5.
QUINTA A DOMINGO
Coimbra, de 16 a
19 de Janeiro de 2020
I
Mantiveram-se
afastados a cidade & o campo.
Mal
fui, se alguma vez fui, à janela.
Preferi
a zona da casa que voz profere.
Ouvi
falar a mulher que foi enjaulada.
Foi
enjaulada por ter querido uma morte.
Pagou
a um homem para lhe matar o marido.
O
homem era polícia à paisana.
Ela
caiu na esparrela, desolado o marido.
Tragicomédia
de tudo isto.
Fui
depois a França, escutei vítimas.
A
Cidade-Luz & suas Sombras-Macabras.
Abriu
as pernas aos ratos, agora lixa-se.
Depois
da sopa, o sono nada quis comigo.
Li
papéis alheios, pesados já de anos.
Um
deles era um triplo manuscrito.
Era em
Língua Portuguesa, a mais bela.
O
original é de há perto de dezoito anos.
Lembro-me
de ter entrado em a posse dele.
Lembro-me
desses dias a que chamei meus.
Aquelas
três folhas eram tristíssimas.
Primavam
por a mais crua verosimilhança.
Reli-as
sabendo que morreu já o autor delas.
Matou-se,
sei disso também, lamento-o.
Distraí-me
brincando com o Gato.
Ele
prefere a bolita azul, tem guizo (a bola).
Gostamos
de jogar às escondidas.
Ele é
criança, tem oito meses (dos de humana contagem).
Eu sou
um museu do século passado.
Ouço
em lápis as vozes, dou-lhes corda.
Nem
sempre prestidigito o enunciado.
Também
me acontece não ser nefelibata:
Também
sei escrever pão-pão-queijo-queijo.
Não
sei é viver pão-pão-queijo-queijo.
Ou
escolhi não viver pão-pão-queijo-queijo.
Morrer,
morrerei pão-pão-queijo-queijo.
II
Primeiro,
três homens maduros encontram-se.
Um
quarto, desertor da trincheira, acaba morto a tiro.
Um
quinto, primeiro a nascer dos cinco, é de Coimbra.
O
quarto não deixou obra conhecida – ou reconhecível.
Aqueles
três, sim – extensa & superior.
A
do quinto, afinal primo, é perene.
Pensa-se
que o desertor era natural de Paris.
O
trio é inglês todo ele, dúvida nenhuma.
É
toda, a manhã que dedico ao quinteto.
Trata-se
portanto de matina plena, forte, não-vã.
A
obra do de Coimbra é toda luz.
O
de Coimbra, ele foi todo sombra.
Mesmo
assim, logrou viajar não só por dentro.
1915
é o seu último ano em Portugal.
Terminalmente
doente, poupou todos ao nada.
Os
três de Inglaterra não eram ainda nados.
O
parisiense, sim – e bem adulto já.
O
conimbricense é visita recorrente desta casa.
Os
três albiónicos também me frequentam.
O
quarto, todavia, também daqui desertou.
Quando
vier a tarde, de novo lhe será tarde.
O
quinto foi exacto relógio de si mesmo.
De
si mesmo só – e de exactamente ninguém mais.
Os
da majestática ilha vivem bem com os outros.
O
gaulês foi furibundo, ardeu em vertigem velocíssima.
Vai-se
dissipando porém a manhã dos cinco.
Sei-me
só muito em breve, tudo o indicia.
Marulham
ampulhetamente as clepsidras.
Arrulham
pombamente as águas, as pedras.
Resta-me
quanto me cabe.
Incumbe-me
quanto (me) (s)obra.
Já
cada um por & para seu lado, aqueles três.
Olvidado
já o prófugo francês.
O
de Coimbra continua em sorti’flori’légio.
Orquídeas
secas ainda o incensam.
III
A Camilo Pessanha,
nado em Coimbra
Orquídeas
secas ainda o incensam.
Pretéritos
perfumes o habitam
Indo à
praia, mais as aves gritam
Em
casa, são os móveis que o pensam.
Orquídeas,
perfumes & novéis aves
Palpitam
ao derredor sua pessoa
Em
anilados dias purpurinos.
Perfídias,
azedumes & agravos
Concitam
acre dor, não sendo boa
A
púrpura dos dias pequeninos.
