20. MÃE
INTERNA(DA)
Coimbra, domingo, 20 de Junho de 2010
(...)
São de outros verdes os passos de relva e
arvoredo nas tardes largas dos domingos de Junho. Também outro é o aroma das
fêmeas.
*
O casal de patos da rotunda que medeia a
minha varanda da esquadra da PSP, na Elísio de Moura, é muito bonito. Já hoje
lhes dei pão a ambos. O macho é desconfiadote, mas a fêmea deixa-se solicitar
muito bem, sendo ela sempre quem primeiro aboca o maná.
*
Por volta das sete e meia da tarde, a chapa
do calor amaina, mitigada de fadiga. O vento levanta o tule da saia – e
torna-se muito aprazível ambular ao fresco pela Cidade. Tenho intensificado o
hábito de curvar-me para recolher do chão os ainda muitos lixos que gente sem
civismo abandona. Deito as porcarias (embalagens do McDonald’s, paus e papéis
de gelados, garrafas vazias de água mineral, tudo menos dinheiro) no contentor
mais próximo e sigo, ao vento e à luz que esmorece.
*
Leituras lentas e agradadas: Raul Brandão e
Professor Pedro Dias. Oitenta anos exactos separam A Farsa, que saiu em 1903, e Coimbra
– Arte e História, de 1983. Usufruo, aprendo, anoto – cresço alguma coisa,
enfim.
*
Eduardo Silvestre Gusmão Noronha prepara,
por esta hora, um creme de marisco instantâneo em casa, algures aos Olivais.
Não tem mulher nem filhos. Tem uma despensa onde acumula, com rigor arrumado,
as comidas, as bebidas, os artigos de higiene e outras miudezas solitárias.
Liga nada ao futebol. Gosta de selos e de ir ver o mar aos sábados à tarde.
Fica em casa aos domingos – e a casa não tem televisor. Ouve jazz e música
antiga pela internet. Lê na marquise, onde dispõe uma cadeira longa e um
tamborete de apoia-pés. Tem cinquenta e seis quase completos, falta-lhe chegar
ao próximo 19 de Julho, exacta quinzena posterior ao dia de Coimbra e da Rainha
Santa Isabel. Depois do creme de marisco com tostas miniaturais e da garrafa
pequena de maduro, prepara uma chávena de café-cevada e acende uma cigarrilha
de café-creme. Ele também anda a ler Chesterton (A Perspicácia do Padre Brown). Gosta de livros de arte fotográfica,
as paredes têm algumas reproduções de E. Smith e outras de Brassaï, entre
outros. Deixo-o em casa.
*
Descubro olhos semelhantes a animais
fatigados.
Famílias que cirandam açaimadas pela
deseconomia dos tempos.
Também me recolho quanto posso.
Pratico alguns versos, imagino nuvens,
tento não sonhar quando a melancolia me abate.
Orlo ruas de sombra que pelo chão me
duplica.
Mulher com sapatilhas de enfermeira:
animais fatigados, seus olhos sem fé nem desespero.
Rapaz ao volante do jipe parado no
vermelho.
Um cão solto, duas pombas libertas, um
melro.
*
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