38. Derredores de Jardinete
Sexta-feira, 27 de Dezembro de 2019
Agora que o conto (sei-o tão bem,
que nada me custa reconhecê-lo), mesclam-se-me as coisas, entrançam-se-me os
planos, os (con)fusos horários – todavia o conto:
Foi ao cabo de uma noite má em
Lisboa.
Apanhei em Santa Apolónia o
primeiro regional da madrugada para as Caldas.
Quem já madrugou naquele terminal,
sabe de cor a que me refiro.
O comboio veio, eu fui.
Ao primeiro livor, enterneceu-me a
visão de, num mínimo apeadeiro (era regional a sério, aquela composição), um
jardinete amanhado pelo guarda-linha, que de bandeirola me saudou.
Todo o tempo do mundo para ser
autor de rosas, aquele anónimo funcionário da ferrovia.
Invejei-o, naturalmente.
O jardinete – dois metros quadrados
talvez, ou não muito(s) mais – bebia o rocio da primeira luz.
Felizmente, houve um qualquer
contratempo, esperámos ali mais de quarto-de-hora.
Pude saciar-me, bucolizado por tal
monotonia pouco propensa a horas más à maneira das que eu vinha de viver na
capital.
O comboio, enfim, lá estrupidou,
espreguiçou de ferros, deitou-se às terras d’água de uma Leonor dona, rainha
& remo(r)ta – e de um Bordalo vivíssimo.
Sobre o tal malfadado serão
lisbonense, nada tenho que dizer.
Nem que, nem quem.
Faço parágrafo para dizer que,
ainda assim, não foi aquela a minha última noite má. Das Caldas a Coimbra,
demorei anos – por intermédio, perdi não menos que uma dúzia de anos. É muito
ano. Torço ambas os orelhuns sem que pinga de sangue brote. É certo que me acho
hoje resolvido quanto a tal desperdício – e pronto para oxalá que meia-dúzia ao
menos mais. Mas, oxalá, não tao vera & beramente má.
Aproveito a lembrança do jardinete.
Picantes, escaldantes, excitantes
revelações destapa-segredos da minha vida? Nem as há, nem as hei. Também é
verdade que só se me solta a Língua quando para tal me dá na veneta – e pouco
dá. Inventar, invento muito; mentir, minto alguma coisita – sobretudo a mim
mesmo, condição sine-qua-non da
pró-sobrevivência (até física, valha-me a
senhora-dos-rosários-&-dos-jardinetes).
Resolvido o papel cuja toma me
faltava de ontem. Então, à saída dessa repartição, dei com um homem sentado em
uma escalória de prédio ali ao Arnado. Era a morte em pessoa. Rosto ossudo como
feito de arame ou de peito de frango, os olhos já sem o éter dos que já se vêem
amanhã lidando coisas novas, as mãos pingadas dos joelhos – como cera
irreversível. Impressionou-me tal estatueta do desamparo. Não sofria miséria
indumentária, não parecia fome o mal que o acocorara ali. Era tão-só a
morte-em-breve (tinham chamado o 112),
a que ainda dá para mungir um ténue água-vai. Fiquei cativo daquele apeado.
Estive para conversar-lhe alguma coisa, alguma oferta de algum préstimo – mas o
não fiz, usei-o para literatura, esta coisa (também) sem remédio.
Em contraponto à notícia pré-necro
anterior, esta de dois vivaços ao balcão seguinte:
Operários em folga, mãos fortes
& muito usadas, roupa do ofício escrita pelo trabalho, sapatos apontados a
aço de pontapear durezas & rombas agudezas de estaleiro. Bebem, um conta ao
outro e ao taberneiro (e a mim, por indirecta via) sucessos da aldeia onde
acampou família & ferramentas. Ouvimo-lo os três com a mesma devota entrega
de Eça aos pés de Antero no Largo da Feira, lá nos anos 60/XIX. O homem é
interessante, versa bem as peripécias tortuosas, os discursos-directos com que
põe o drama a dizer de si, recriando & recreando com inegável talento
oratório. Tive, mas a gosto fácil, de suspender o meu Fialho. Devolvo O País das Uvas ao bornal, uso o
estilete para estoutra história. O entorno exterior continua solar. Frio
nenhum. O operário-contador passa a ouvinte, fala agora o seu companheiro. Mais
baixo de ombros & de fala, estoutro narra certo episódio de
carpintaria-de-cofragem para bandas de Vila Verde (não a de Braga mas a da
Figueira da Foz). (...) Agora
calaram-se ambos, pagaram as rodas, ei-los de ala-à-riba lá deles. O bem os
acompanhe sem do mal a sombra suspeita.