A cima
o chão de mortos adubado
A
baixo a futura árvore alta
Derredor
o pão de mais adiado
Adentro
nem a morte o sobressalta.
Águia-de-Prata
& caneta de ouro
A
vida, é da morte o tesouro
Tesouro
era Ana de Castro Osório
Não
pôde ser amor, o amor é duro.
O amor
não tem futuro, só passado
Roxura
de Oriente violáceo
Azula-se
o vivente opiáceo
O
soneto ele o traz rememorado.
(Maria
do Espírito Santo, ó Mãe!
Teu
macérrimo filho passa a vau
O
Mondego ora chamado Macau-
-Clepsydra,
ó minha Mãe ou Meu-Ninguém!)
Gaze
sobre ferida purulenta
Lenta
devastação Camilo’vida
Vou a
ver o Pessoa no Montanha
J’ão
Osório de Castro não m’olvida.
E 1915
é seu ano
Final
em Portugal, que outro não mais
Que
outro não mais, sabei, ai, que outro não mais,
O ’26
de borla por engano
Orquídeas
ainda o etcetram.
(IV)
(Tantos
verões hão-de somar-se inverno
Sumir-se
sem contas a ninguém prestar
Alçapões
que a lembrança requer ter no
Alcácer
afinal Quibir d’Acabar.
Tanta
merda d’açúcar ser amarga
E
andar ao cartão-rainha-santa
Ter
edema tratável à ilharga
E
infante ser a forma, não infanta.)
V
Messes
trigais, doudas d’ouro,
bramam
fulgor olhar adentro.
Estepes
siderais, lácteo tesouro,
clamam
d’ardor zero-epicentro.
Já
não ’stremeço, nem me sinto
capaz
de mores contrariedades.
Demolho
a alma em o absinto
&
então sim, venham vis arbitrariedades.
VI
Peguei-me
em corpo e levei-me-o ao domingo
de
bairros apagados em plena luz sem culpa nem inocência,
(...)
ando
à sombra de sossegado prédio d’arrabalde,
dó
de mim o não tenha quem for ou não vier,
quase-dó
tenho-quase eu de quase-muita quase-gente,
enfim,
sigamos para outro bingo desse bem diverso,
o
meu baile é sozinho ao som da orquestra de só um,
sinto
a pele mordida da varejeira da consciência,
o
amargo-de-boca sobe do hálito, ou hábito, ou óbito, do coração,
o
dia há-de vir de a última página abrir o livro
da
minha morte irrelevante, neutro mantra,
icei
do chão mais lixo do que a ele joguei,
essa
a minha alvíssara mais vera & mais honrosa,
rosa
me dei eu ao porvir em cada Filha,
(...)
sou
educado, dou as boas-horas, não Vos esmolo,
um
homem não é outro é um homem só um homem
só
é
assim que está bem, assim legisla a natura
queríeis
quê?, batatinhas?, aqui já demos,
sulquei
o passado & já sei lê-lo,
o
meu ontem tem bem mais de meio-século,
vem-se-me
pergaminhando a pele do rosto,
seca
é a fonte de leite da minha virilidade,
à
sexta-feira como carne se for sexta & eu tiver carne que comer,
aos
domingos entristeço como toda a gente,
como
toda a gente desde que o catolicismo foi inventado,
má-hora
essa de tão ingente retrocesso darwinesco.
-simiesco,
por assim dizer, ando por aí ao verso,
ao
reverso também da indiferente indiferenciada grei,
purgo-me
sem pressa na demora portuguesa da minha vida,
acho
uma graça infinita às/nas asnas mais pueris nadices,
o
sorriso de lustral felicidade deste parolo aqui
a
quem dez euros acabam de sair na raspadinha,
a
goela moralóide d’além a gaja madurota
falando
da morte da lêidi-dái coitadinha & santa,
daquele
meu coleg’acolá inchado de alc’ólica tumescência,
biqueiras
medievais as dos borzeguins daqueloutra sessentona,
alegra-me
profundamente a superficialidade dos morituros,
saúdo
o césar-nenhum desta coliseica arena vã,
–
tu-és-burro-ou-comes-merda-às-colheres?
