Foi-se-me entretanto a acuidade da vista, foram-se-me os dentes. Restam-me todas as ruas, que herdei antes de apor-lhes a escritura presente. Retomarei amanhã as minhas voltas podógrafas, prometo-mo. Hoje, como em um recente antes, uma vidinha de refeições mais ou menos frugais, serões mais ou menos banais, espécie de vilegiatura quão menos metafísica quão mais urge pagar a renda do quarto, por liquidar ainda quando vão e são já treze os dias de Junho. De qualquer maneira (qualquer, mesmo) levar avante âncoras e tristuras, ganchos e alembraduras. Não ceder nunca ao apelo da selva social no que respeita a moralidadezinhas títeres, a circunscrições preconceituosas, a raivas purulentas, a olha-o-que-digo-não-o-que-faço-e-desfaço. O caminho está livre: Pessanha, Brandão, Nobre, Junqueiro, Cesário, Pessoa, Moraes, Castro, Redol, Bragança, Oliveira, Soeiro, Machado, Eça, Ramalho, Ficalho, Miguéis – e outros mais – livram o caminho, desinfestam-no da incontornável banalidade da existência, que tão mais recrudesce quão mais se levanta o olhar da página que se lia. Sim, vezes há em que escrever se me volve outra maneira de ler. Assisto então (como precisamente agora, precisamente agora) à concertante magia da tinta & papel fazendo-se caleidoscópio, espécie óptica de mapa sideral da formiga vista por dentro. E considerando que um dia o planeta rebenta de trampa acumulada – pouco, nada importa de tudo isto. Um poema? Um banco de jardim? Uma planta metalúrgica? A mãe que estremece a filha? A lista telefónica de Setúbal? As moles hipercomerciais? O cancro renal do senhor escrivão? A banca judaica de penhores? Os bailes-matinées do salão recreativo? As datas? O esquecimento? Nada: pois que por alguma razão o areal da praia se prolonga, submarino, mar adentro. Durante muitos anos, combati o inimigo errado em batalha incerta. Hoje, almejo tão-só uma lufada fresca à passagem por uma árvore fiel a si mesma, o afago visual de uma restolhada de pardais, uma lata de cavalas e um pão decente. Tenho alguma sorte, posto que, precisando dos livros como um merceeiro de freguesas, livros nunca me faltam. No quarto, esperam-me Chesterton, Woolf, Fitzgerald, o mavioso Padre António Vieira, todos eles e elas todas. É a derradeira maneira de não estar só. A penúltima é fazer a barba ao mesmo tempo que o outro gajo, o canhoto.
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(Isto cresce.)
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