Entre o Beco do Teodoro & o
Café Abadia, vai à minha frente um destes pares mãe-filho de que é pródiga a
minha Coimbra. A senhora, baixinha, seca de carnes & de maneiras aviuvadas;
o rapaz, quarentão neur’atoleimado, eterno menino-de-sua-mamã. Ela naturalmente
impera; ele naturalmente subdita-se-lhe. Eu daria tudo para ser ele, desde que
ela fosse Hermínia Leite dos Santos.
Já nos vejo indo merendar, pode ser
aqui já no Abadia, leite com bola-de-berlim, como o Zé Amaro fez à vinda das
Piscinas Municipais aí por volta de 1972, 73. Sem que lho peça, entramos, antes
logo do Café do senhor Fernando, na Pérola, livraria-papelaria com os lápis de
que tanto gosto: Viarco n.º 2.
Hermínia vai receitando ao infante
o que fazer quando ela tiver já adormecido sem retorno:
– Usa este lápis e começa por imaginar um
moribundo ao pé dos Correios, depois dois operários a um balcão de vinho: mesmo
que para sempre te vejas (& escrevejas) sozinho.
Bem. Vejo-me (des)fazendo em
literatura o tempo que outros usam para indústria pragmática de suas vidas
mesmas. Seja. De minha (p)arte, tarde é de mais para desculpar-me de uma culpa
que não apadrinho nem permito que me enteie.
Passa no mundo a máquina amarela
lavadora de sarjetas. Um cantoneiro adianta-se-lhe, varrendo lixos atomizados
de humana ascendência (não o somos todos? somos). Estou rumorosamente calado –
mas não mudo – na Sexta-Feira derradeira do Ano-Velho.
Dois cavalheiros já
d’idad’entradotes, falam de petisqueiras próximas. Um arremeda rol de porcum:
orelha, unha, coirato, focinho, entremeada; o outro prefere ex-viventes do mar:
bacalhau, chicharro, amêijoa, lagosta, cherne. Vão adentrando tinto enquanto
pré-salivam. Já ambos devassaram há muito o umbral dos sessentas (que me
apresto, eu mesmo, a franquear também já, já faltou bem mais). Ambas as bocas
articulam fonética subsidiada por dentuças acrílicas. Escurecida, discreta
roupagem. Sapatos de borrachosa ortopedia. Um deles é senhor Normando – nome
porreiríssimo para a minha caderneta. Outro faz de senhor Adalberto, mesmo nome
de um célebre camarada laboral do meu Pai, que muitas maluqueiras narrava desse
doido Adalberto dos anos 40 & 50/XX. Gosto muito destas rumorosas falas,
que espiono & espiolho sem fímbria de escrúpulo. Gosto de como já comem o
petisco que prenunciam, gozosos por antecipação de iguarias & vitualhas,
última sexualidade de suas vidas ora já só palatais.
Ciganas sob o viaduto. Obesas, de
cabelo em totó por cimalha. Duas.
Mais além, tribo de leitores do Expresso acampada na esplanada da
Almedina-Estádio: função-pública & ócio duradouro.
Mais aquém. Esta caderneta, voraz
& delicoamarga não-raro.
Penso em Janeiro próximo, que pouco
tarda se me não der eu ao luxo de morrer de solipampa – ou o carago. Vou
escrever esta coisa, pois que já decidi dar última página a esta caderneta no
dia 31 de Dezembro de 2019. Lá chegando, terminarei também Leite dos Santos, diarístico monumento erguido a uma tal Hermínia
Leite dos Santos (1924-2011). Nisso penso ora um pouco, não muito, o suficiente
sim.
Todo o saco de padaria, dei-o a
pombas no Arnado & no Jardim da Manga, pelo que antes das quatro da tarde
hei razão para dar por ganho o dia muito antes da meia-noite.
“Que
noite serena
Que
lindo luar
Que
linda barquinha
Eu
vejo passar
Vem,
vem, ó meu anjo
Fujamos
daqui
Que
a noite está bela
Que
a noite está bela
E
o amor sorri
Fujamos
daqui”,
como cantava Hermínia ao tempo em
que ninguém nos houvera morrido. Mas.
Conimbricenses outros orlam os
pass(e)amentos da cidade. Nenhum me falta – pois nenhum me prometeu. Derivo em
espécie, humana nem sempre. Parece que apareço versos, estes:
Consigo trouxe ele quanto podia,
o dia deu ele a quem nascia,
deve ser triste ser de um pensamento,
um desejo a vida toda feita
momento.
