35. Cenário & Turismo
a) Domingo, 22 de Dezembro de 2019
Rilke em prosa, em Shmergenhork
& em Fevereiro de 1899:
“Porque, do nosso passado, não possuímos senão aquilo
que amamos. E queremos possuir tudo o que vivemos.”
b) Segunda-feira, 23 de Dezembro de 2019
Há
(ainda poucas) horas, dei por encerrada a jornada dominical com Rilke. Começo a
ganhar a segunda-feira com estes dois senhores: Belo & Jorge. Havereis
talvez de V. lembrar de que ando nisto pela palavra-justa,
pelo verso-justo. Então, Ruy Belo em
Madrid e a 15 de Maio de 1977 (um domingo):
“Somos da
terra quando sob a terra
temos uma
pessoa de família”.
E
João Miguel Fernandes Jorge contracanta:
“Dizem que
são os mortos
o que
pertence demasiado
ao nosso
coração.”
Cá
estão elas, as justas, os justos. Bom & justo nos seja o dia, que nos não
matou a noite.
*
Tudo
serve de cenário, a começar por dentro. Longa língua de areia través mata
vizinha do mar. Ou penedia com degraus naturais, a muitas milhas da língua.
Pode tudo ser enquanto houver planeta. No fundo, vale o mesmo. Ninguém fica, só
alguma escrita – e mesmo esta, enfim, já se sabe.
O
acima-exposto, tanto no entanto como no entretanto, não é cedência a qualquer
desistência. Não minha. À falta de cena grandiosa, cria-se-lhe alternativa. Não
é difícil nem prejudicial à saúde. A ver (ou a ler, ou a-ser:)
*
Aldeia.
Exéquias de alguém.
Vieram
notáveis da vila.
Coroas
a roxo, rosa-chá.
Por
junto, talvez quatro lágrimas.
Era
Baltazar Branco Botelho.
1907-1987,
nada mau.
Paciente,
agregou património.
Idem,
idem matrimónio.
Honrou
as jornas devidas.
Não
falhou ao Estado.
Perito
em ocultar melancolia.
Bastas
vezes a sentia.
Não
é maleita de homem.
É
de mulheres ou de poesia.
Aldeia.
Enterro. Já não chovia.
Vila.
Rebentamento de conduta.
Chapinha-se
no largo do notário.
Há
já basbaques & maledicência.
A
torta palmeira velha ondula.
O
cão do padeira rilha um sapato.
O
doidinho oficial vem hoje de gnr.
O
sargento-músico toma chá.
Passa sem peso mas com gravidade.
Quem sem peso mas gravidade?
É Rita Ramalho Branco Botelho.
Opípara herança, é o que rosnam.
Empedernida solitária, ’té agora.
Não acabou o liceu, preferiu
trabalhar.
Está ali outro pai, rosnam de
saias.
Não se dá com a mãe.
Cidade. Fornalha solar. Sem
escapatória.
O rio, três fiapos de água choca.
Vovôs com netinhas, balões
murchos.
Esfarela-se o amarelo do governo-civil.
Ousados cicloturistas, nem boina
levam.
Além do último pano de muralha, a
mata.
No hospital velho, últimos óbitos.
Inaugura-se em Junho o novo.
Vem Sua Excelência Maioral
Magnífica.
Batas brancas, fatos-macaco azuis.
O cemitério alto é falésia branca.
Cal dos mortos, derradeira purga.
Autocarro pejado, insuportável
estufa.
Nem as igrejas refrigeram, que
maçada.
As estações eram dantes mais
certinhas.
Serra. O agricultor é pessoa
feliz.
Não vive do mel, vive para as
abelhas.
Habita em pedra casa
indestrutível.
Mais velha do que o século,
bendita.
Pai dele, pai do pai dele, por aí
fundo.
Rosmaninho, lavanda, alfazema,
rosa.
Milho, feijão, batata, laranja.
Água não falta por a encosta.
Também Branco, Botelho também, mas
Belarmino.
Irmão mais velho do de lá baixo.
A notícia demorou dias a subir.
Mesmo sabendo a tempo, não iria.
Avenças & desavenças antigas.
Mais insanáveis quão mais
consanguíneas.
O costume, nada de estranho a
Deus.
Praia. Gaivotas transparentes ao
largo.
Criancinhas feitas de neve
falante.
Vovôs amodorrados em pau-lona.
O banheiro crestado de sal
brônzeo.
Dois cavalheiros prai’acim’abaixo.
