10/03/2020

CADERNETA PRETA - 35 [ trecho de a) + b) integral) ]






35. Cenário & Turismo


a) Domingo, 22 de Dezembro de 2019

 (...)

Rilke em prosa, em Shmergenhork & em Fevereiro de 1899:

“Porque, do nosso passado, não possuímos senão aquilo que amamos. E queremos possuir tudo o que vivemos.”



b) Segunda-feira, 23 de Dezembro de 2019


Há (ainda poucas) horas, dei por encerrada a jornada dominical com Rilke. Começo a ganhar a segunda-feira com estes dois senhores: Belo & Jorge. Havereis talvez de V. lembrar de que ando nisto pela palavra-justa, pelo verso-justo. Então, Ruy Belo em Madrid e a 15 de Maio de 1977 (um domingo):

“Somos da terra quando sob a terra
temos uma pessoa de família”.

E João Miguel Fernandes Jorge contracanta:

“Dizem que são os mortos
o que pertence demasiado
ao nosso coração.”

Cá estão elas, as justas, os justos. Bom & justo nos seja o dia, que nos não matou a noite.

*

Tudo serve de cenário, a começar por dentro. Longa língua de areia través mata vizinha do mar. Ou penedia com degraus naturais, a muitas milhas da língua. Pode tudo ser enquanto houver planeta. No fundo, vale o mesmo. Ninguém fica, só alguma escrita – e mesmo esta, enfim, já se sabe.
O acima-exposto, tanto no entanto como no entretanto, não é cedência a qualquer desistência. Não minha. À falta de cena grandiosa, cria-se-lhe alternativa. Não é difícil nem prejudicial à saúde. A ver (ou a ler, ou a-ser:)

*

Aldeia. Exéquias de alguém.
Vieram notáveis da vila.
Coroas a roxo, rosa-chá.
Por junto, talvez quatro lágrimas.
Era Baltazar Branco Botelho.
1907-1987, nada mau.
Paciente, agregou património.
Idem, idem matrimónio.
Honrou as jornas devidas.
Não falhou ao Estado.
Perito em ocultar melancolia.
Bastas vezes a sentia.
Não é maleita de homem.
É de mulheres ou de poesia.
Aldeia. Enterro. Já não chovia.

Vila. Rebentamento de conduta.
Chapinha-se no largo do notário.
Há já basbaques & maledicência.
A torta palmeira velha ondula.
O cão do padeira rilha um sapato.
O doidinho oficial vem hoje de gnr.
O sargento-músico toma chá.
Passa sem peso mas com gravidade.
Quem sem peso mas gravidade?
É Rita Ramalho Branco Botelho.
Opípara herança, é o que rosnam.
Empedernida solitária, ’té agora.
Não acabou o liceu, preferiu trabalhar.
Está ali outro pai, rosnam de saias.
Não se dá com a mãe.

Cidade. Fornalha solar. Sem escapatória.
O rio, três fiapos de água choca.
Vovôs com netinhas, balões murchos.
Esfarela-se o amarelo do governo-civil.
Ousados cicloturistas, nem boina levam.
Além do último pano de muralha, a mata.
No hospital velho, últimos óbitos.
Inaugura-se em Junho o novo.
Vem Sua Excelência Maioral Magnífica.
Batas brancas, fatos-macaco azuis.
O cemitério alto é falésia branca.
Cal dos mortos, derradeira purga.
Autocarro pejado, insuportável estufa.
Nem as igrejas refrigeram, que maçada.
As estações eram dantes mais certinhas.

Serra. O agricultor é pessoa feliz.
Não vive do mel, vive para as abelhas.
Habita em pedra casa indestrutível.
Mais velha do que o século, bendita.
Pai dele, pai do pai dele, por aí fundo.
Rosmaninho, lavanda, alfazema, rosa.
Milho, feijão, batata, laranja.
Água não falta por a encosta.
Também Branco, Botelho também, mas Belarmino.
Irmão mais velho do de lá baixo.
A notícia demorou dias a subir.
Mesmo sabendo a tempo, não iria.
Avenças & desavenças antigas.
Mais insanáveis quão mais consanguíneas.
O costume, nada de estranho a Deus.

