31/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 188 a 190 (primeiros três de oito quarteirões estróficos)

© DA.

188

Terça-feira,
30 de Março de 2021

A tarde acontecia como na plateia acontece a atenção.
Viéramos das poucas compras, separámo-nos às 14h30m.
Fiquei no alpendre depois de arrumar no frio os perecíveis.
Trouxe chá-preto-limonado, um cigarro só, uma revista.
Em transumância, nuvens nutridas alvejavam o azul.
Passou no carreiro dos Gregórios a rapariga de camisola roxa.
Pelo mesmo atalho passou Manuel G., de bicicleta pela mão.
Não estou seguro de em que ano isto possa ter sido.
Faço ideia aproximada, mas não arrisco numeração.
Sei que a mocidade era connosco, que era bom o chá com gelo.
Dormitei a pedaços, aninhado no facto de nada esperar.
Sonhei farrapos fugazes, acontece-me muito.
Da ladeira dos Filipes veio o rancho de jornaleiras.
Penso que vinham de fazer silagem de milho.
A revista era o n.º 2 da série Telémaco.
O número era dedicado ao imanentismo-transcendental.
Os artigos tentavam sondar o insondável, Deus lhes perdoe.
Já a tarde descia, a nespereira ganhava aura.
Alejo Carpentier, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Borges: vivos todos.
Qual deles de gardénia à lapela? Talvez o cego.
Clarão púrpura estriado a laranja para o lado (suposto) do mar.
É maravilhoso que 26 letras bastem para segregar um mundo.
Voltei para dentro, deixei a revista no banco longo lá fora.
Há muito que a Telémaco deixou de ser publicada.
Já não há grande público para coisas escritas em papel.

189

Cães a que dávamos nomes de rios, como era então uso:
Mondego, Tejo, Douro, Pavia, Guadiana, Tinto, Ceira.
Outros nomes eram, por mais raros, encantadores.
Pinóquio, Pete, Fome, Ringo, Cisco, Boy, Paris.
Persistência dessa nomenclatura tão baptismal quão a infância mesma.
A infância mesma que carecia de nós para nomear tudo.
E os objectos cintilavam por serem todos de celofane a estrear.
Falência era vocábulo que os velhos escondiam entre farrapos.
Às 17h45m ela voltou com as compras que não precisavam de frigorífico.
Esta não-história vai sendo contada, recontada & requentada.
Nunca me sinto a sós em casa onde esteja deveras sozinho.
Os cães-rios correm por aqui, aninham-se em plateia.
Aninham-se em plateia, esperam com atenção o espectáculo.
(Não foi Genette a dizer que o texto literário era texto-espectáculo?)
Adriano de Tavarede correndo de bata no telheiro do colégio.
O Fernando do doutor Carvalho quase mortalmente atropelado.
Na ladeira do Cidral, o salão-de-bilhares com bufete de refrigerantes.
Antes-&-depois em o perene jogo-do-agora, como sempre até nunca.
Se alguém espera que o mundo espere, desespera por certo.
Este bairro é de sossego, que nenhuma casa dele nele arda toda.
Quem quer considerar a placenta como primeira & penúltima batalha?
A qualquer véu como a qualquer sudário, rosto limpo se prefira.
Seth, bom rapaz, rir-se-ia de teu hermetismo a verde Ana Luzia.
Não, olha, nada faças que perturbe o bípede gado feliz-da-vida.
Telémaco tinha Argos, cão de nome que não usámos em algum nosso.

190

Ser-se uma desilusão para os outros não obriga a purgatório.
É-se limitado ao próprio corpo, só a ele se é vinculado.
As alheias virtudes prestam, se copiáveis depois de assimiladas.
Os alheios juízos, faça-se deles papel – o mais higiénico, s.f.f.
Institucionalizada, a mãe das gémeas Castro vive em anestesia.
Pertence a uma doença sem retorno, só a química a derruba.
Isabel & Marta Castro há muito desistiram dela, coitadas & coitada.
O hospício é para lá da mata alta, planeta à parte do orbe.
Há quem se recorde Helena Castro, em solteira Damasceno.
Belmiro recorda-se, Basílio também, Anacleto mais ou menos.
Helena matou seu crudelíssimo esposo, pai das meninas duplicadas.
Tovar Castro bebia o mar de vidro de todas as marcas.
A noite chegou em que não atingiu Helena, finalmente.
Uma história triste como tantas por aí, conheceis muitas decerto.
A senhora passou-se, quis matar-se, levaram-na os batas-brancas.
Disseram mal dela, chamaram-lhe coisas horrendas, ela desiludiu-nos.
Vai libertá-la a mais recente novidade: tem um glioblastoma.
Sexta-feira operam-na por caridade: ficará vegetal.
Tovar desaparecerá, Isabel também, Marta também.
Chorá-la-á Belmiro? Basílio pranteá-la-á? Anacleto, não.
Ser-se vivo pode não passar de ilusão para os outros.
O corpo pode fabricar em si a janela de escape.
Pode ser que as filhas queiram agora falar-lhe.
Tarde vão, a demasia lhes será dada em perene noite.
Que lhes corresponda em juízo o que por virtude mostraram.

30/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 176 a 187 (todo o santo dia)

© DA.


176

Segunda-feira,
29 de Março de 2021

Insisto na visão de pessoa amanhando couves & ideias
Em seu quintal indivisível a obra una, estilhaçada depois
Queríeis talvez outro entendimento, menos cerração
Eu todavia não, eu risco mais do que me arrisco
Do que me arrisco à venalidade do benzinho
Do que me arrisco à banalidade da malevolênciazita.

Não batais a esta porta.
O que pode ser partilhado – não deve ser dividido.

177

    Um homem de roupa escura revela a um outro alguns aspectos de primícias pessoais que considera partilháveis. O outro está menos sobrecarregadamente trajado. A conversa ocorre & decorre a um domingo. No vale (daqui oculto pela orla da mata alta), há noventa anos já, está o hospício dos descompensados. O da roupa escura esteve lá por quatro vezes em três anos, internamentos de três semanas cada. O de roupa clara não o interroga – nem sobre os internamentos nem, na verdade, sobre qualquer outra coisa. Vão conversando ao fio do instante. Há livros nesta casa, mas não vêm a lume.