Recordo esse homem atado ao meu
coração
como silveira bruxuleando espinhos
ao luar.
Só posso dele dar por finda a
arribação,
encadernetá-lo, ossos que se deixam
amar.
Na necropágina do Diário de Coimbra
também ele fez figura,
rosto-tipo-passe.
Fortuna nos deixou: voz q’inda
timbra,
mas sestércio não vale sequer um
asse.
Levo dele o nome todo, mais da Mãe
o Leite.
Às vezes o surpreendo a meu lado:
quando a mim alguém Senhor-Daniel deite,
penso ser p’ra ele, por mim
acompanhado.
Era diversa, a senhora-ela, dele
mulher:
fina cebola, ápico alho, boníssima
cabeça.
Ainda hoje a nossa Rua se lhe
refere,
ainda co’ela conta, pouco há quem
se lhe meça.
Eu agradeço tal falar, é luz na
orfandade.
Eu desemprego cadernetas pela
Cidade,
eu isto, aquele & aquilo, ao
grama mais barato.
Não me maltrata alguém, a ninguém
maltrato.
Sou de ínfima cortesia. Vou à
malvasia,
sim, mas sempr’a sós, sem
telefonia.
Sou de rápidas suspeitas, que aliás
confirmo
no calado que dou ao que mudo
afirmo.
Tem cancro, dizem, a Sónia
Pimentel.
Confirma-mo a Lívia do Tó
Salgueiro.
Na tropa: – Primeiro nome? – Daniel.
Na tropa: – E o derradeiro? – Abrunheiro.
Recordo, de 1967, um achado no
pátio. Maravilhoso foi ele – de quê, não no sei.
De 1968, um cão amarelo enorme:
prenúncio do meu pequeno de 1986: 68, 86.
De 1969, o perfume a aguarrás &
a azulejo na oficina (dita barraca) do
Pai.
De 1970, Julho, a Mãe-Praia, o Sol
rescendendo a bolacha-americana.
De 1971 a 1985, alguma felicidade
portátil.
De 1986 em diante, nada.
Até hoje.
TRÊS ROMANOS PARA FECHAR POR HOJE A
BARRACA
I
Jeremias, nosso vizinho, rumou
Aveiro.
O do NSU morreu na estrada.
A vida toda é boda de tinteiro.
Lápis por vezes de ponta afiada.
Piedade, mãe do Luís & do
Ricardo.
A Didi, que a bronquite adoentava.
O Pinto, o Carlos & a Eduarda.
E o Jaime que então também lá
morava.
Por cima, Marques, por baixo,
Ribeiro.
Defronte, era só terra, era só
monte.
Ao lado Nunes & Fernandes
Santos.
Eu quero escrever todos – mas são
tantos,
que o poema cansa, arfa &
tosse:
o versos ainda não fiz que me
remoce.
II
Aguadilha óptica, olhos fraquitos,
cognata-queixadilha simiesca.
Muita pobreza de tempos aflitos,
à caridade freira & fradesca.
Só bebe vinho-branco mijãozito,
quando à porfia junta moedas.
Dizem que é filho (e bastardito)
de um que tem ’mas bombas &
umas merdas.
Calçado a napa da mais barata,
’inda usa ceroulas de riscado.
A mãe à roda o deu, a puta-rato;
herança o não rola por contado.
Rilke, não usa, sequer Pessanha
(que em Coimbra nasceu mas não se
celebre).
Ouve louvinhação d’arrepanha
ao torga-vão & ao vácuo-alegre.
De moedas fraquito & futuro
nenhum,
gaba a baleia-pescaria mormente
dando atum.
Mas se calhar bom-homem: mal algum
senão o cheiro a não-sabão, vulgo
bodum.
III
Ouvi dizer (a mim sozinho) isto:
que frequentas moças do teatro,
cujas badanas deram já mui quisto
& que, auto-’strada, de faixas
quatro.
Chega o Gabriel da ’specialidade
arquivista do Dão (só
Meia-Encosta);
esperav’ò com ’m’alguma ansiedade
o João das Mercês Pinto Congosta.
Foge o Maurício velho, vai atrasado
a livro-lançamento de senhora
autora de sonetos menstruados
que dão nojo ao húmus & à
lavoura.
Ouvi dizer q’por certo morro disto,
já vão badalando relógios-falantes:
as estações não são as q’eram
dantes,
anda cá ’baixo, ó lindo velho
Cristo.
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