36. Um Natal de Cão com Gato
a) Terça-feira, 24 de Dezembro de 2019
Recorte de jornal de Dezembro de
1984: Luís Miguel Nava (morreu tão novo: 1957-1995) sobre Gastão Cruz. Dois
belos nomes, duas obras valerosas,
como camonianamente se pode ’inda dizer.
E de O Pianista de Gastão Cruz sigo para A Flor Evaporada de Alexandre Pinheiro Torres. Antes estive em O Bar da Associação de António Duarte Bento (Anarto, por acrónimo). Tudo da primeira meada de 80/XX.
Mais fundo, lá para o 1917 do
senhor meu Pai, folheio o Eu Sei Tudo,
edição brasileira muito maltratada pelos anos. Ainda assim, dá para ler o poema
(triplo, três sonetos) Lady Godiva do
inefável (desde o malandro do Almada) Júlio Dantas.
E mais imaginação (no próprio
sentido de geração de imagem): a Psyché
marmórea do escultor dinamarquês Bartholomeu Tholivaldsen; quadros de H.
Guinier, J. Leepoels, B. Wennerberg, J. A. Muenier, A. Flameng, F. Auburtin.
Também: a primavera carioca começa, no calendário deles, a 21 de Setembro. E
parece ter havido no londrino Empire Theatre uma actriz chamada Mabet Funston. Também
uma Lady Diana Wanners terá figurado como estátua viva da Madonna do século XVI
no londrino Savoy Hotel, em beneficência da Cruz Vermelha Italiana, durante a
Grande Guerra de 14-18/XX. Do outro lado do Canal, no teatro da Porte Saint
Martin, Paris, vicejava a actriz Madeleine Choiseul. Quanto ao actor alemão
Anton Long, da companhia Oberammergau, era famoso por, na Semana Santa, representar
Cristo ante milhares de espectadores – até morrer na Batalha de Verdun,
integrado que fôra em um regimento de caçadores.
Coisas assim, próprias – julgo eu
que com acerto – da minha primeira Consoada a sós com o Gato.
*
Homem de fato azul completo apoiado
ao pilar da arcada. Pasta aos pés, jornal quebrado na mão esquerda. Bem
escanhoado, colarinho de irrepreensível alvura, gravata de um roxo-profundo.
Sapatos valiosos. Nota-se logo que está habituado a esperar sem mostrar
desespero. Profissão tipo seguros, finanças, alguma dessas coisas não
susceptíveis de recordação dois dias passados além-morte. Se aqui o refiro,
refiro-o aqui por reconhecer nele um dos miúdos do meu tempo miúdo. Crescemos
entanto alguma coisita, parece. Agora, decrescemos. Ele tem cara de ter família
e até de falar com ela. Espero que sim, enfim, mal lhe não faria. Não o vi
hoje, hoje não saí de casa nem para ir ao contentor do lixo – móvel urbano onde
sempre acabam os restos & o espírito natalícios. Vi-o há tempos poucos, não
tomei nota momentânea então, acabou por passar-me, ó imóvel trepidação imóvel
da minha vida. Li hoje alguma que me o
recordou. Não importa. Fica o cromo (esta palavra tornou-se depreciativa nos
correntes tempos). Mal não faz.
b) Quarta-feira, 25 de Dezembro de 2019
Cá ’stamos pois os dois, Gato &
eu. Bacalhau etc. Rabanadas, café etc. Já houve no mundo uma pouca de sol, mas
a tarde dá de si apagadota. O Mondego inflacionado da Elsa vai descendo ao nível normal. Ainda lá têm o dique por
reparar. Na cintura de Montemor-o-Velho, quem casa tem, tem de limpá-la agora,
agora que retrocederam as águas barrentas. Muita cultura estragada. Muita
televisão deliciada com o escândalo, afinal natural, das chuvadas intensas. O
Gato & eu cá estamos.
Apanhei-me a conferir, dedo a dedo,
item a item, aquela Alemanha que foi ao tempo da Grande Guerra 14-18, o Adolf
não passava de cabozito-estafeta de recados intertrincheiras. Assim: Alemanha,
quatro reinos (Prússia, Baviera, Saxónia, Württemberg); seis grão-ducados
(Baden, Hesse, Mecklemburg-Schwerin, Saxe-Weimar, Mecklemburg-Strelitz,
Oldemburg); cinco ducados (Brunswick, Saxe-Meiningen, Saxe-Altemburg,
Saxe-Coburg-Gotha, Analt); sete principados (Schwarsburg-Sondershausen,
Schwarsburg-Rudolfstadt, Waldeck, Reuss (Senior), Reuss (Junior),
Schaumburg-Lippe, Lippe); e três repúblicas: Lübeck, Bremen, Hamburg.
Um bocadinho mais, portanto, do que
as nossas Beiras Alta, Baixa e Litoral.
Em outro plano do mesmo dia,
saturado o corpo de vitualhas quase frugais afinal, estendo-me sem pensar de
mais. Já li João de Deus um pouco, um pouco de Augusto Gil, um pouco de Fialho
de Almeida, um pouquíssimo de Raul Brandão – mortos há tanto, sim, mas tão
persistentes em voz escrita como o vento, que, não se escrevendo embora, porém
se não prescreve. (Bem mais bem o diz, a este mote, Luiz Pacheco – in A Velha Casa, nos Exercícios de Estilo, pp. 33, Editorial Estampa, Lx., 1973:
“(…)
e, devagar, começou a ler títulos, lombadas, a procurar autores que sabia que
estavam ali, vivendo no que tinham dito outrora e vivendo porque eram lidos
ainda agora (…)”.
Há na cozinha café feito de fresco,
broa-doce & broa-salgada, rabanadas (não ficaram boas), doce-d’ovos,
bacalhau; no quarto, dormem de pé lápis por estrear, os três cadernos guardados
para Janeira, lá chegando eu ao ano número VinteVinte.
Pressa de nada. Liguei uma máquina
que aqui tenho, dela promanam cantatas bachianas. O Gato adormeceu, agasalhei-o
de flanela, nem tuge. O exterior não estraçalha intempérie, antes sereno
apagamento, aos catorze passados das dezassete já a tintureira noite corruga a
orfandade da luz; já o ocaso dá de ir taçalhado o atomizado oiro de manhã ter
havido brevíssima.
Cearei chá, bocados de bolo limonado,
não sei se ainda algum diamante de queijo fulge no mosquiteiro. Tenho para
amanhã três, não, quatro voltas a dar, três das quais todas a papel. Serão
volteadas quando forem, até lá tenho por devassar a cordilheira da noite. Nem
recados a dar nem a levar com eles. Mansa percaminhação, por assim dizer, me
ambulará às repartições visadas essa ainda remota Quinta-feira, 26 do corrente.
Nem de profundis – de autocarro sim.
Mas olhai-me entrementes aqueles
cinzentos, que não dá para imaginar azuis, estriando a poente o poente que se
estreia. São quanto há de derradeira luz, em cerce & célere breve se
consagrará a noite do Dia dito de Natal por assim o lacrar o calendário, folha
de mais obtusa para saber o que sejam álacre lacre & festa caridosa.
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