178

Filipe Larparente, há só que deixá-lo andar.
É de uma casa raramente aberta a estranhos.
Sidónio, pai de Filipe, inenarrável ogre.
Eva, a mamã, sofreu o que não é contado.

É agora certo que instantes empalhados perduram.
Perduram para cá do saudável, obrigam a ri(c)tos.
Deixá-lo, deixar Filipe tornear seu bosquete.
Reinaldo, seu amado amigo, quer-lhe bem.

Fieira de fábricas mais pesadas que o ar.
Fedor frio a peixe feito farinha.
Ente transiente – todos & cada um.
António, Margarida – todos & cada um(a).

Na ressaca gélida de um Janeiro sem festas?
Foram jantar fora Penélope Filinto & F. Larparente.
Penso que se entenderam bem & sem esforço.
Penélope falou de seu irmão Jonas a Filipe.

Mónica, Artur, Gervásio, Ilda – de vez em quando.
Um Julho no litoral – centro do País, tudo cinza.
O jardim-parque, com espelho-de-água, é manso.
Ainda os vândalos estão por nascer da imundície.

Cemitérios & maternidades são estádios-olímpicos.
Como correm tais jogos, sabemo-lo todos, ó malta.
Sidónio era afinal triste, mas mau a sério.
A morte foi para Eva um arco-íris na noite.

Relógio de gare, ferrovia circular do massacre.
A mulher do bolo-de-Ançã, sua voz cristalina.
Poucos mais nomes, Penélope, nem o de Verónica.
É-se sozinho na calçada, oxalá chova a sério ainda.

179

    Há uma noite profusamente fotografada que continua no álbum. Toda a gente é viva. Os músicos não morreram. Os cantores não morreram. O público todo está vivo. A ementa é caldo-verde, chouriço-assado, broa, vinho. Famílias trouxeram de casa bolos & pudins. Folhear o álbum é (com)paginar o tempo dessa noite-perpétua. Crianças hoje mães são ali tão-só filhas. O mesmo é dizível dos meninos. São 37 os anos queimados. Talvez mais ardam – a começar pelo álbum mesmo.

180

Não, não penso nisso.
Isto foi dito por Brandão.
Não creio em intuição.
Isto disse Ema disso.

181

Ao tempo das cheias, semelhava a existência mais larga.
A proporção tangível valia ao corpo a acção compreensiva.
É inexacto o cotejo brusco, segundo o qual é menos amarga,
só porque sim, a matéria já vivida que a ora viva.

Certo é porém que comezinho não era então o quotidiano.
Cheias em tempo de cheias – e quatro estações ao ano.
O milagre cíclico dava ao viver certo aparato ritual
– esta é pelo menos a perspectiva de um então infante em Portugal.

182

    Sim, interessam-me Philip Larkin (UK, 1922-1985) & Harold Pinter (id., 1930-2008). São obreiros do tipo de literatura que mais me apraz: o bom tipo.

183

Publicações periódicas na prateleira inferior.
Dois pratos pintados à mão na imediata superior.
A cave, arejada por janela alta, faz de oficina.
Adaptou-se um roupeiro a estante robusta.
Rol de preciosidades resgatadas à lixeira:
Caixa de correio encarnada muito ferrugenta;
Funil de folha alto & fundo para óleos-pesados;
Placa de matrícula RPT-200-121;
Tábua-ementa de tripé com os pratos-do-dia 5-9-1967 (3.ª-f.ª);
Coleira de cão com chapa metálica (Fiel);
Em esferovite pintada a laranja, as letras P, F & R;
Um boné verde com xadrez castanho-cinzento;
A Ilha do Tesouro da Colecção Fruto Real;
Torneira de bidé muito lascada.
A cave & seu espólio pertencem ao n.º 17 da Rua Hermenegildo Alano.
Este Hermenegildo Alano foi ilustre matemático do Colégio Astral.
Morreu no ano de nascimento do Poeta Philip Larkin (cf. 182).
A imprensa da época deu algum destaque a esse suicídio (“tresloucado acto”).
Sim, foi suicídio, Hermenegildo arrefecia de letal desgosto passional.
Sucede que o atraía a mulher de um colega, a loura & alta Donata.
Donata era porém esposa virtuosa, de inquebrantável virtude.
Repeliu o único avanço que o doutor Alano ousou fazer.
Fê-lo de maneira tão discreta quão cortante.
Dilacerado, Hermenegildo pendurou-se pela garganta.
O marido de Donata ficou muito acabrunhado com o incidente.
Era próximo de seu colega, estimava-o, nunca suspeitou.
Também este professor deu nome a uma rua: Terêncio Barros.
No entanto, estas coisas não têm de ser grafadas em pedra.
Podem constar de uma qualquer revisteca mensal.
Dessa maneira, pode ser que mereçam a prateleira mais baixa.

184

    No Julho em que sobreveio o passamento de Manuel António, já eu residia com Mabília a quilómetro & ½ do mar. A casa era pequena, ao contrário do meu amor por ela. Perto de nós vivia o casal Nunes: ele, reformado dos Correios; ela, ainda patroa da Retrosaria Clássica junto à capela. Só por duas vezes Manuel António nos visitou. De ambas, ficou connosco uma semana. Na segunda visita, conheceu Dulcina, irmã de Mabília. Casaram-se no Outubro seguinte. Não deixaram prole. Nem nós.

185

    Minto nada quando alinhavo certas perdurações. São constâncias que me integram. Não me melhoram nem pioram. São como o meu nariz: está aqui a sul dos olhos, dispõe de um poder sensitivo, pode ser limpo e coçado.
    Uma dessas permanências é M.ª José, a Adoptada. Vivia com irmãos & irmãs infinitos num casebre apodrecido. Condoeu-se dela (só dela) um casal abastado à porta de cuja vivenda pontificava um painel de azulejos representando Santa Tereza, a muito venerada por Alexandrina da Conceição. Cinquenta anos (não menos) são passados. M.ª José vive bem, é casada com filhos. Morreram já os pais adoptivos. Dos irmãos biológicos, afinal finitos, não restam senão quatro: três homens, uma mulher. Costumo ver um destes, o António. Dizemo-nos sempre os bons-dias.
    É mais fácil perdurarem os mortos, porém. São de cartografia mais cómoda, por assim dizer. Por assim dizer, vêm-me comer à mão. É o caso de Victor Veríssimo, o Tita. Sumiu-se aos 16 anos, sumiu-o um mal do sangue. Recordo-o assim: um pardal louro. Era mais velho – vencendo-me portanto nas duas únicas corridas de olímpico esplendor: a do nascimento & a da morte.
    Muitas outras durações me habitam, podendo eu, para V.ª mor comodidade, coluná-las em verso:

