25/03/2020

VinteVinte - 6 (todo)


Ilustração colhida do blog The Red Hand





6.

DONAS DO S.E.

Coimbra, de 22 a 24 de Janeiro de 2020



I

A mulher de preto-e-branco na estepe.
Veio sozinha e é a sós que se pretende.
Dispõe de meios e conhece os seus fins.
O vento é intenso nesta área despovoada.
Fissuras na terra e na pedra alertam-na.
O primeiro ano já acumula trabalhos finais.
Alguns dias & muitas noites ficaram nas cartas.
Parece de descabelada ficção ter passado um século.

Enquanto a mulher única se desmaterializa,
um certo homem guarda dela papéis sem cópia.
Parece haver pureza no que se dizem por escrito.
Ele nunca a visitará na estepe, não há sinais.
Ela sim, vem tomá-lo à metrópole algumas vezes.
Aqui, sinto alguma indecisão: que homem?
Como lhe chama ela? Artur? Alfredo?
As cartas nem sempre são explícitas, pois não.

Nada sobra da casa original na estepe.
Ela não legou filhos ao tempo vindouro.
Duradouro, o trabalho dela, que continua primevo.
Hoje é mui mais esquecível do que ela.
Digo: hoje, o dia em que escrevo sobre ela.
Uma fotografia guarda-a à face de um lago.
É uma imagem que lhe presta fidelidade.
Nem Artur nem Alfredo constam daquela água.

II

Em manhã remo(r)ta de século já impossível,
homem & rapaz cavalgam por pedra & neve.
É império deles tão-só o instante mesmo indo-se.
A sabedoria do adulto transita o moço.
As duas montadas tramitam resignação paciente.
A uma hora do meio-dia atingem a meta.
É um edifício da mesma natureza da noite.
Pouquíssima gente o integra, naquela hora. Ou era.

III

Anselmo ou Adão? Anselmo e Adão?
Hesito de plena indeterminação.
Seja(m) um ou dois, importa a caça ao instante.
Digo: apenas importa o instante (apenas) eterno.
Árvore, adobe, pedra – tudo sem condescendência.
E a emersão das linhas até então afogadas.
Algumas delas, da Praia da Consolação.
Algumas outras, do Yosemite, lá tão longe.

Quando se pensa na insignificação geológica do humano,
é terrível, a pessoa queda-se petrificada.
Suaves cinzentos prometem olvido indolor.
Anselmo, Adão, Artur, Alfredo: mulher alguma.
Emoção estética: esse opiáceo esplendor, sim.
Filtros íntimos protegendo a autopreservação.
Como cada concerto: o pianista toca(-se) outro.
Daí que Anselmo ou Adão e Anselmo e Adão.

IV

Deve dormir bem aquele que merece a luz.
Aquele que por dentro se despiu sem espelho.
Se se sabe irremediável, acha-se remediado.
Merece pois dormir sem sonhos alienígenas.
Nada-zero importa o que dele pensem ou ladrem.
Podem distância & proximidade ser sinonímia.
Volitivamente suportar a desmesura do inevitável.
Por exemplo, aquele sol da tarde no ano-dez/XXI.

Nunca o lamechas, jamais o choramingas.
Sempre o etern’efémero, sempre o único-plural.
Pobres pessoas, essas que são putas sem precisão.
É entre o riso e o pranto que fica a terra-de-ninguém.
Obsolescência fatídica da máquina como do sentimento.
Só enfim a árvore-fruteira, a pedra ao sol.
Só enfim o animal em descuidada majestade.
Ali mais para o bosque, por onde o trilho.

Severo declínio aguarda aquele que precoce não parte.
Isso parece injusto como aparece certo.
Uma verdade interior faz de vento vibrando vidros.
Essa verdade é a que se leva para o sono.
Essa verdade é a que traz o melhor sono.
E o pior também, esse dos sonhos não-mentirosos.
Depois a manhã vem ser milagre.
E a noite é perdoada, afagada a frio.

Tudo – desde que a sós.
O resto é todo ele feito de raspagens.
Permanecem umas quantas luzes-guias.
Sinuosamente recta, a via/vida ondula.
Aquele que desperta, esse não espera.
Desespera quem espera, tal tem força de lei.
As putas esperam.
Ali delas o trilho, por onde o bosque.

V

Outra senhora dá cena de si em imagem verbal.
Está em casa, trabalha à luz de janela alta.
Faz-lhe bem, a perfeição de fora: verdura, lago.
Senta-se por meias-horas, levanta-se, deriva, levita levezita.
Trabalha sempre, mesmo que dormindo.
Consegue lançar pontes duradouras d’aquém-si a si-além.
Lançada uma, vai desta à necessária seguinte.
Celebro a imagem dela – de lilás, nessa manhã, por pura, púrpura.

A propriedade de cenas afins abasta-me.
Enquanto ela trabalha, quando é lida.
Agora que morta, dona do século extinto. 

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Canzoada Assaltante