Praia. Gaivotas transparentes ao largo.
Criancinhas feitas de neve falante.
Vovôs amodorrados em pau-lona.
O banheiro crestado de sal brônzeo.
Dois cavalheiros prai’acim’abaixo.
Um é Palomar, outro é Hulot.
Ou então, um Bouvard, outro Pécuchet.
Tudo pode ser, se na praia.
Verdade a dobrar, se nós nela crianças.
É preciso não cuidar disso.
É preciso ser Belarmino.
Está bem, abelha – diz o hílare.
Mesmo pedra indestrutível se faz areia.
Longa língua de areia través a mata
etc.

*

Oito dias ainda – e o ano acaba-se. Vem outro número, a roda é insaciável. Outras bugias farão & darão, de sebo, luz. Luz de presença, sombra de ausência – é dialéctica imorredoura. É o que é. Conhecê-lo é inócuo. Já nem arde na pele. Não se deve adormecer de vela ardendo. Sopra-se a língua vertical, a escuridão faz-se placenta, podemos voltar a astronavegar a Mãe. Se, por sorte, chover no mundo, é só deixar entrar essa voz do céu, deixá-la penetrar a catedral da mente em fundura. E o vento que a inclina em vívido tango. É o que quiseres, como quiseres, quando quiseres, se quiseres. Nomes. É bom nomear – mesmo fantasmas: ou sobretudo fantasmas. Oito manhãs ainda – nada mau. Largueza de campos daqui ao mar. É verdade que o Baixo Mondego destes dias se viu (de novo) mar ele mesmo. Condutas & diques rebentados pelo engrossar do velho Mondego. Depois, há-de vir a tórrida estiagem, a seca africana, agora é de reler aquele verso de há pouco, como era ele?, era assim:

As estações eram dantes mais certinhas.

Tenho assuntos a resolver. Melhorar uns, espero; piorar outros, suponho. É como toda a gente, nisso não hei-de ser poeta.

Revi hoje dois nomes: Eva Braun (Hitler por um dia) e Cliff Richard. Encadernetei-os, por assim dizer. Eva de vacanças na Itália, Cliff proprietário ali no Algarve. Eva com as amigas na cascata, Cliff pareceu-me solitário na multidão como um guarda-chuva entre guarda-chuvas. Fingi depois libertá-los – mas eles aqui ficam, devidamente engaiolados.

Para operar transição, fui fazer café. Resultou. Bebi-o de pé na marquise, mirando o largo Inverno que a tudo estreita. Bonitos campos, glaucas aragens. Remexi depois papelada vetusta: minha, muito minha, só minha. Reordenei (isto é, desordenei com método) alguns objectos, servi-me de mais café (tenho-o feito mais chilro para lhe adir usufruto & me defender as válvulas, por assim dizer), fui preparando as leituras da noite – para hoje, temos Rilke, London, Quintinha (Julião), talvez um pouco de Fielding, se aguentar. E pus bacalhau de molho, que isto de ser Natal obrigada a não brincar com a devoção.

*

Turismo

Urano. Neptuno. Urso do Alaska. Duração da luz em Junho. Calorias a assimilar. Supernova. Buraco-negro. Caribu. Senhora Ermelinda. Crias exigentes. Espelho-de-água. Tundra. Taiga. Colcheia. Semicolcheia. Zéfiro. Zénite. Adão & Eva. Eva & Adolf. Jacinto-de-água-de-Tormes. Io. Europa. Frederico. Oliveira. Águia-careca. Líquenes. Hífenes. Bond. James Bond. Bar. Snack-Bar. Digestão. Desemprego. Morraceira. Curraleira. Dote. Antídoto. Antínoo. Manucura. Cio. Paleta. Junta Autónoma das Estradas. João. Lucas. Marco do Correio. Mateus Rosé. Morsa. Código. Estearina. Eutanásia. Marte. Aljustrel. Amêijoa. Orchata. Bosque. Vicente. Ptolomeu. Duíno. Abeto. Faia. Barreirense. Alfredo. Pousio. Lavradio. Praça. Do comércio. Da República. Do Peixe. De Alexandre. Bering. Sado. Marquês. Andaluz. Camilo. Tomás. Cabana. Som. Fúria. Ricardo. Descontentamento. Racionamento de pão. Via alternativa. Tetris-Nível-2. Blusa matizada. Fio de baba. Atum Tenório. Sonoro. Teodoro. Prova. Provação. Saturno. Nardo. Austrália. Cook. Mestre. Leónidas. Térmita. Marmita. Coníferas. Montemor-o-Velho. Etc.


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Canzoada Assaltante