O homem vendedor de livros porta-a-porta.
Esse homem em pura solidão no monte.
Esse homem sentado comendo nozes a sós.
O grau de pureza daquela solidão a meus olhos.
A festa de crianças cegas na escola do bosque.
Algumas delas, espanholas; a maioria, de cá.
Nessa mesma instituição, o tanque insuflável.
Aulas de natação para os de nós mais pobres.
A morte do Manuel G. na linha-do-comboio.
Vinha com a bicicleta pela mão, algo o enganou.
Depois de um passar, vinha afinal outro ainda.
A grande nódoa escarlate no lençol que o escondia.
A casa sem porta nem janelas na encosta do cemitério.
A família inúmera (mas uma só) que nela dormia.
Eram de Cabo Verde, não se quedaram muito por ali.
Ao lado da casa, o poço com a galinha morta.
Quando mataram o porteiro do Centro de Formação.
De caçadeira, na noite de 31 de Março para 1 de Abril.
Pensámos ser peta do Dia das Mentiras.
Não era: muito sangue no chão, uma poça coagulada dele.
O passarinheiro em frente ao Café Santa Cruz.
Os passaritos em torno dele como vapor colorido.
Em semicírculo, o ajuntamento apreciando a cena.
Mais nós quatro irmãos, hoje dois só: o Fernando & eu;
Adeus, Jorge; Adeus, Rui.

186

Herdamos dos mortos tudo o que ficou por dizer.
Agora sabemos o dizível, a fala necessária.
Para nada benigno nos serve tal saber.
Antes a sólida ignorância do que a sabença precária.

187

    Ana Luzia Torresvedras Alfaiate vai à lavandaria, depois à padaria. Vai fazendo os recados que a si mesma incumbiu. Não é real o que não tem loja aberta. Orquídeas de neve pura acontecem além daquele muro amarelo. O gaio-azul é por ali costumeiro. É real cada manhã vir por milagre. Não há problema ser simples o milagre. A simplicidade agrada a Ana Luzia. O hermetismo diverte-a. Nasceu no ocaso da ditadura, não chegou a sofrê-la mesmo a sério. Um emprego regular que pague certinho, sem ondas nem restinga.
    José Abel Belo Maduro, seu namorado, diz-lhe não haver verde como o verde dos olhos dela. E ela acredita, sente-se escolhida, ser bonita é simples, menos simples é encontrar fora o olhar que nos vê dentro.



29/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 174 & 175

© DA.


174

Domingo,
28 de Março de 2021

    Das alturas rochosas o clarão lilás
    aveludava o instante imperecível
    em que a pessoa se sente até capaz
    de sentir como vero o inverosímil.
    Enfim, é uma maneira de pôr a coisa. É, também, modo criativo, ou antes, lembrança criativa. O italiano G. Guareshi & o colombiano G. Márquez não enjeitaram, de modo algum, certa afim criatividade jornalística. Por mim, há muitos anos que não faço jornalismo. Deixou de ser água em que nadasse. Escolhi sair: e julgo tê-lo feito a-tempo.
    Bordado eléctrico fulge na cidade enegrecida.
    A mansidão é conquista sozinha, não tem receita.
    Rua-da-Glória-n.º-4, em quarto-de-despedida,
    ninguém ali se levanta, ninguém ali se deita.
    O principal parece ser incomunicável. Todavia, uns raros logram estender comunhão a outros não menos incomuns. Talvez seja uma espécie de regra sem violação possível ou provável. O que se sabe: Está remediado o que não tem remédio. Fernando Jorge Nogueira Alves assim praticou a sua vida. A chave dele é a Oito. A pensão tem doze quarto, dez no activo, dois servem já só para arrumações.
    Quando em aventura diária anoiteço no lixo
    Quando vou ao lixo deitar fora o dia
    Quando o dia mesmo despe a pele de bicho
    E sentido não faz já o que sentia.
    Ele há sempre maneira alternativa de fixar no papel algo que por algum tempo escape ao fogo. Se puder ser dito (& feito) literariamente, interessa-me. A disparidade operatória não obsta, antes estimula. Estive ontem com Pierre Gamarra, estou esta noite com Mario Soldati. É movimento muito aprazível. Ao jantar, tomado de pé na cozinha, já tinha concluído o Gamarra muito antes mas pensava ainda em elementos da leitura. A passagem para o Soldati foi suavíssima. Não tenho pressa. Reajo a qualquer reminiscência de sofreguidão ledora.
    Domingo derradeiro de Março, geral mediocridade.
    (Pessoal também, não há que escamoteá-la.)
    Quando sair, saio; quando não, fico na sala.
    Ainda algo depende só da minha vontade.

175

Casas bordando o sopé da colina
Celeiros espalhados pelo vale
Canal central, fartura de águas úteis
Cinética transparente dos anos

Humanos singram no mundo inexplicado
No tempo idêntico cavam a diferença
Uns participam mais do mistério
Outros aceitam o que lhes vem à boca

Quem faz mal a quem, onde, porquê
Quem solta o bem, a quem, porquê
Em casas de cores discretas, neutras até
Pelas matas, arroios como veias de céu

Além do culto da terra, um outro ofício
Dar ao tempo uma indústria feraz
Quando os terrenos parecem reflectir o firmamento
Quando a noite convoca nos pátios o estrelato

Lájeas naturais, oblíquas, para nascente
Em madrugadas a bruma nelas dormia
Perto era uma vinha, há muito sem lida
Aos poucos feneceu, havia ali fósseis

Fragmentos residuais vivem muito em fundos
Na confluência das lájeas, minério dourado
Tesouro fabuloso impossível de investir
Nem para uma pouca d’água, um meio-pão

Âmbar? Obsidiana? Como envelhecer assim?
Agora que algo se sabe, agora o corpo desiste?
Agora que algo se aprendeu, o corpo d-existe?
E adianta alguma coisa perguntar tanto?



