17/03/2020

CADERNETA PRETA - 38 (não-integral)






38. Derredores de Jardinete


Sexta-feira, 27 de Dezembro de 2019


Agora que o conto (sei-o tão bem, que nada me custa reconhecê-lo), mesclam-se-me as coisas, entrançam-se-me os planos, os (con)fusos horários – todavia o conto:

Foi ao cabo de uma noite má em Lisboa.
Apanhei em Santa Apolónia o primeiro regional da madrugada para as Caldas.
Quem já madrugou naquele terminal, sabe de cor a que me refiro.
O comboio veio, eu fui.
Ao primeiro livor, enterneceu-me a visão de, num mínimo apeadeiro (era regional a sério, aquela composição), um jardinete amanhado pelo guarda-linha, que de bandeirola me saudou.
Todo o tempo do mundo para ser autor de rosas, aquele anónimo funcionário da ferrovia.
Invejei-o, naturalmente.
O jardinete – dois metros quadrados talvez, ou não muito(s) mais – bebia o rocio da primeira luz.
Felizmente, houve um qualquer contratempo, esperámos ali mais de quarto-de-hora.
Pude saciar-me, bucolizado por tal monotonia pouco propensa a horas más à maneira das que eu vinha de viver na capital.
O comboio, enfim, lá estrupidou, espreguiçou de ferros, deitou-se às terras d’água de uma Leonor dona, rainha & remo(r)ta – e de um Bordalo vivíssimo.
Sobre o tal malfadado serão lisbonense, nada tenho que dizer.
Nem que, nem quem.

Faço parágrafo para dizer que, ainda assim, não foi aquela a minha última noite má. Das Caldas a Coimbra, demorei anos – por intermédio, perdi não menos que uma dúzia de anos. É muito ano. Torço ambas os orelhuns sem que pinga de sangue brote. É certo que me acho hoje resolvido quanto a tal desperdício – e pronto para oxalá que meia-dúzia ao menos mais. Mas, oxalá, não tao vera & beramente má.
Aproveito a lembrança do jardinete.

Picantes, escaldantes, excitantes revelações destapa-segredos da minha vida? Nem as há, nem as hei. Também é verdade que só se me solta a Língua quando para tal me dá na veneta – e pouco dá. Inventar, invento muito; mentir, minto alguma coisita – sobretudo a mim mesmo, condição sine-qua-non da pró-sobrevivência (até física, valha-me a senhora-dos-rosários-&-dos-jardinetes).

Resolvido o papel cuja toma me faltava de ontem. Então, à saída dessa repartição, dei com um homem sentado em uma escalória de prédio ali ao Arnado. Era a morte em pessoa. Rosto ossudo como feito de arame ou de peito de frango, os olhos já sem o éter dos que já se vêem amanhã lidando coisas novas, as mãos pingadas dos joelhos – como cera irreversível. Impressionou-me tal estatueta do desamparo. Não sofria miséria indumentária, não parecia fome o mal que o acocorara ali. Era tão-só a morte-em-breve (tinham chamado o 112), a que ainda dá para mungir um ténue água-vai. Fiquei cativo daquele apeado. Estive para conversar-lhe alguma coisa, alguma oferta de algum préstimo – mas o não fiz, usei-o para literatura, esta coisa (também) sem remédio.

Em contraponto à notícia pré-necro anterior, esta de dois vivaços ao balcão seguinte:

Operários em folga, mãos fortes & muito usadas, roupa do ofício escrita pelo trabalho, sapatos apontados a aço de pontapear durezas & rombas agudezas de estaleiro. Bebem, um conta ao outro e ao taberneiro (e a mim, por indirecta via) sucessos da aldeia onde acampou família & ferramentas. Ouvimo-lo os três com a mesma devota entrega de Eça aos pés de Antero no Largo da Feira, lá nos anos 60/XIX. O homem é interessante, versa bem as peripécias tortuosas, os discursos-directos com que põe o drama a dizer de si, recriando & recreando com inegável talento oratório. Tive, mas a gosto fácil, de suspender o meu Fialho. Devolvo O País das Uvas ao bornal, uso o estilete para estoutra história. O entorno exterior continua solar. Frio nenhum. O operário-contador passa a ouvinte, fala agora o seu companheiro. Mais baixo de ombros & de fala, estoutro narra certo episódio de carpintaria-de-cofragem para bandas de Vila Verde (não a de Braga mas a da Figueira da Foz). (...) Agora calaram-se ambos, pagaram as rodas, ei-los de ala-à-riba lá deles. O bem os acompanhe sem do mal a sombra suspeita.

