Nota preambular: concluída a Caderneta Preta, concebida no último trimestre de 2019, inicio agora a partilha de VinteVinte. O título o indica: é deste & para o corrente ano de dois dois com dois zeros. Assim seja.
© John
Lee Hooker by Anton Corbijn
VinteVinte
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1.
TRÍPTICO PESSOAL
& TRANSMISSÍVEL
I
SÁBADO-MANHÃ DE
NATÁRIO: algumas décimas
Coimbra, sexta-feira,
3 de Janeiro de 2020
Um
sábado, não cedo, sai de casa – nem triste nem contente mas sereno. Por não ter
de ir a horas, não se atrasa: vai nisto remoendo ao tempo ameno. A cigarros
& jornal vai agora, está um certo frio na tabacaria. O isqueiro não se
acende, já cá fora – volta lá dentro, de novo diz bom-dia. Jornal, tabaco,
isqueiro & rebuçados: tudo, quase dez euros mal contados.
Cheira
a pão quente & a bolos novos, o dentro da pequena pastelaria. Atrai-o um
com muitos fios-d’ovos, que ingere a coicinhos de malvasia. Sente-se ali por
modos, sim, muito bem. Nisto, dá de chover forte no mundo. O corpo pede-lhe um
café também. Anúi, raspa já açúcar do fundo. Cálice, doce + abatanado: de
cinco, um & trinta de trocado.
Passa-se
isto perto da de Santa Cruz. À curva da Caixa já Natário vai. Fez morrinha a
chuvada, fraca luz. Na 8 de Maio, a turba vai-não-vai. Jardim da Manga,
resplendor de pombas. Acima, o Pedro V fede a peixe. Subsolo, a Cidade é
catacumbas – à flor porém ninguém dela se queixe. Sá da Bandeira acima, é bonito – diz-se Natário subindo aflito.
Natário
acorda o livro na catorze: “O sol como um
deus nas moedas novas” (Gil Nozes de Carvalho, Alba, que trouxe – sim – Março/82 de outras trovas.) A Sereia ’inda
sobe até Celas – dali aos Olivais, é um nemésio.
Há nitentes florações amarelas: mas viver é instante pouco amásio. Se ao Tovim
não sobe, desce à Solum: Natário tem bem p’ra si que mais vale um.
II
MESMO DIA MAS À TARDE (DE) NOBRE: mais décimas
Coimbra, sábado
& domingo, 4 & 5 de Janeiro de 2020
16
& 15 não fazem 31. Mais que meã, a tarde de Janeiro. Nobre (do capítulo, o
cavalheiro) emborca no Norton ’ma sandes-de-atum. Atrasa-se Lita, a de seu
namoro. Este Nobre é nobre, não tem pressa. A Lita é a Lita, tem decoro:
telenovelas, troca-as pelo Eça. Dia que isto se conte, há-de ser graça a tumba
do viver passa-não-passa.
Derredor,
voga a vaga populaça: é formigueiro simples, sem pretensão. Dum táxi velho
trepida a carcaça: é o do Jaime-Zé, ébrio, bom-coração. Tirante o namoro, este
Nobre – é, como o do livro Só, só na
vida. Bom & caro casaco o recobre. Cara & boa é sua bebida. As cinco
deram já, Lita não vem: se calhar, ficou à fala com a mãe.
A meio
da esplanada, escafandros: são quatro (hão-de ser mais em dand’ a bola).
Treinadores-de-bancada, os malandros. Enxugam finos à guisa mariola. A viúva de
Alarcão toma o chàzinho. Barnabé, o criado, traz biscoitos. O chá da
temperança, iss’é certinho – mas o vinho é que nos volve afoitos. (Isto negava
o finado Alarcão – e o próprio Exército da Salvação.)
Entra
no Samambaia o Natário. Ergue-se para pagar e ir embora – o Nobre a quem
falharam horário. S’inda vier, a Lita perde a hora. “Já que adorar-me dizes que não podes” – incipit de soneto do Cesário. Tanto
t’atrasas que ’inda te fodes – diria, se o soubesse, o Natário. Tal
palavrão o não diz, com certeza, o Nobre, q’além-nome, é de nobreza.
III
ESSA MESMA NOITE, MAS A DE AURÉLIO: ainda
décimas
Coimbra, domingo, 5
de Janeiro de 2020
Em
pobre pardieiro, rés-miséria – reside ao rés do mundo um Aurélio. A seu tempo,
ele foi promessa séria – mas a vida desdisse o vão prélio. Fica na Rua Afonso
Duarte – a ruína que Aurélio habita. Débil, flébil côto de vela imita – quê?: a
pepita de um verso de mor arte. E que julgue vida assim quem souber mais: que a
morte a julgadores faz de cais.
Que
trouxe este Aurélio à câm’ra-’scura? Erros
dele, má fortuna e aguardente – é a comum resposta, infelizmente: e dele é
a verdade crua & dura. Janeiro é chegado, ’ind’ele vive. (Do VinteVinte não
passa – apostais? Q’mortos-vivos, quais ele, ele há de mais.) Que faz ele neste
livro quase livre? Faz o que os outros fazem: faz rebanho –
d’aguardente-medronho ou-abrunho.
E o
pai d’Aurélio faz de nunca-jamais; e d’Aurélio a mãe também é extinta. Parece
ser tal a estrela dos pais: estranho é não haver quem mais o sinta. Há três
noites q’Aurélio febricita. Há quatro, estava ele ’li na Pedrulha. Havia
bailarico, houve bulha – depois, barraca & vela-pepita. E não come côdea
ele desde então – Camões também sofreu: e até mais não.
(...)
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