28/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 172 & 173

© DA., Sr.


172

Sexta-feira,
26 de Março de 2021

    Convalesço em devida soledade de certo doer que a vida por vezes se compraz a trazer. Só se lá vai com calma. Não está na religião nem há nas farmácias antídoto para tal. Mais: o desespero não é remédio.
    Pela tarde, deixei-me vendo & ouvindo Cesário Verde dito por Mário Viegas. Muito bom momento daquele actor cedo desaparecido – tal como o grande Poeta que ali lia.
    É assaz concludente que Beleza & Tristeza se casem tanto. Parece ser de regra, aliás.
    À noite (agora), enquanto a bênção do sono me não devolve à condição fetal (mas, hélas!, sem mãe em volta), persigo linhas activas: enredos, histórias, clarões vocabulares, farrapos de algo que já tenha sido uno & inteiriço.
    O Passo Dyatlov. A Passagem Noroeste. O ADN-mitocondrial. Hess em Spandau. Pessoa nascido no mesmo ano dos crimes de Jack the Ripper.

173

Sábado,
27 de Março de 2021

    Velha senhora em casa antiga. Apetrechos mínimos são provisão bastante. Os fios da vida estão ligados, não dão ainda sinal de frouxidão, sustém-se ainda a frocadura. No pátio, o limoeiro é de grande generosidade. Há restos de uma eira que outrora enxugou muito milho. Hortas, depois. Não foi assim há tantos anos que trouxeram a electricidade pública. Todavia, a galeria de vizinhos vai já esboroando-se. As mulheres resistem (muito) mais, são bem mais as viúvas do que os viúvos. Não é raro um homem apagar-se aos cinquenta anos.
    Do inverosímil mundo estrangeiro, esparsas novas de outra guerra. Por aqui, a madressilva silvestre pintalga os prados. Há ainda quatro estações ao ano. A velha senhora lê o seu Camilo, que a faz chorar, & o seu Júlio Diniz, que a faz sorrir. Também folheia a Bíblia Sagrada, abrindo-a ao acaso a lotaria do mistério, a rifa da epifania.

26/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 162 a 170

© DA.


162

Quarta-feira,
24 de Março de 2021

    A Bartoli canta Raupach.
    O momento é forte, é solar.
    Um minuto para as quinze.
    Raposa em serrania, livre.
    Sigo coleccionando elementos afins: faço bem & faço-o bem.
    Revoada primaveril de ar/aves/árvores atentas.
    Vivaldi pela Stutzmann.
    As coisas bem-feitas felizmente abundam, não é possível contrariá-las, delas a pujança viceja feraz & feroz.
    Voz de Cecilia & Nathalie, como (ou)vimos – adiante.

163

    Dois homens rebentados como cavalos-de-corrida na retaguarda. Conversam na saleta do mais velho. Conhecem-se & colaboram há uns trinta anos. Fizeram coisas más no segredo sem deuses da clandestinidade oficiosa. Nem sequer enriqueceram. Foram afinal tão peões & tão descartáveis como aqueles que atiraram à lama – e até, não-raro, para a cova.
    O cancro abençoou agora o mais novo dos dois. Aos sessenta anos, é punição justa. O mais velho serve-lhe whisky irlandês de tripla destilação. Fumam cubanos. Aproveitam mal o instante porém, pois que a amargura os rói a ambos. O novo regime é tão peçonhento quanto o precedente – mas novos ratos há para o velho queijo. O mais novo suicida-se logo à noite. O anfitrião é discretamente abafado no sábado que vem, durante a transmissão em directo de Ascot.

164

    Vou hoje ver uma pessoa que por muitos anos escutou, apreciou & assimilou música de primeira-água. Emulo-a, como posso & sei, nessa autodidáctica. Saio de casa daqui a pouco nesse propósito. Há lá fora sol para todos. Estarei ausente do meu Gato um par de horas. Custa-me deixá-lo sozinho, não está habituado, não sei se sofre. Órgão por Mendelssohn. Está a dar na máquina. Há coisa de uma hora, deu The Psychedelic Furs e Morphine. A musa-música é feliz & graciosamente infinita. Hoje como sempre-para-sempre.

165

    Como esperava, a luz dá-se hoje em verniz democrático, melhorando a terrenidade de tudo em que (se) dá. Esmaltado arvoredo a reflecte & areja, sendo cor total a ventilação dinâmica. Trabalharam além uma leira de terra, sulcos vivos mostra ela ao sol, pronta a receber para depois dar de si.
    Estátuas geminadas vigiam o jardim em que as plantaram de mútua solidão. Termina hoje a penúltima semana do mês corrente. Amanhã diremos: Em oito dias será Abril. Roda-perpétua, este jogo tão indiferente a seus jogadores. Da fricção entre tempo-interior (psicológico) & tempo-exterior (cronológico) é que resulta a tentativa artística.
    A luz dá-se em verniz etc.

166

    Noite nova.
    Plena hora.
    Ar macio.
    Olhar antigo.
    Em outra dimensão (há quatro décadas bem contadas), entro no quarto da tia moribunda. Volveu-se miniatura de si mesma, a pobre. Também a casa é afinal casita. No psiché também altar, vota-se à imagem da Rainha Santa uma jarra de porcelana com rosas. As flores passaram de vivas a secas – mas sem passar pelo estágio da murchidão. São agora perfil fóssil na
    Noite antiga.
    Hora vã.
    Ar exausto.
    Olhar velho.

167

    No próximo Verão, não estarei no Lobito com Augusto Gonçalves. Nem no Silva com Ernesto Lucas. No próximo Verão, estarei acompanhadamente só: de seus nomes acompanhado só. É mesmo assim.
    Tenho algum tempo. Tenho que jantar, também. Desliguei há pouco o rádio. Sabe bem sossegar o quarto. Não tenho porcelana nem rosas. Para ter uma & outras, escrevo: porcelana, rosas.
    No passado Verão, escrevi sozinho – mesmo assim é que deve ser.

168

Vi o rosto da pessoa de que V. falei na entrada 164.
Sangue do meu sangue, da minha árvore ramo maior.
Há entre nós, ora, certa solenidade de teatro:
é montado o drama, em tragicómico fulgor.

