18/03/2020

CADERNETA PRETA - 39 (não todo)






39. Viagem Volitiva


Sábado, 28 de Dezembro de 2019


Sábado de pura claridade, até dá alma a um pobre-sem-Cristo, Deus me perdoe. Sem um fiapo de nuvem, sem uma faca de frio sequer. Mundo bonito, mormente se não de mais pensado. E eu tenho pensado para além do que a estabilidade sanitária recomenda. Aos mais sensatos, digo – e eu não sou um deles, lamento. (Finjo que lamento, valha a verdade.) A única resolução-de-ano-novo que se me configura é acabar o Leite dos Santos e escrever uma coimbrice nova. Esta caderneta, dou-a por conclusa a 31 do corrente. Sei muito bem que nem todos os meus cromos se lhe colarão. Taí do Boavista, Tibi do Porto, Melo de vários emblemas, Garrincha do Bragança, Carraça do Alverca etc. Entrarão em outros escritos os que neste forem faltosos. Assim eu viva que os escreviva.

*

É de olhos tristes este cão que vejo
Amarrado pelo pescoço a um poste
Enquanto o amo emborca dentro bagaços
Olhos tristes para lá do humano
Olhar a que nenhum verso posso opor
Gostaria de levá-lo àquele bosquete
Que circunda a minha mansão de campo
O meu terrível, inventado palacete.

Formoso cão que transcendes pessoa
Pode ser que te liberem daqui a pouco
Pode que nem seja maligno teu amo
Esse que dentro vozeia futebolarias
E desconhece que um dia-cão são humanos sete dias
Muito mais há-de desconhecer, o simples bruto
Amarrador de animais a duros postes
Bípede calhau, orgânico desperdício.

E eu que me aprestava a fruir o dia
A claridade coimbrã sem par no mundo
Fazendo por deixar dormir os meus mortos
Esses canteiros onde já só florescem
Os nomes aprisionados por duas datas
A inicial & a letal, como é fatal
Ó cão triste de aguados olhos lindíssimos
Pessoa a mais é como olhas por dentro.

Ensombra-se por quase nada a tarde branca
O dia virá que a má-nova soará
Enquanto não todavia faço por merecer o dia
Amo neste cão a minha mesma amarração
Deixo às Filhas estes papéis inconsúteis
Recados de horas bonitas & inúteis
Quem me dera ora ir de comboio
Repescar do mar os verões-com-Mãe.

Não há-de ser hoje, demais o sei & sabia
Embarquei sem sequer tossir à viagem volitiva
Esta é a mesma vida que quer eu a viva
E assim seja que já ontem entardecia
Porto em meu regaço as escolhas todas
E estimo bem que as ignores & que te fodas
(Não por mal o digo, que falo a sós comigo)
Versos são-me o derradeiro início, recomecemos.

Do cão alheio fiz próprio o olhar triste
Conto, vejo ninguém, sem mal, em frente
O que há é o que é, nunca diferente
Diferente é viver mais do que s’existe
Esperam-me em casa os amados mortos
A tiracolo pela rua os arregaço
Dizem que causa o mal dos olhos-tortos
O fundir a lembrança com bagaço.

Este mês & o outro & tal & coisa
Amanda o forcejar na coisa escrita
Um está aflito? De pronto grita
É outro em paciência? É pois a
Sabedoria dele, tudo em o mesmo acaba
Cão triste, ó triste cão, ó meu espelho
Primo, a vida te beija, no pós t’enraba
Faço que nada é, coço um joelho.

*

(Por falar em praia com Mãe à mistura:)

Sendo menino, de corpo singelo pois,
conheci a luz – q’ religião não era.
Viver era o primo acto da primavera
– e o carro onde era de carro, e os bois nos bois.

A morte não mostrara ’inda traços
do que já viria desamanhecer.
Eu bebia leite sem café & sem bagaços
e o que acontecia era só de acontecer.

Tudo isso remonta a arquivo.
Quem amo, morre – mas eu estou vivo.
’inda não vim no Diário de Coimbra do dia
abrilhantar a coluna chamada Necrologia.

*

Oh a pessoa serena / Oh a pessoa serena!
Oh o retrato na sala / A avó que se cala!
Oh o cheirito a gaveta / Poem’alfazema!
Oh caçoila de chanfana / Oh livros áureos!

Ai o meu Cão Amarelo dono do olhar
Repetido que hoje vi no Acorrentado!
Ai o vinho que se me faz pergaminho!
Ai Coiso Tão Vão! O(s) que fomos, ond’estamos?

(...)

*

Sou de uma idade a que o meu corpo
corresponde enquanto animal-d’hoje,
tenho municipalizado passe, posso autocarros,
viajo pois a meu bordo, tusso baixinho.

Pertenço a uma lembrança recorrente,
não afiambro já corpos virginais.
(A tentação da rima? É cá da gente
usada em Cesários & outros mais.)

*

(Onde se meteu, que a não vejo.
a alegria simples, sem preço à vista?
Onde é que não careço de desejo?
Onde é o não-perder sem mais conquista?

Faço vint’anos quando, que os desfiz?
Que esquina duplica o Pai, que a não dobra?
Que vale poucos anos ser feliz?
Por que é que a maçã se faz de cobra?

’anço as escadinhas do Brinca,
’panho lixo do chão, civilizado.
’tiro pedras ao céu, a pedra trinca
a ausência de Deus, por mor pecado.

Autocarro p’aonde, que me não espera
o Velho, sempre pronto, feliz de mim?
Eu tenho passe, a hora é q’desespera,
a Mãe é pronta, feliz de mim.

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Canzoada Assaltante