Entre o Beco do Teodoro & o Café Abadia, vai à minha frente um destes pares mãe-filho de que é pródiga a minha Coimbra. A senhora, baixinha, seca de carnes & de maneiras aviuvadas; o rapaz, quarentão neur’atoleimado, eterno menino-de-sua-mamã. Ela naturalmente impera; ele naturalmente subdita-se-lhe. Eu daria tudo para ser ele, desde que ela fosse Hermínia Leite dos Santos.
Já nos vejo indo merendar, pode ser aqui já no Abadia, leite com bola-de-berlim, como o Zé Amaro fez à vinda das Piscinas Municipais aí por volta de 1972, 73. Sem que lho peça, entramos, antes logo do Café do senhor Fernando, na Pérola, livraria-papelaria com os lápis de que tanto gosto: Viarco n.º 2.
Hermínia vai receitando ao infante o que fazer quando ela tiver já adormecido sem retorno:
 – Usa este lápis e começa por imaginar um moribundo ao pé dos Correios, depois dois operários a um balcão de vinho: mesmo que para sempre te vejas (& escrevejas) sozinho.

Bem. Vejo-me (des)fazendo em literatura o tempo que outros usam para indústria pragmática de suas vidas mesmas. Seja. De minha (p)arte, tarde é de mais para desculpar-me de uma culpa que não apadrinho nem permito que me enteie.
Passa no mundo a máquina amarela lavadora de sarjetas. Um cantoneiro adianta-se-lhe, varrendo lixos atomizados de humana ascendência (não o somos todos? somos). Estou rumorosamente calado – mas não mudo – na Sexta-Feira derradeira do Ano-Velho.

Dois cavalheiros já d’idad’entradotes, falam de petisqueiras próximas. Um arremeda rol de porcum: orelha, unha, coirato, focinho, entremeada; o outro prefere ex-viventes do mar: bacalhau, chicharro, amêijoa, lagosta, cherne. Vão adentrando tinto enquanto pré-salivam. Já ambos devassaram há muito o umbral dos sessentas (que me apresto, eu mesmo, a franquear também já, já faltou bem mais). Ambas as bocas articulam fonética subsidiada por dentuças acrílicas. Escurecida, discreta roupagem. Sapatos de borrachosa ortopedia. Um deles é senhor Normando – nome porreiríssimo para a minha caderneta. Outro faz de senhor Adalberto, mesmo nome de um célebre camarada laboral do meu Pai, que muitas maluqueiras narrava desse doido Adalberto dos anos 40 & 50/XX. Gosto muito destas rumorosas falas, que espiono & espiolho sem fímbria de escrúpulo. Gosto de como já comem o petisco que prenunciam, gozosos por antecipação de iguarias & vitualhas, última sexualidade de suas vidas ora já só palatais.

Ciganas sob o viaduto. Obesas, de cabelo em totó por cimalha. Duas.
Mais além, tribo de leitores do Expresso acampada na esplanada da Almedina-Estádio: função-pública & ócio duradouro.
Mais aquém. Esta caderneta, voraz & delicoamarga não-raro.

Penso em Janeiro próximo, que pouco tarda se me não der eu ao luxo de morrer de solipampa – ou o carago. Vou escrever esta coisa, pois que já decidi dar última página a esta caderneta no dia 31 de Dezembro de 2019. Lá chegando, terminarei também Leite dos Santos, diarístico monumento erguido a uma tal Hermínia Leite dos Santos (1924-2011). Nisso penso ora um pouco, não muito, o suficiente sim.

Todo o saco de padaria, dei-o a pombas no Arnado & no Jardim da Manga, pelo que antes das quatro da tarde hei razão para dar por ganho o dia muito antes da meia-noite.

“Que noite serena
Que lindo luar
Que linda barquinha
Eu vejo passar
Vem, vem, ó meu anjo
Fujamos daqui
Que a noite está bela
Que a noite está bela
E o amor sorri
Fujamos daqui”,

como cantava Hermínia ao tempo em que ninguém nos houvera morrido. Mas.