Finíssimo dúctil fio nos lia ainda, assim é.
Meia-hora é quanto temos, por semana, pós tantos anos.
Moços fomos, a moços não voltamos, ora decanos.
Daniel ambos somos – mas só ele é José.

169

Zito Job Coluna Barão, exegeta & hermeneuta,
descende de capitão lá da conquista de Ceuta.
Também: Elói-Zé de Santamaria Carvalho,
em química herói & em física, um alho.

Andei com ambos na escola.
Um trio nós eramos, e bom.
O Zito, deu-lhe p’ra cheirar cola.
O Elói é engenheiro, acho que na Telecom.

170

    A zona é pródiga em manchas pantanosas, muitas partes do ano sufocadas por névoa espessa como cal. As casas são de madeira & poucas. Não vive por aqui quem é temente a miasmas & fantasmas. Os que vivem, falam pouco dos outros & nada de si.
    Uma doença prolongada custou-me a infância mais metade da puberdade. Os meus pais levavam-me para lá no Verão. Depois, ambos morreram. Deixei de ir, convalesci, melhorei, fiquei quase bem. Arranjei trabalho, casei-me, descasei-me, mudei demasiadas vezes de código-postal. Voltei aos pântanos, paguei ao carpinteiro, tenho casa no último sítio a que chamarei casa.



24/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 156 a 161

© The Sleepers, HBO Europe


156

Terça-feira,
23 de Março de 2021

    A imensa Austrália aparece nos noticiários – ou pelos incêndios intermináveis, ou pelas cheias resultantes da mais furiosa pluvialidade. Do oito ao oitenta de travões cortados. Um doidinho armado (nos EUA, claro) mata dez a tiro num hipermercado. Restrições locais antipandémicovirais, Alemanha, Reino Unido, Itália etc. & tal. No tragicómico Brasil, o tonto presidencial etc. & tal. Uma farturinha de bocejos, enfim.

157

    Praha/Praga – deve ter sido muito bela, não sei, nunca saberei. Não é raro, cá comigo, ter destes sentimentos, destas irrisões. Continuo a achar-me nascido demasiado tarde. E agora, nascido há demasiado tempo. Há muita banalidade neste autoinfligido anacronismo. Todavia, posso bem com ele.
    De Amarante, um pianista de boa qualidade chamado Gregório. Veio em 1980 completar estudos, no que teve pleno êxito. Vive das lições particulares que dá a troco de preço módico. Vive & ensina na Rua Alexandre Herculano. Sai à noite para café & conhaque, ou no Tropical, ou no Moçambique. Também Gregório gostaria de outra Coimbra, a de antes da destruição da Alta. Mas.
    Por um dia cinzento, desci a Couraça de Lisboa sem rumo prévio. As bandeiras municipal & nacional murchavam à face do governo civil. Foi no tempo em que se me revelou a poesia de Lorca, assim como o teatro de Osborne, bem como a secura narrativa de Moravia. Era quase Novembro, ao cabo do jardim-parque a linha da Lousã nutria-se de gente do trabalho, a Cervejaria da Fábrica servia o melhor fino da Península Ibérica.
    Em soturno pátio calçado a granito, carros Mercedes-Benz sinistros como orcas anfíbias. São serventes das autoridades ministeriais, sobretudo policiais. Dá horas a catedral de São Paulo, o Epistoleiro aos Coríntios. Telhados de um verde franco-escocês que me recordam Chesterton, G.K. Pombas encardidas, poalhadas de chumbo pluvial, tiritando na podridão dos beirais. É um milagre como ainda não ruíram tais beirais.
    Esquina da Tenente Valadim com a Antero de Quental: ou Loretanska & Uvoz. Por aí.

158

Homem sentado em apeadeiro de ferrovia.
A figura opõe-se a um pano de campo aberto, cultivado.
A oeste, viaduto de passagem pedonal, deserta.
E uma torre de alta-tensão subindo em força pura.

Em torno de outra prosa, construções de um cinzento atroz.
Nenhuma humanidade delas ressuda, ressuma ou ressumbra.
É sítio mau, nenhuma bondade é aqui possível.
Envenenaram a terra com descargas clandestinas, mataram-na.

Há conluio de gajos dos curtumes, suinicultores & autarcazitos.
Corrupçãozita pindérica entre matadores da pureza natural.
Patos-bravos & vereadores & chefes de divisão & almoçaradas brutais
& brutais jantaradas seguidas d’idas às brasileiras-de-alterne.

Às 20h13m, o homem embarca na última carruagem.
É troço breve, dezassete minutos, já se apeia, lá vai.
Linha de casas-de-pasto para ferroviários, caixeiros, solitários.
Tílias, plátanos, ulmeiros, álamos, robles, prédios cinzentos.

159

    Duas senhoras estiveram em tratamento sanatorial nos anos maus em que a tuberculose grassava & desgraçava muita grei. Ambas sobreviveram chegando até a bem anosas. Polly Grace Whitehead-Ferguson, inglesa de Bristol, era uma. Maria do Patrocínio Wenceslau Cintra, portuguesa do Funchal, a outra. Travaram amizade, mantiveram correspondência regular ao fio de décadas. Polly foi a primeira a morrer: em 1981, num lar de idosos. Patrocínio morreu em 1987, a dois meses de perfazer um século, em casa da bisneta Eulália.
    Não tive nem terei acesso à correspondência. As cartas em posse da senhora inglesa perderam-se no grande incêndio de 1982. As recebidas pela idosa madeirense, ninguém sabe se sobreviveram às sucessivas mudanças de residência da velhota. O mesmo espera, felizmente talvez, a minha literatura.

160

Os monstros existem, não são medos sonhados apenas.
Outra coisa os vincula & reitera: sem excepção, são humanos todos.
A História maiúscula não os esgota nem reserva.
Também o Quotidiano é deles pródigo, não duvideis.

Ciana sofre humilhações no emprego.
Júlio é ostracizado pela família.
Ciana lamenta não ter emigrado.
Júlio lamenta ter nascido.

Em uma cave mais que aquário húmida, um assassino prepara-se.
Já por quatro vezes violou, estrangulou & profanou.
Tem saído impune de cada expedição, apesar do circo mediático.
Faz o que faz porque-sim, nem outra razão lhe ocorre.

Comborças, mancebas, amásias, barregãs, concubinas, vulgo amigas.
A minha porção consumi já, perdoe-mo Deus.
E tintos & brancos; e trovas & cantigas.
Não devo ter pousio nos Céus.

