39. Viagem Volitiva
Sábado, 28 de Dezembro de 2019
Sábado de pura claridade, até dá
alma a um pobre-sem-Cristo, Deus me perdoe. Sem um fiapo de nuvem, sem uma faca
de frio sequer. Mundo bonito, mormente se não de mais pensado. E eu tenho
pensado para além do que a estabilidade sanitária recomenda. Aos mais sensatos,
digo – e eu não sou um deles, lamento. (Finjo que lamento, valha a verdade.) A
única resolução-de-ano-novo que se me configura é acabar o Leite dos Santos e escrever uma coimbrice nova. Esta caderneta,
dou-a por conclusa a 31 do corrente. Sei muito bem que nem todos os meus cromos
se lhe colarão. Taí do Boavista, Tibi do Porto, Melo de vários emblemas,
Garrincha do Bragança, Carraça do Alverca etc. Entrarão em outros escritos os
que neste forem faltosos. Assim eu viva que os escreviva.
*
É de olhos tristes este cão que
vejo
Amarrado pelo pescoço a um poste
Enquanto o amo emborca dentro
bagaços
Olhos tristes para lá do humano
Olhar a que nenhum verso posso opor
Gostaria de levá-lo àquele bosquete
Que circunda a minha mansão de
campo
O meu terrível, inventado palacete.
Formoso cão que transcendes pessoa
Pode ser que te liberem daqui a
pouco
Pode que nem seja maligno teu amo
Esse que dentro vozeia futebolarias
E desconhece que um dia-cão são humanos
sete dias
Muito mais há-de desconhecer, o
simples bruto
Amarrador de animais a duros postes
Bípede calhau, orgânico
desperdício.
E eu que me aprestava a fruir o dia
A claridade coimbrã sem par no
mundo
Fazendo por deixar dormir os meus
mortos
Esses canteiros onde já só florescem
Os nomes aprisionados por duas
datas
A inicial & a letal, como é
fatal
Ó cão triste de aguados olhos
lindíssimos
Pessoa a mais é como olhas por
dentro.
Ensombra-se por quase nada a tarde
branca
O dia virá que a má-nova soará
Enquanto não todavia faço por
merecer o dia
Amo neste cão a minha mesma
amarração
Deixo às Filhas estes papéis
inconsúteis
Recados de horas bonitas &
inúteis
Quem me dera ora ir de comboio
Repescar do mar os verões-com-Mãe.
Não há-de ser hoje, demais o sei
& sabia
Embarquei sem sequer tossir à
viagem volitiva
Esta é a mesma vida que quer eu a
viva
E assim seja que já ontem
entardecia
Porto em meu regaço as escolhas
todas
E estimo bem que as ignores &
que te fodas
(Não por mal o digo, que falo a sós
comigo)
Versos são-me o derradeiro início,
recomecemos.
Do cão alheio fiz próprio o olhar
triste
Conto, vejo ninguém, sem mal, em
frente
O que há é o que é, nunca diferente
Diferente é viver mais do que
s’existe
Esperam-me em casa os amados mortos
A tiracolo pela rua os arregaço
Dizem que causa o mal dos
olhos-tortos
O fundir a lembrança com bagaço.
Este mês & o outro & tal
& coisa
Amanda o forcejar na coisa escrita
Um está aflito? De pronto grita
É outro em paciência? É pois a
Sabedoria dele, tudo em o mesmo
acaba
Cão triste, ó triste cão, ó meu
espelho
Primo, a vida te beija, no pós
t’enraba
Faço que nada é, coço um joelho.
*
(Por falar em praia com Mãe à
mistura:)
Sendo menino, de corpo singelo
pois,
conheci a luz – q’ religião não
era.
Viver era o primo acto da primavera
– e o carro onde era de carro, e os
bois nos bois.
A morte não mostrara ’inda traços
do que já viria desamanhecer.
Eu bebia leite sem café & sem bagaços
e o que acontecia era só de
acontecer.
Tudo isso remonta a arquivo.
Quem amo, morre – mas eu estou
vivo.
’inda não vim no Diário de Coimbra
do dia
abrilhantar a coluna chamada Necrologia.
*
Oh a pessoa serena / Oh a pessoa
serena!
Oh o retrato na sala / A avó que se
cala!
Oh o cheirito a gaveta /
Poem’alfazema!
Oh caçoila de chanfana / Oh livros
áureos!
Ai o meu Cão Amarelo dono do olhar
Repetido que hoje vi no
Acorrentado!
Ai o vinho que se me faz
pergaminho!
Ai Coiso Tão Vão! O(s) que fomos, ond’estamos?
(...)
*
Sou de uma idade a que o meu corpo
corresponde enquanto animal-d’hoje,
tenho municipalizado passe, posso
autocarros,
viajo pois a meu bordo, tusso
baixinho.
Pertenço a uma lembrança
recorrente,
não afiambro já corpos virginais.
(A tentação da rima? É cá da gente
usada em Cesários & outros
mais.)
*
(Onde
se meteu, que a não vejo.
a
alegria simples, sem preço à vista?
Onde
é que não careço de desejo?
Onde
é o não-perder sem mais conquista?
Faço
vint’anos quando, que os desfiz?
Que
esquina duplica o Pai, que a não dobra?
Que
vale poucos anos ser feliz?
Por
que é que a maçã se faz de cobra?
’anço
as escadinhas do Brinca,
’panho
lixo do chão, civilizado.
’tiro
pedras ao céu, a pedra trinca
a
ausência de Deus, por mor pecado.
Autocarro
p’aonde, que me não espera
o
Velho, sempre pronto, feliz de mim?
Eu
tenho passe, a hora é q’desespera,
a
Mãe é pronta, feliz de mim.
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