20/03/2020

VinteVinte - 1.

Nota preambular: concluída a Caderneta Preta, concebida no último trimestre de 2019, inicio agora a partilha de VinteVinte. O título o indica: é deste & para o corrente ano de dois dois com dois zeros. Assim seja.



 © John Lee Hooker by Anton Corbijn



VinteVinte

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1.

TRÍPTICO PESSOAL & TRANSMISSÍVEL



I

SÁBADO-MANHÃ DE NATÁRIO: algumas décimas

Coimbra, sexta-feira, 3 de Janeiro de 2020



Um sábado, não cedo, sai de casa – nem triste nem contente mas sereno. Por não ter de ir a horas, não se atrasa: vai nisto remoendo ao tempo ameno. A cigarros & jornal vai agora, está um certo frio na tabacaria. O isqueiro não se acende, já cá fora – volta lá dentro, de novo diz bom-dia. Jornal, tabaco, isqueiro & rebuçados: tudo, quase dez euros mal contados.

Cheira a pão quente & a bolos novos, o dentro da pequena pastelaria. Atrai-o um com muitos fios-d’ovos, que ingere a coicinhos de malvasia. Sente-se ali por modos, sim, muito bem. Nisto, dá de chover forte no mundo. O corpo pede-lhe um café também. Anúi, raspa já açúcar do fundo. Cálice, doce + abatanado: de cinco, um & trinta de trocado.

Passa-se isto perto da de Santa Cruz. À curva da Caixa já Natário vai. Fez morrinha a chuvada, fraca luz. Na 8 de Maio, a turba vai-não-vai. Jardim da Manga, resplendor de pombas. Acima, o Pedro V fede a peixe. Subsolo, a Cidade é catacumbas – à flor porém ninguém dela se queixe. Sá da Bandeira acima, é bonito – diz-se Natário subindo aflito.

Natário acorda o livro na catorze: “O sol como um deus nas moedas novas” (Gil Nozes de Carvalho, Alba, que trouxe – sim – Março/82 de outras trovas.) A Sereia ’inda sobe até Celas – dali aos Olivais, é um nemésio. Há nitentes florações amarelas: mas viver é instante pouco amásio. Se ao Tovim não sobe, desce à Solum: Natário tem bem p’ra si que mais vale um.



II

 MESMO DIA MAS À TARDE (DE) NOBRE: mais décimas

Coimbra, sábado & domingo, 4 & 5 de Janeiro de 2020



16 & 15 não fazem 31. Mais que meã, a tarde de Janeiro. Nobre (do capítulo, o cavalheiro) emborca no Norton ’ma sandes-de-atum. Atrasa-se Lita, a de seu namoro. Este Nobre é nobre, não tem pressa. A Lita é a Lita, tem decoro: telenovelas, troca-as pelo Eça. Dia que isto se conte, há-de ser graça a tumba do viver passa-não-passa.

Derredor, voga a vaga populaça: é formigueiro simples, sem pretensão. Dum táxi velho trepida a carcaça: é o do Jaime-Zé, ébrio, bom-coração. Tirante o namoro, este Nobre – é, como o do livro , só na vida. Bom & caro casaco o recobre. Cara & boa é sua bebida. As cinco deram já, Lita não vem: se calhar, ficou à fala com a mãe.

A meio da esplanada, escafandros: são quatro (hão-de ser mais em dand’ a bola). Treinadores-de-bancada, os malandros. Enxugam finos à guisa mariola. A viúva de Alarcão toma o chàzinho. Barnabé, o criado, traz biscoitos. O chá da temperança, iss’é certinho – mas o vinho é que nos volve afoitos. (Isto negava o finado Alarcão – e o próprio Exército da Salvação.)

Entra no Samambaia o Natário. Ergue-se para pagar e ir embora – o Nobre a quem falharam horário. S’inda vier, a Lita perde a hora. “Já que adorar-me dizes que não podes”incipit de soneto do Cesário. Tanto t’atrasas que ’inda te fodes – diria, se o soubesse, o Natário. Tal palavrão o não diz, com certeza, o Nobre, q’além-nome, é de nobreza.



III

 ESSA MESMA NOITE, MAS A DE AURÉLIO: ainda décimas

Coimbra, domingo, 5 de Janeiro de 2020



Em pobre pardieiro, rés-miséria – reside ao rés do mundo um Aurélio. A seu tempo, ele foi promessa séria – mas a vida desdisse o vão prélio. Fica na Rua Afonso Duarte – a ruína que Aurélio habita. Débil, flébil côto de vela imita – quê?: a pepita de um verso de mor arte. E que julgue vida assim quem souber mais: que a morte a julgadores faz de cais.

Que trouxe este Aurélio à câm’ra-’scura? Erros dele, má fortuna e aguardente – é a comum resposta, infelizmente: e dele é a verdade crua & dura. Janeiro é chegado, ’ind’ele vive. (Do VinteVinte não passa – apostais? Q’mortos-vivos, quais ele, ele há de mais.) Que faz ele neste livro quase livre? Faz o que os outros fazem: faz rebanho – d’aguardente-medronho ou-abrunho.

E o pai d’Aurélio faz de nunca-jamais; e d’Aurélio a mãe também é extinta. Parece ser tal a estrela dos pais: estranho é não haver quem mais o sinta. Há três noites q’Aurélio febricita. Há quatro, estava ele ’li na Pedrulha. Havia bailarico, houve bulha – depois, barraca & vela-pepita. E não come côdea ele desde então – Camões também sofreu: e até mais não.

(...)

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Canzoada Assaltante