhota morta
Deixou missas pagas, arrendava quartos, era sozinha
Um sobrinho veio às pratas, vende o imóvel
“Não somos nada"– diz outra velhota
“Valha-nos Deus” – matricula-se outra
Não vou interromper esta última com antiteologia
Ralhar-lhe que Deus é um cromo sem caderneta
Que a morte é como a homossexualidade
Quem lá entra, já não volta
Deixa-me rir, Jorge (Palma).
Um turista, aliás português (coitado), enganou-se
Fotografava ele São Tiago como se fôra Sé Velha
Lucidei-o, apontei-lhe Almedina, só ir subindo
E ele ficou-me grato de seu azul em retina
Acontece é eu ter pena (muita pena) de cegos
Pessoas de olhos sãos que não sabem ver
Eu sou uma dessas pessoas
Fui feliz por ser infante
Tornei-me depois de Sagres ou Super Bock
Trocadilho que de vez me exila da Poesia Inglesa.
Agora a sério, sim, dar-Vos-ei os bons-dias
Alguns me faltarão, olhai, casei-me mal
A pessoa não gostava de aves, eu não gostava dela
A questão é uma garagem, que ela tinha, eu não
Vivo eu hoje numa garagem sem ela
Passarella-vela-vela, Argentina ou Gusmão
Agora a sério, vou por estas linhas traçadas
Devagar é o azul que dê para o encarnado
De bandulho cheio, também toco acordeão
Não é já não ter Pais, é ter terminal um Irmão.
Quanto a tal, só Portugal, é ir-lhe de romaria
Contar-lhe como está Serafim ou Encarnação Maria
Ou então não, meu Irmão, ou então sim-não
É dizer desde logo ao que venho
Que eu aliás nem venho, levam-me & trazem-me
Sou como as putas reformadas, nem p’ra foder presto
Dou-te bons-dias que não terás
A boca hirta, o braço esquerdo avariado
Certa apetência (aliás revolucionária) para o fado
Posso todavia dar-te o bom-dia que não terás
Enquanto não própria a minha corporação
Terás todavia & porém bom-dia-meu-Irmão.
Mas não. É mentira a poesia.
Qual bom dia? Bom-dia, Irmão.
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