21. LEARNING
PERSONAE
Coimbra / Pombal / Coimbra, segunda-feira,
21 de Junho de 2010
And if I try to make my way
To the ordinary world
I will learn to survive
(Duran
Duran)
*
(…)
Em frente à casa-de-pasto Viaduto, depois
da banca de fruta (para quem sai do Calhabé na direcção da Casa Branca),
toalhas de relva concentram as máculas benignas da sombra. A tal sombra atiro
pão migado, afastando-me depois para que melros e pardais, sempre na descúnfia
matreirinha, comam à vontade e sem ter de agradecer.
*
Nem sempre penso nele. Sinto-o por aí (por
aqui, na cabeça rumorosa), vivo e improvável, autor de cortesias e de
inoportunidades, mas vivo, improvável embora. Pois, nem sempre penso nele.
Acontece-me sentir dele a espessura refractária, a transigência defuncionada, a
participação da natureza ao tempo solidária/solitária do homem-árvore na
humanidade-bosque. Sinto-me parte da parte que ele é e em que está, não estando
nem sendo. Nem todas as ruas nem todos os estios são dele. O Mondego é meu e
não é meu – a mesma coisa. O que provavelmente mais do que ele e que eu existe
não se chama Eduardo nem Daniel, mas Rua do Xisto, Quintas da Várzea e das
Lajes, Gorgulhão, Póvoa de S. Martinho (onde o Rui Pereira Marques), Almegue,
Rua Coelho da Rocha, Rua Capitão Salgueiro Maia, Casa Azul, Alto dos Barreiros,
Rua Cidade de Salamanca, Bairro António Sérgio, Ruas da Figueira da Foz e de
Aveiro, Arnado, Rua Luís António Verney, Couraça de Santa Isabel e Rua Mendes
dos Remédios, Estrada de Lisboa, Rua Mário Pio, Avenida Professor Gouveia
Monteiro, Olival de S. Domingos e Alameda da Conchada, Rua da Sofia e Pátio da
Inquisição, Avenida João das Regras e Choupalinho, Rua das Parreiras, Quintas
dos Cedros e do Vale Meão, Rua Nicolau Chanterene (grande artista a que Coimbra
muito deve em pétreo memorial), Rua Padre António Vieira, Jardim Botânico, Paço
Episcopal, Lapas da Corrente, Praça Machado de Assis, Rua Augusta, Rua Trindade
Coelho, Rua Antero de Quental, Rua de Tomar, Rua de Santa Tereza, Ladeira das
Alpenduradas, Lomba da Arregaça, Fonte da Talha, Quinta da Nora, Ruas Teófilo
Braga e Miguel Bombarda, Quinta das Sete Fontes, Rua da Infanta D. Teresa, Rua
Gomes Freire, Rua Bernardim Ribeiro, Travessa do Espírito Santo, Rua Júlio
Dinis, Praça dos Açores, Rua Dr. Paulo Quintela, Avenida Manuel Luís Leite,
Calçada do Gato, Rua da Mãozinha, Ruas da Caravelha e da Painça, Quinta da
Maia, Rua Almirante Gago Coutinho, Casal da Eira e Fonte da Cheira, Rua da
Condessa Ameal, Rua Câmara Pestana, Quinta de Marrocos, Brejo, Casal de S.
Nicolau e Casal do Trovão, Largo e Calçada de S. Sebastião, Rua do Cedro e
Travessa da Liberdade, Ruas Afonso II e Afonso III, Rua Damião de Góis, Ruas
Vicente Pindela e Octaviano de Sá, Rua da Portelinha, Vila Pereira, Casa
Pequena, Portela da Cobiça, Quinta da Romeira, Quinta da Cruz do Areeiro,
Palheiros do Zorro e Carvalhosas – nem Daniel, nem Eduardo.
*
Há pessoas (ou personagens – ou personae) para quase tudo: para desejar
biografias anotadas de Sampaio Bruno, para gostar do Atlético de Madrid e do
Aliados do Lordelo ao mesmo tempo, para saber o nome daquele que ficou na
cápsula na primeira alunagem, para acumular âmbar e ossículos de frango no
sótão, para funcionar mal do sótão que preside aos ombros e ao resto do
cadáver, para esmifrar uma criança obrigada a pedir nos degraus da Igreja de S.