161

Sala-de-estar dos doentes, Pavilhão Nove.
Televisor sem som dando bonecos para sempre.
Mulheres entupidas de narcofacientes. Chove
no jardim-japonês, onde não há quem entre.

23/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 152 a 155

© DA.



152

Segunda-feira,
22 de Março de 2021

    Há tanto heroísmo no cacilheiro quanto na caravela. Vadear o rio para o pão-de-cada-dia é tão bravo quão levar Cristo ao indígena, deste sacando o ouro & a canela. Isto vou pensando enquanto o mundo exterior brinca às coisas sérias. Modorra digestiva, beatitude pós-prandial: assim vou jiboiando a nova primícia vesperal.
    Mas que se lixem heroísmos. O tempo interior quer outros valores, não aceita propagandas estafadas, exauridas, maninhas & daninhas. Imaginário & real equivalem-se então sem esforço. Tílias majestosas, rotundos penedos que levitam, coelhos-bravos cartografando o mistério simples do segredo-d’existir.
    Nenhum jesuíta, nenhum mafoma, nenhum semita – a solidão da rejeição é boa, leal, concreta companhia. A nave é tripulada no sentido da clareza? Decerto não. Da claridade, então? Quanto possível.
    Aldeia & universo não se contradizem tanto assim. O factor-humano é totalitário – por ser único. Regionalismo & pantelurismo são afinal manos.
    A atitude estudiosa compensa. É eficaz contra as múltiplas formas que o deserto incarna. Trilhos individuais aceitam marcas partilháveis. Assim, pelo menos, tem sido algumas vezes.

153

    Idílico, edénico, floral, o ar puro como nascimento de bicho, a água límpida como olhos novos – é como alguns têm presente o panorama da infância. Os pequenos infernos vêm depois – para ficar, como o Toyota de antigamente.

154

    A avó prepara a ceia para nós todos, que somos ela & eu, mais ninguém. A fotografia do avô preside à assembleia de dois. Bule de chá, pão-branco, mel, queijo-de-cabra, presunto, tomate, manteiga, bolachas-torradas. É fortuna. Sou-lhe muito grato. Vivo tempos-túneis, a que falta luz-ao-fundo. Ela ampara-me com o uso do quarto, duas refeições, alguns trocos para quando saio. Saio pouquíssimo. Vou à cooperativa ver se há ofertas de trabalho (obras, agricultura, limpeza de matas ou chaminés, por aí). Já não vou à taberna. Encontro gente na praceta, converso um pouco, ouço mais do que digo. A avó não moraliza. Não me inculpa pelo casamento que em má-hora fiz & em boa desfiz. Sou duas vezes filho dela, mais ainda desde que os meus pais morreram no grande incêndio de 1982. Não completei estudos. Quando morrer, completarei tudo.
    A velhota quis comprar-me uma motorizada. Recusei. Antes quis uma bicicleta em segunda-mão. Comprou-a ao Etelvino, serve-me de chochó para os poucos sítios aonde vou. Em Maio, vou nela à beira-mar. Faço a senda do pinhal, sei onde há esconderijos ideais para coisas más – ou pelo menos ilegais.
    Comemos frugalmente, não é nosso hábito empanzinarmo-nos nunca, à noite então muito menos. Não sei o que farei sem ela. Digo: se lhe sobreviver. Tudo pode acontecer. Aos meus pais aconteceu – e o meu pai era só uma vez filho dela.

155

Um dos homens desta rua: Ramiro; por ofício, bonecreiro.
Tem a oficina em pátio interior, onde se reserva.
Bonitas criações torna ele reais, de santos muitas delas.
Outras, de brincarem meninas, futuras costureirinhas.

Desta rua, uma das mulheres: Noémia, peixeira.
Nas grandes necessidades, apara de parteira.
É de desabrido falajar, mas não má pessoa.
Íntimo desgosto de amor a quedou solteirona.

Abel passa cedo sempre, mesmo aos domingos.
Aonde vai ele, ele o sabe & ele o guarda.
Poderia acertar-se o relógio por sua constância.
O pai era Ezequiel, há muito esquecido seu pó.

Um pinheiro-manso ganhou fama, a oeste.
Além da casa de Monsieur, o francês aqui radicado, sobe.
O estrangeiro cuida dele com minúcia paternal.
Sabe bem ao olhar ver o vento na brincadeira com ele.

Benedita, viúva de Celestino, já não abre a botica.
Passou-a a uma sobrinha reles, diamantina, em hora-má.
A Dona Dita não sai de casa, vai se tanto ao quintal.
O Jaimito da Mercedes leva-lhe os necessários.

Estais talvez lendo isto como se isto fôra poema.
É porque não aproveito as linhas até o fim.
E porque mudo parágrafo a quaternário ritmo.
Percebo a V.ª confusão, mal nenhum nos faz ela.

Há mais verdade neste elenco do que aparentar pode.
Rosalinda, que sofria mau casamento, logrou livrar-se.
Marcelino, seu irmão, deu uma tosa no cunhado.
Esteve preso um ano, quase o matou, foi um valente.

O homem de Rosalinda, fê-lo a vergonha fugir desta banda.
Já Marcelino, coitado, morreu pouco depois de solto.
Foi a doença-do-caranguejo, enxugou-o em dois meses.
Rosalinda temeu que o homem, sabendo, voltasse – mas não.

Em trecho desta rua mesma vi eu muita vez rosas à brisa nova.
As mesmas rosas, poalhadas de luar, eriçando o frio.
Já então eu as sondava para factura de trova
que fixasse o coração ao gume de que saiu.


22/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 150 & 151

© DA., Sr.



150

Domingo,
21 de Março de 2021

    Vi anteontem, no autocarro, uma jovem pessoa de narinas crivadas de metal: piercings & arganéus como os dos focinhos dos porcos. O pescoço, sujo de uma tatuagem ilegível. Não sei se teria dezassete anos. Tive pena dela, depois esqueci-a (sabendo de antemão que a deixaria escrita).