Um é Palomar, outro é Hulot.
Ou então, um Bouvard, outro
Pécuchet.
Tudo pode ser, se na praia.
Verdade a dobrar, se nós nela
crianças.
É preciso não cuidar disso.
É preciso ser Belarmino.
Está bem, abelha – diz o hílare.
Mesmo pedra indestrutível se faz
areia.
Longa língua de areia través a
mata
etc.
*
Oito dias ainda – e o ano
acaba-se. Vem outro número, a roda é insaciável. Outras bugias farão &
darão, de sebo, luz. Luz de presença, sombra de ausência – é dialéctica
imorredoura. É o que é. Conhecê-lo é inócuo. Já nem arde na pele. Não se deve
adormecer de vela ardendo. Sopra-se a língua vertical, a escuridão faz-se
placenta, podemos voltar a astronavegar a Mãe. Se, por sorte, chover no mundo,
é só deixar entrar essa voz do céu, deixá-la penetrar a catedral da mente em
fundura. E o vento que a inclina em vívido tango. É o que quiseres, como
quiseres, quando quiseres, se quiseres. Nomes. É bom nomear – mesmo fantasmas:
ou sobretudo fantasmas. Oito manhãs ainda – nada mau. Largueza de campos daqui
ao mar. É verdade que o Baixo Mondego destes dias se viu (de novo) mar ele
mesmo. Condutas & diques rebentados pelo engrossar do velho Mondego. Depois,
há-de vir a tórrida estiagem, a seca africana, agora é de reler aquele verso de
há pouco, como era ele?, era assim:
As estações eram dantes mais certinhas.
Tenho assuntos a resolver.
Melhorar uns, espero; piorar outros, suponho. É como toda a gente, nisso não
hei-de ser poeta.
Revi hoje dois nomes: Eva Braun
(Hitler por um dia) e Cliff Richard. Encadernetei-os, por assim dizer. Eva de vacanças na Itália, Cliff proprietário
ali no Algarve. Eva com as amigas na cascata, Cliff pareceu-me solitário na multidão
como um guarda-chuva entre guarda-chuvas. Fingi depois libertá-los – mas eles
aqui ficam, devidamente engaiolados.
Para operar transição, fui fazer
café. Resultou. Bebi-o de pé na marquise, mirando o largo Inverno que a tudo
estreita. Bonitos campos, glaucas aragens. Remexi depois papelada vetusta:
minha, muito minha, só minha. Reordenei (isto é, desordenei com método) alguns
objectos, servi-me de mais café (tenho-o feito mais chilro para lhe adir
usufruto & me defender as válvulas, por assim dizer), fui preparando as
leituras da noite – para hoje, temos Rilke, London, Quintinha (Julião), talvez
um pouco de Fielding, se aguentar. E pus bacalhau de molho, que isto de ser
Natal obrigada a não brincar com a devoção.
*
Turismo
Urano. Neptuno. Urso do Alaska.
Duração da luz em Junho. Calorias a assimilar. Supernova. Buraco-negro. Caribu.
Senhora Ermelinda. Crias exigentes. Espelho-de-água. Tundra. Taiga. Colcheia.
Semicolcheia. Zéfiro. Zénite. Adão & Eva. Eva & Adolf.
Jacinto-de-água-de-Tormes. Io. Europa. Frederico. Oliveira. Águia-careca.
Líquenes. Hífenes. Bond. James Bond. Bar. Snack-Bar. Digestão. Desemprego.
Morraceira. Curraleira. Dote. Antídoto. Antínoo. Manucura. Cio. Paleta. Junta
Autónoma das Estradas. João. Lucas. Marco do Correio. Mateus Rosé. Morsa.
Código. Estearina. Eutanásia. Marte. Aljustrel. Amêijoa. Orchata. Bosque.
Vicente. Ptolomeu. Duíno. Abeto. Faia. Barreirense. Alfredo. Pousio. Lavradio.
Praça. Do comércio. Da República. Do Peixe. De Alexandre. Bering. Sado.
Marquês. Andaluz. Camilo. Tomás. Cabana. Som. Fúria. Ricardo. Descontentamento.
Racionamento de pão. Via alternativa. Tetris-Nível-2. Blusa matizada. Fio de
baba. Atum Tenório. Sonoro. Teodoro. Prova. Provação. Saturno. Nardo.
Austrália. Cook. Mestre. Leónidas. Térmita. Marmita. Coníferas.
Montemor-o-Velho. Etc.
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