Tiago, para confundir Ângelo de Lima com Michelangelo, para sonhar com a mulher
nórdica do Luís Figo a assar sardinhas, a beber tinto, a cuspir na direcção da
palmeira de plástico e a dizer caralhadas, para ser das Alhadas, para fazer
fisgas fracas com os elásticos das cuecas e figas fortes com os
índexes-médios-anulares embolados de ácido úrico, para respigar de sombras de
senhoras um suco de meninas, para bater a sesta na Costa de Sagres após
litradas de Super Bock, para andar à conquilha no Zavial, ao junquilho na
Pateira de Fermentelos e ao chinquilho em S. Facundo, depois da Cidreira/Geria
e antes da Pena/Portunhos, para saber de cor as preposições que regem o
ablativo latino (a, ab, abs, coram, cum,
de, e, ex, prae, pro, sine, tenus), as que tanto podem reger ablativo como
acusativo (in, sub, super), na certeza-porém (como dizem os broncos do derivádòfacto) de que todas (mas mesmo
todas) as outras regem acusativo-pai-do-nosso-complemento-directo, as que em vez
de anotações biografantes de Sampaio Bruno prefeririram de longe saber mais
sobre Mendes dos Remédios, as que duvidam sinceramente de que Deus tenha Mãe ao
mesmo tempo que negam a existência do Aliados do Lordelo e do Atlético de
Madrid pós-Jesus Gil y Gil, para sair incólumes de uma tarde na Lousã, para
nunca mais voltar ao Baleal de Peniche mesmo depois de Raul Brandão ter escrito
dali o que escreveu em Os Pescadores,
para saber que os pais de Raul Brandão também tiveram nome e ofício (José
Germano Brandão, pescador, e Laurentina Ferreira de Almeida, mulher de
pescador), para se chamar ou Vidal ou Bregieiro ou Sanches ou Gusmão Noronha ou
Naphta ou Settembrini ou Manuéis que ou Cid ou Ray ou Purificação ou Norga ou
Sumi ou Cheeta, para saber que charcutarias e retrosarias e alfaiatarias e
amola-tesouras são da primeva & terminal infância de quem nasceu tarde de
mais para ter uma erecção emocional só-por-causa-de-um-iPod, para nunca ter ido
a S. Bernardino nem muito querer saber o que isso é de Consolação, para ter
andado a fazer cadeiras da Universidade de Coimbra e mesmo assim ler alguma
coisa sem ser a Caras, para já ter
ido à Nova Zelândia contar carneiros, para ter ido ao Senhor da Serra com
Carlos de Oliveira e Augusto Abelaira, as que em vez de uma imerecida
hagiografia de Mendes dos Remédios
teriam bem maior gosto em ver definitivamente associado o nome de Jaime
Cortesão a S. João do Campo como a Ançã, as que se crispam como
franco-congoleses causticados de aguardente-de-cana, para lacar farripas à
força de laca de orelha-com-melena a orelha-sem-melena, para saber todas as
novidades da Nike e da Adidas mas nenhumas do Código Laboral e da Liga
Portuguesa contra o Cancro, para ser infeliz sem peculiares razões demais para
tal que as de gostar de tal ser, para amendoinar o que tremoço e tremoçar o que
sempre foi azeitona – ou pevide, para preferir Aragão ao Benelux, para expelir
tijoleiras de muco pela uretra e mesmo assim ter filhos assim e depois não
querer que sejam ranhosos como só podia que fossem, para duvidar de Maria mas
não de outra qualquer de quem dissessem diva maternidade, para escrever horas
fixas por mentira em ideários e coimbras ibidem, para envergar óculos escuros
como capacetes de motard, para exercer a mais vã autocracia – que é a que por
desidério imperativo tem o fidelizar gatos, pessoas (ou personagens – ou personae) para ter lido Machado de Assis
e nada recordar, pessoas para recordar mas não sem terem lido Machado de Assis,
para semear restolhos de vento em eira abandonada mais do que varrida, para se
ter apeado em Verride, para invocar S. mas não D. Sebastião, para não vacilar
ante a certeza de que tanto o regime vigente na Coreia do Norte como o idem
idem nos Estados Unidos basicamente-é-assim,
para ter o Torga todo em casa mas nunca ter ouvido o mínimo rumor de António
Osório porque basicamente-é-assim,
para parecer uma zebra cor-de-laranja excepto na colecção de vinis Cat Stevens
da fase pré-Yusuf Islam, para gemer de frio na praia de Brighton enquanto
Anthony Hopkins e Graham Greene, de braço dado, tergiversam sem abrir a boca,
para morrer, para saber que O Sol Voltará
mas só para o António Calvário, para nunca mais ficar em uma antemão de
comboios, para de facto quase tudo – menos para ser capaz de eternidade.
*
Um dia também a cabeça arrenda quartos,
também ela partilha frigoríficos, tapetes,
sabões não, mas tapetes, frigorífico, luzes
das escadas.
Uma noite a cabeça não, mas isso só
um
dia.
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