151

I

Incorrupção de corpos tidos por santos.
O rebanho parece necessitar de contrariedade do real.
O quotidiano comezinho melancoliza os sensíveis.
É um lenitivo, um paliativo, o suposto sobrenatural.
Aqui em Coimbra, temos a Senhora Rainha Santa Isabel.
É um ícone caro ao coração da grei conimbricense.
Fedia a rosas, garantem testemunhos da sua remoção.
Terá morrido, santa já para o povo, em Estremoz.
O meu Pai pintou-a centenas de vezes: rosa feita pão.
Eu vou mais por versos incorruptos, é parecido.

II

Ao Norte gélido em barco-veleiro, foram & tornaram alguns.
Sossegam hoje em livros bem feitos, que mui revisito.
Duros homens, chamados por certa predestinação.
À feroz Natura fizeram frente, nem sempre bem (se) houveram.
Como devassar o Cosmos, procurando saber mais.
Tem o humano algumas qualidades, negá-lo não vou.
Ao solar sul desceu Vincent em puríssima soledade.
Pina tinha gato, biblioteca, lucidez, talento.
Homens, muita grei, uns quantos singulares.
Eu tenho mercearia, uma marquise, espero nada & a ninguém.

III

Ainda assim, existir vai dando para a despesa mínima.
Respira-se, a luz pinta o mundo, vontade & realidade colidem.
Muitas vezes me ocorre a sombra de algum remorso.
Isso amarga-me, desgosta-me a disposição, fico sem graça.
O remédio é palpar as estantes, saborear os títulos.
É tão ilusória a cagança alheia quão a própria.
Ela por ela, antes a própria mesma só minha.
Shackleton foi um valente, dúvida nenhuma.
Certas noites de Verão, a Casa centrava o mundo.
Morta é sua população, há que seguir, fazer despesa.

IV

Há um óbito na minha terra.
É o da Belita, irmã da Lina.
Ambas raparigas da minha criação.
A Lina perdeu o marido no ano passado.
Agora, a irmã – mau tempo.
O meu primo Francelino está doente.
O noticiário vem chegando, imperioso.
Não é que eu o procure.
Ele arranja maneira de chegar-me.
E depois faz-se verso, impertinente.

V

Ontem não, anteontem sim, hoje também: vi o melro.
Gosto de pensar que ele me sobrevoa quando saio.
Quando não saio, ele anda ali pelo bosquete.
É terrivelmente bonito, raio do pássaro.
Ao entardenoitecer ele faz de contra-sombra no céu.
Tinge de tinta-noite o que resta de dia vivo.
Chamo-lhe Abelardo, às vezes. E Trajano.
E Calado. E Regno. Abelardo Trajano Calado Regno.
É nome grave, acho que lhe assenta bem.
Já anoitece, ele funde-se nas trevas, está tudo bem.

VI

Provenho de uma das vielas genealógicas indistintas.
Revisito-a em escrita sempre que se me esfuma o espelho.
Um chão de mortos também pulsa flores, não só pedras ósseas.
Poderosos azulejos me forram interior parede.
Lentidão de maneiras, depurado amor, sentido fino:
nada me falta, apuradas as contas a lápis.
Não nesse rumo do cumprimento individual da estirpe.
Talvez excessivamente tenha eu migrado.
Vida & morte hão-de ser aqui, não longe.
Nem para obras encerra tal viela.

VII

Estranhamo-nos. Tantos anos para nada.
Entre saber & esquecimento, venha o Diabo.
Não há volta a dar-lhe, atrás muito menos.
A luz oxidou a terra, calcinada de sombra.
Não desviarei milagres dos néscios.
Vou sozinho ao festival-das-sopas.
Um homem é um homem, dobro de metade.
Estrangeirámo-nos por livre-alvedrio.
O silêncio grita como a cal no Verão.
Deixá-lo gritar, surdos somos todos já.

VIII

Volta por calendário a Primavera.
O País é bonito, a luz o torna tal.
Soturnas imagens vivem também no real.
Li hoje versos francamente fracos.
(Alguns eram meus, valha a verdade.)
Linha a linha, o domingo é quase findo.
Pipiam luzes fraquitas no veludo negro.
Além, o Mondego sonda a frio o mar.
Água procura água: como pessoa a outra.
Ou não: como pessoa a si só, não sei.

IX

Já habitei a manhã em descuidosa plenitude.
Saúde me não faltava, nem relógios sequer usava.
Contava tudo menos horas, por minha virtude.
Duvide quem quiser: eu cá não duvidava.
Resido onde hoje r-existo, mais dentro mormente.
A gente tem de ser gente, a humana condenada.
Nada nos livra da condição de bicheza-gente.
Plenamente foi que dei a manhã por habitada.
Telefonou-me entretanto a minha Filha Leonor:
d’amor-amor sou eu seguro, ó faz-favor!

21/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 149

© DA.


149

Sábado,
20 de Março de 2021

    Swansea-Cardiff, bola no televisor. Nada de rua para mim, hoje não. Os números pandémicos parecem melhorar. De ontem para hoje, oito portugueses mortos pela praga-asiática.
    Imagens do pretérito ano 1945 d.C. dominam por momentos a pantalha de vidro. Seres tenebrosos mostram-se às câmaras-de-filmar. Potsdam, Hiroshima. Paralelo 30 coreano. Paris convalescente do longo inverno nazi. Nguyen Sinh Cung, vulgo Ho Chi Minh (O Que Esclarece). Acção, reacção. Raparigas da orizicultura. Sucessivas pragas bélicas. São imagens poderosas. Retratam implacavelmente a besta humana.
    Também os rostos de Vincent Van Gogh & Manuel António Pina. São ambos pessoas com que posso sempre contar. As obras que deixaram não capitulam. são poderosas também – mas não pela destruição, pelo avesso desta sim. O pincel de Vincent & a caneta de Manuel António captaram em pleno o sedutor mistério da aumentação do mundo. Perduram.
    Em um alto montanhoso, algumas vivendas esparsas. Têm varandas de onde miram a baía, cujo azul é forte mas inconstante. Não há por aqui banditismo. As existências assimilam o ritmo & a harmonia do meio. E o derby galês termina: Swansea-Cardiff 0-1 (golo de Flint).



20/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 147 & 148

 

© DA.