–
exclama
a varejeira (va)ginopausada da tal madurota,
o meu ano-via-crucial
é 1986 por razão minha particularíssima,
espero
tão-só que debande depressa a matilha
indigente
que me sobressalta a esplanada,
vigoro
neste poema em absoluta autocracia,
pelo
que dispenso bem vizinhança, freguesia & rèlesia,
pedem-me
lum’isqueiro, que sem preço concedo,
não me
tenho deitado tarde & tenho despertado cedo,
gosto
de ir abrindo subterfugitivas frestas autobiocuscas,
por
assim dizer gosto, depois a amargura ressuscita,
enfermo
de um luto-lázaro, o problema é meu,
dou a
cara sempre mas nunca a outra face,
nesse
& noutros aspectos quero que Cristo bem se dane,
o
Verão-1999 não torna nem eu a ele, (ó alegria!),
a
& à Primavera-1986 é q’infelizmente sim & p’ra sempre,
não
confundo as dinastias com as tias da Dina,
em
Março de 1988 cursei milicianamente Mafra,
dessa
mocidade já então triste desassentei há muito praça,
tenho
escorado os rombos da vida aos pombos dando pão,
ainda
ontem fiz disso sábado no Jardim da Manga,
manuscrevo
há anos efemeridamente a minha passagem,
agenda
de ano-de-todos-os-anos conservo & averbo,
1-de-Janeiro-de-1449-nasce-Lourenço-de-Médicis-o-Magnífico,
31-de-Dezembro-de-1976-vivo-com-os-meus-Pais-na-minh’-última-Casa-única,
às
16h59m de Domingo-19-de-Janeiro-de-2020, sim,
acontece
a passagem de um corpo bonito nesta cercania,
poderosa
ganga de feminil couro, deus-a-guarde,
olho-azul-cabelo-trigo,
mama-dura, pé em neve soterrado,
morango-bífida
dela a labiação, fria & pétrea de coração,
desses
corações como as musas-gajas do Camões,
recordo
o meu tio não-carnal Benedito Duarte,
fui ao
funeral dele, de minha Casa-Original ninguém mais,
isso
ninguém mo tira que ninguém me lo deu,
a meu
primo-direito Carlos Benedito, dele filho, fui idem,
nem
santo nem pecador vou botando figura
quando
ela é precisa a quem padece de seu-meu-1986,
de
resto estamos bem, òbrigadinhos ó pàzinhos, (...)
tirante
isso, olhai, tudo bem, segui Vós vossa vã voz,
que eu
& à minha sigo, peguei-me em domingo
a sós,
aliás
a lilás sou capaz de te pintar a manta a três,
já vês
pois que diz a sós quem for juiz,
meu
velho Ruy B., dez anos que eu mais novo,
em
borboleta asada o livro teu aberto tenho a mim (de)fronte,
encortiça-se-me
o coração de te ver madrid, perdão,
madrigando
os anos pós-Roma-ante-morte,
outra
efeméride da minh’agenda, olha(i):
“Praia da Consolação, 18/IX/1973”,
onde
ominosamente escreves
“no quarto onde eu morrer sozinho”,
assim
foi & assim há-de ser, belo senhor Belo,
8-de-Agosto-de-1978,
de edema pulmonar etc.,
(...)
o-cu-&-cinco-tostões
eu dei já à poesia,
arte
de capados-sociais, músicos-p’ra-surdos,
(...)
já
José Pinho foi meu cavalheiro-treinador
no
saudoso Clube de Futebol União de Coimbra,
vi-o
agora mesmo, saudei-o como grato ex-menino,
esta
cortesia é meu Pai por mim falando ainda,
nada
me impede a viagem antecemiterial,
sou
afinal um fruto cujo usufruto é Portugal,
uma
hora minha é fisiologicamente sete para o meu Gato,
cativo-inocente-de-um-primeiro-B-andar,
não
disponho de fortuna que o fizesse andar
em
jardim a lagartixas & borboletas,
deus-o-deus-dos-outros-me-perdoe
mas é
que na fenda diamantina
de seu
olhar vejo ainda cada uma minha Menina,
(...)
11-de-Maio-de-1994,
sou livre de minh’amnésia,
d’outra-banda
é Santa-Clara-a-Velha de 6-séculos,
a
concubina-d’-El-Rei vai ser passada a faca,
Inês-era-uma-vez,
olhai, razões-de-Estado,
(...)
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