Conimbricenses outros orlam os pass(e)amentos da cidade. Nenhum me falta – pois nenhum me prometeu. Derivo em espécie, humana nem sempre. Parece que apareço versos, estes:

Consigo trouxe ele quanto podia,
o dia deu ele a quem nascia,
deve ser triste ser de um pensamento,
um desejo a vida toda feita momento.
Recordo esse homem atado ao meu coração
como silveira bruxuleando espinhos ao luar.
Só posso dele dar por finda a arribação,
encadernetá-lo, ossos que se deixam amar.
Na necropágina do Diário de Coimbra
também ele fez figura, rosto-tipo-passe.
Fortuna nos deixou: voz q’inda timbra,
mas sestércio não vale sequer um asse.
Levo dele o nome todo, mais da Mãe o Leite.
Às vezes o surpreendo a meu lado:
quando a mim alguém Senhor-Daniel deite,
penso ser p’ra ele, por mim acompanhado.
Era diversa, a senhora-ela, dele mulher:
fina cebola, ápico alho, boníssima cabeça.
Ainda hoje a nossa Rua se lhe refere,
ainda co’ela conta, pouco há quem se lhe meça.
Eu agradeço tal falar, é luz na orfandade.
Eu desemprego cadernetas pela Cidade,
eu isto, aquele & aquilo, ao grama mais barato.
Não me maltrata alguém, a ninguém maltrato.
Sou de ínfima cortesia. Vou à malvasia,
sim, mas sempr’a sós, sem telefonia.
Sou de rápidas suspeitas, que aliás confirmo
no calado que dou ao que mudo afirmo.
Tem cancro, dizem, a Sónia Pimentel.
Confirma-mo a Lívia do Tó Salgueiro.
Na tropa: – Primeiro nome? – Daniel.
Na tropa: – E o derradeiro? – Abrunheiro.

Recordo, de 1967, um achado no pátio. Maravilhoso foi ele – de quê, não no sei.
De 1968, um cão amarelo enorme: prenúncio do meu pequeno de 1986: 68, 86.
De 1969, o perfume a aguarrás & a azulejo na oficina (dita barraca) do Pai.
De 1970, Julho, a Mãe-Praia, o Sol rescendendo a bolacha-americana.
De 1971 a 1985, alguma felicidade portátil.
De 1986 em diante, nada.
Até hoje.

(...) 

TRÊS ROMANOS PARA FECHAR POR HOJE A BARRACA

I

Jeremias, nosso vizinho, rumou Aveiro.
O do NSU morreu na estrada.
A vida toda é boda de tinteiro.
Lápis por vezes de ponta afiada.

Piedade, mãe do Luís & do Ricardo.
A Didi, que a bronquite adoentava.
O Pinto, o Carlos & a Eduarda.
E o Jaime que então também lá morava.

Por cima, Marques, por baixo, Ribeiro.
Defronte, era só terra, era só monte.
Ao lado Nunes & Fernandes Santos.
Eu quero escrever todos – mas são tantos,

que o poema cansa, arfa & tosse:
o versos ainda não fiz que me remoce.

II

Aguadilha óptica, olhos fraquitos,
cognata-queixadilha simiesca.
Muita pobreza de tempos aflitos,
à caridade freira & fradesca.

Só bebe vinho-branco mijãozito,
quando à porfia junta moedas.
Dizem que é filho (e bastardito)
de um que tem ’mas bombas & umas merdas.

Calçado a napa da mais barata,
’inda usa ceroulas de riscado.
A mãe à roda o deu, a puta-rato;
herança o não rola por contado.

Rilke, não usa, sequer Pessanha
(que em Coimbra nasceu mas não se celebre).
Ouve louvinhação d’arrepanha
ao torga-vão & ao vácuo-alegre.

De moedas fraquito & futuro nenhum,
gaba a baleia-pescaria mormente dando atum.
Mas se calhar bom-homem: mal algum
senão o cheiro a não-sabão, vulgo bodum.

III

Ouvi dizer (a mim sozinho) isto:
que frequentas moças do teatro,
cujas badanas deram já mui quisto
& que, auto-’strada, de faixas quatro.

Chega o Gabriel da ’specialidade
arquivista do Dão (só Meia-Encosta);
esperav’ò com ’m’alguma ansiedade
o João das Mercês Pinto Congosta.

Foge o Maurício velho, vai atrasado
a livro-lançamento de senhora
autora de sonetos menstruados
que dão nojo ao húmus & à lavoura.

Ouvi dizer q’por certo morro disto,
já vão badalando relógios-falantes:
as estações não são as q’eram dantes,
anda cá ’baixo, ó lindo velho Cristo.

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Canzoada Assaltante