© DA.
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Terça-feira,
30 de Março de 2021
A tarde acontecia como na plateia acontece a atenção.
Viéramos das poucas compras, separámo-nos às 14h30m.
Fiquei no alpendre depois de arrumar no frio os perecíveis.
Trouxe chá-preto-limonado, um cigarro só, uma revista.
Em transumância, nuvens nutridas alvejavam o azul.
Passou no carreiro dos Gregórios a rapariga de camisola roxa.
Pelo mesmo atalho passou Manuel G., de bicicleta pela mão.
Não estou seguro de em que ano isto possa ter sido.
Faço ideia aproximada, mas não arrisco numeração.
Sei que a mocidade era connosco, que era bom o chá com gelo.
Dormitei a pedaços, aninhado no facto de nada esperar.
Sonhei farrapos fugazes, acontece-me muito.
Da ladeira dos Filipes veio o rancho de jornaleiras.
Penso que vinham de fazer silagem de milho.
A revista era o n.º 2 da série Telémaco.
O número era dedicado ao imanentismo-transcendental.
Os artigos tentavam sondar o insondável, Deus lhes perdoe.
Já a tarde descia, a nespereira ganhava aura.
Alejo Carpentier, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Borges: vivos todos.
Qual deles de gardénia à lapela? Talvez o cego.
Clarão púrpura estriado a laranja para o lado (suposto) do mar.
É maravilhoso que 26 letras bastem para segregar um mundo.
Voltei para dentro, deixei a revista no banco longo lá fora.
Há muito que a Telémaco deixou de ser publicada.
Já não há grande público para coisas escritas em papel.
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Cães a que dávamos nomes de rios, como era então uso:
Mondego, Tejo, Douro, Pavia, Guadiana, Tinto, Ceira.
Outros nomes eram, por mais raros, encantadores.
Pinóquio, Pete, Fome, Ringo, Cisco, Boy, Paris.
Persistência dessa nomenclatura tão baptismal quão a infância mesma.
A infância mesma que carecia de nós para nomear tudo.
E os objectos cintilavam por serem todos de celofane a estrear.
Falência era vocábulo que os velhos escondiam entre farrapos.
Às 17h45m ela voltou com as compras que não precisavam de frigorífico.
Esta não-história vai sendo contada, recontada & requentada.
Nunca me sinto a sós em casa onde esteja deveras sozinho.
Os cães-rios correm por aqui, aninham-se em plateia.
Aninham-se em plateia, esperam com atenção o espectáculo.
(Não foi Genette a dizer que o texto literário era texto-espectáculo?)
Adriano de Tavarede correndo de bata no telheiro do colégio.
O Fernando do doutor Carvalho quase mortalmente atropelado.
Na ladeira do Cidral, o salão-de-bilhares com bufete de refrigerantes.
Antes-&-depois em o perene jogo-do-agora, como sempre até nunca.
Se alguém espera que o mundo espere, desespera por certo.
Este bairro é de sossego, que nenhuma casa dele nele arda toda.
Quem quer considerar a placenta como primeira & penúltima batalha?
A qualquer véu como a qualquer sudário, rosto limpo se prefira.
Seth, bom rapaz, rir-se-ia de teu hermetismo a verde Ana Luzia.
Não, olha, nada faças que perturbe o bípede gado feliz-da-vida.
Telémaco tinha Argos, cão de nome que não usámos em algum nosso.
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Ser-se uma desilusão para os outros não obriga a purgatório.
É-se limitado ao próprio corpo, só a ele se é vinculado.
As alheias virtudes prestam, se copiáveis depois de assimiladas.
Os alheios juízos, faça-se deles papel – o mais higiénico, s.f.f.
Institucionalizada, a mãe das gémeas Castro vive em anestesia.
Pertence a uma doença sem retorno, só a química a derruba.
Isabel & Marta Castro há muito desistiram dela, coitadas & coitada.
O hospício é para lá da mata alta, planeta à parte do orbe.
Há quem se recorde Helena Castro, em solteira Damasceno.
Belmiro recorda-se, Basílio também, Anacleto mais ou menos.
Helena matou seu crudelíssimo esposo, pai das meninas duplicadas.
Tovar Castro bebia o mar de vidro de todas as marcas.
A noite chegou em que não atingiu Helena, finalmente.
Uma história triste como tantas por aí, conheceis muitas decerto.
A senhora passou-se, quis matar-se, levaram-na os batas-brancas.
Disseram mal dela, chamaram-lhe coisas horrendas, ela desiludiu-nos.
Vai libertá-la a mais recente novidade: tem um glioblastoma.
Sexta-feira operam-na por caridade: ficará vegetal.
Tovar desaparecerá, Isabel também, Marta também.
Chorá-la-á Belmiro? Basílio pranteá-la-á? Anacleto, não.
Ser-se vivo pode não passar de ilusão para os outros.
O corpo pode fabricar em si a janela de escape.
Pode ser que as filhas queiram agora falar-lhe.
Tarde vão, a demasia lhes será dada em perene noite.
Que lhes corresponda em juízo o que por virtude mostraram.