147

Sexta-feira,
19 de Março de 2021

    Vim à Música. Vim à rua, dá no mesmo. O ar é terso, a luz é tersa. Muitos conheci que, gostando de viver, não vivem já. Lamento mim adentro que esta luz & este ar lhes não sejam de proveito. É a Lei. Há já algum comércio desconfinado. Mais carros nas pistas urbanas. Ainda não é o pandemónio. Dá para versejar sem alheios cotovelos ameaçando a caligrafia. Vi uma torre loira chamada Gabriela. Continua meda de trigo. Sei-a há mais de cinquenta anos, éramos de ruas próximas. Ia vestida de marca parisiense. Não me reconheceu: isto das máscaras serve também para se ser mais só. Problema nenhum. Vi uma litografia de São Sebastião crivado de flechas, como se ele fosse Mishima & eu fizesse de Yourcenar. Frio nenhum. Na Sá da Bandeira, lá ao alto, tomo assento público, respiro um pouco a frescura nova, já entardenoitece. Para cá, vim sendo mauzinho: Faulkner é bom, Hemingway foi moda, Camus é bom, Sartre foi moda. Dá-me para coisas assim, andando livre a respiração por a minha marciana (dia dezanove) Cidade. É Dia do Pai, dizem. Já pensei hoje no meu – mas o mesmo faço de cada primeiro-de-Janeiro a cada derradeiro-de-Dezembro. (Verdade.) Todos os dias o penso. Nada lhe dói, nada lhe custa. Mas também nada o faz sorrir ou desejar. Eu gosto de Pintura porque ele era pintor. Eu sou benfiquista por ele ser do Benfica. Tudo muito fácil, curial até.
Não sei quanto tempo falta para a eternidade.
    Estou demasiado vivo para tal coisa saber.
    Saí hoje à luz tersa (mas é sexta) & à Cidade,
    algo haveria por conseguinte d’escrever.
    Pessanha é bom. Torga foi moda.

148

Não sei quanto tempo falta para a éter-idade.
Sobrevivo muito, tem-se volvido rotina.
Os poucos que escavais por esta mina
de versos, sabeis Vós o que ser há-de?

Coimbra, entardenoitecer, Sá da Bandeira.
Aqui perto, estive com Armando Silva Carvalho.
Perto também, com Jorge Manuel (uma 2.ª-f.ª),
jantei ao desbarato, como se fôra seu filho.

Estou na antecâmara de ser noitinha.
Lojistas, ele os há, mui desesperados.
O vírus-chinoca mata basta gentinha,
nem a torrão chegam os incinerados.

A moça advogada chega cansada
ao carrito de torna-casa, são sete da tarde.
Pratica há três anos, ganhou mais que nada,
mas já sépia se mostra o que era verde.

Miguel Jaguar, boy-dandy de Lordemão,
espatifou o carro que era do irmão.
Sabina Maria, lady da Arregaça,
fia muito fino à menor chalaça.

O tal Jorge Manuel frequentou o Teatro Avenida.
Tal foi noutro século, como se em outra vida.
Uso o meu amor como os passes de antigamente:
vinha o Pica e picava os de toda a gente.

19/03/2021

PARNADA IDEMUNO - 146

© DA.


146

Quinta-feira,
18 de Março de 2021


Melro


Uma das aves utentes do meu maná diário é o melro.
O maná é diário – mas ele é mais irregular.
Aparece por alta-recreação só sua, sem contas a prestar.
Amo o seu brilho de nigérrimo voo, incisivo recorte.
Come pouco & depressa: como um patrão de pequena-empresa.
Já sonhei com ele – não com melros: com ele.

Sentado

    Numa das derradeiras fotografias, está sentado num muro de jardim. Nota-se bem ser de manhã: a roupa imaculada, como recém-envergada, sem folgas; o calçado lustral de graxa fresca, o todo de si mui ataviado. É a meio de uma década agreste – mas talvez o sejam todas. O ponto está em saber derradeira esta série de fotografias, uma das quais o vê sentado, bonito, ataviado, desconhecendo o que aí vem.

Crimes

O jornalixo-mirone triunfa neste País fruste de vistas.
Espécie de gula necrófaga faz babar os jornalixeiros.
A isto acrescem as pseudo-feministas, os veganistas,
os pseudo-anti-racistas & uma carrada de paneleiros.

História

    Ou antes: uma não-história. Digo: texto que reportasse da força da ausência, a autoridade da mudez, a indiferença como modo & filosofia de vida. Parece-me muito interessante. Caminho de pinhal por onde siga ninguém. Praia no inverno mais gélido. Ruínas de sanatório sem fantasmas sequer. Céu sem um avião. Jarro sem flores. Flores sem jardim. Jardim sem jardineiro. Muito interessante isto – isto de, em vez de falar sozinho, falar para o não-boneco.

Coimbra

    Vias arteriais abrem caminho no ar de todos, azulejos & árvores aguarelam a visão, permanece certa confiança fundamentada no uso de anos indesmentidos.
    Os domingos são terríveis.
   O sabor a derrota pode ser, se não evitado, procrastinado mercê de constante releitura: rostos em vez de caras, lares em vez de construções, percursos em vez de carripanas, linhas em vez de pontos.
    Há que nascê-la sempre, mesmo (ou sobretudo) se em pessoal orfandade. Conhecer liberta; reconhecer livra.
    É-se derradeiro guardião de um tesouro não-cobiçado. Também a intransmissibilidade se aprende – mais ou menos penosamente, primeiro; indiferentemente, depois.
    Minudências conjunturais implicam trajectos: resolvidas aquelas, tornam, a estes, sinónimos do tempo mesmo que levaram & os levou.
    Em um daqueles domingos, uma pomba era devorada por pombas. Aconteceu perto do Palácio da Justiça. Houve quem viss’e’screvesse o que acontecia. É desde então um rodapé da história-individual. (Ou não-história.)
    Choca, dentro, defrontar tantos monumentos interditos. Ou receber nomes de mortos em vivas epifanias, aparições recorrentes que se mesclam às ruas mesmas onde se dão.
    Serenidade é também possível, arejando a ideia por as zonas que o pato-bravo do XXI não haja ainda maculado. Não se espere artista em tal despovoamento, porém. Ele não é necessário.
   Em suportes oblíquos, fotografias de Queimas repetidas, gerações umas de outras clonadas, tradição por imitação, nada de grave. E, de dois em dois anos pares, a Rainha Santa, a multitudinária Senhora de Aragão a Coimbra via Trancoso.



Canzoada Assaltante