GRATIDÃO BARATEIRA
É preciso não confundir “silicone” com “silly season”.
O primeiro é aquilo das micropeças de computador (não sei quais) e dos implantes mamários em actrizes de certos filmes (sabeis muito bem quais, fazei favor de me não puxar pela língua).
A “silly season” pode ser livremente traduzida por “estação das baratas tontas” e, por norma, era associada ao Verão. Era. Agora é fruta de todo o ano, como o tomate de estufa espanhol e a tesúria do consumidor. (Redacção intermédia: O Verão era uma das quatro estações do ano. Eu gostava muito do Verão. No Verão, eram as férias grandes. Já está.) Agora, o Verão só se nota pelas páginas e páginas de jornais de inquéritos “à la minuta” tipo onde-vai-passar-as-férias-que-livro-vai-levar-a-sua-avó-está-melhor-do-alzheimer-ou-ainda-reconhece-o-Júlio-Isidro? Sim – o Verão é isto e é os programas matinais de TV invadindo as praças municipais à mama do tacho orçamental do Poder Local (essa “conquista” do 25 de Abril que redundou em rotundas e em taxas de disponibilidade do contador da água).
Quem já viu o resultado do implante de silicone, não pode deixar de trepidar por dentro com as maravilhas da técnica. A tumefacção respiratória das actrizes é praticamente inabalável. Mas abala, ai não que não abala.
A barata tonta é diferente. Digamo-lo “com toda a clareza”, à maneira de um Paulo Portas e de um Francisco Louçã: a barata tonta é vilegiatura que veio para ficar, como o toyota de antigamente e o sorriso-ricto-esgar da Catarina Furtado dos nossos dias.
E está tudo muito bem assim. A realidade é o que nenhum de nós pode que ela não seja. Ainda bem. O horror seria, por exemplo, uma realidade à minha maneira. Ai eu proibiria logo quatro aspectos: o Portas, o Louçã, a Furtado e a TV matinal. Depois, imporia a obrigação do fabrico em silicone de toda a barata tonta que se pusesse… à mama. Mas isto nunca será. Só tenho pena de que a vossa realidade também não venha nunca a ser real. Sempre gostaria de saber quais as vossas interdições, qual a fractura exposta do vosso mais íntimo desejo (ninguém está a falar dos tais filmes), qual o verdadeiro aspecto de você(s) na TV.
No fundo, porém, deveríamos todos estar-lhes gratos: como as coisas estão e andam, as tontas devem ser as últimas coisas de facto baratas.
FLATO À FORÇA TODA
Vi num jornal que, depois da Britney Spears e da Christina Aguilera, chegou a vez da Gwyneth Paltrow ser beijada na boca por Madonna. Como por acaso até tenho um caderninho em que anoto tudo quanto é ósculo, anotei. Só lamento (mas pouco) que a aparente síndrome beijoqueira da execrável flausina não tenha ainda vitimado a Lynda Carter.
Lynda Carter? Sim, Lynda e Carter: a actriz de TV que nos anos 70 protagonizou a série Super-Mulher (ou WonderWoman”, no original). Consta que a Lynda é uma alcoólica reabilitada, condição que eu sei requerer superpoderes (ou “wonderpowers”). Mas, se calhar, estou a ser egoísta: o mais provável é que, na eventualidade de a Madonna lhe estampilhar, à Lynda, um “chocho” nas beiças, a Carter voltasse a meter-se nos copos à força toda. Digo eu. Se ela, Madonna, mo fizesse, eu beberia. Se ela mo não fizesse, também beberia. Digo eu.
Entretanto, cá pelas lusas berças, ’tá tudo bem. O paraíso segue dentro de momentos, como antigamente as transmissões avariadas da televisão única (a mesma que, hoj’ em dia, e por piada, se diz “de serviço público”). Cá por nós, anda no ar o adocicado perfume a mortos da amargura, mas pode ser que não. Contra o vero desemprego, contra a falsa “qualificação”, contra a cosmética oratória, contra a flatulência verborreica e contra a verbosidade do flato, nada. Contra as pessoas, tudo. Está, portanto, tudo bem, aqui no paraíso-dentro-de-momentos.
É Verão, é tempo de “ícones”. Em Leiria, o “ícone” que mais imediatamente me ocorre, desculpai-me, é a Ribeira dos Milagres, mas isto é por causa do meu famigerado mau feitio. No resto do mundo (que começa na Barosa, passa pela Nova Zelândia e acaba, também por piada, em Pombal), o “ícone” é a Madonna, matrona magrela a quem nunca passou pela cabeça (até agora, ao menos) vir a Leiria beijocar um dos 400 mil bácoros que dejectam fezes impunes na dita Ribeira. Deve ser do flato.
Ainda se obrigassem cada porquinho a levar “chip” como os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último…
Proposta: beijemo-nos todos na boca. Proposta: em simpática encomenda personalizada, enviemo-nos todos à Lynda Carter. No remetente, escrevamos assim: Leiria-Portugal (“ou “wondercity of the wondercountry”).
E quando a encomenda lá chegar(mos), vamos mas é todos beber um copo com a Super-Mulher.
CRÓNICA FUTURA
Há muitos, muitos anos, a vida era simples. Tão simples, que o mundo nem precisava de engenharias cosmogónicas. Na cozinha maternal, o calendário de parede nunca mudava de ano, pois que a infância é (era) uma eternidade não numerária. Éramos todos felizes da felicidade maior que há (ou houve): a que resulta da não-consciência.
O futuro tornou-se agora e o agora é isto: os nossos rostos repetindo, por atavismo, os retratos espalhados por toda a casa como sentinelas do Tempo, como arautos da Passagem, como decretadores da Brevidade.
A vida é a vida. Só não compreendo, dela, isto: se nascer não é pecado, por que razão não nos perdoa a vida termos nascido dela e para ela? E mais: por que motivo não lhe perdoamos nós a ela, à ávida vida, esta pena de a pen(s)armos mais do que, simplesmente, a vivermos? Não sei responder. Só sei perguntar.
Há muitos, muitos anos, nós éramos simples. A nossa respiração, por infantil (por inicial, portanto), prolongava a brisa, que nas árvores entretinha a folhagem de passaritos cantores e de pinceladas de ouro aeróbico. Não era, então, o dinheiro (ou a escassez dele) que nos movia. Nem era o aspecto exterior que se nos assemelhava, por dentro, a nós mesmos. Éramos, mais pequenos embora em corpo, bem mais altos do que agora somos (ou parecemos, por fora). Por assim dizer, nós éramos, então, de verdade nós, não estes que agora, no futuro, nos tornámos.
(Em frente a esta crónica e em frente à mão que a escreve, uma loja de móveis espera clientes que não vêm; um cão abandonado trota solidão passeio acima, passeio abaixo; uma mulher antiga e muito branca cambaleia de mercearias rumo à casa viúva onde exerce sozinha seu particular atavismo fotográfico; mas uma adolescente desempoeirada grita euforias de telemóvel ao namorado algures no éter da modernidade.)
Pouso agora a caneta, a crónica está pronta, está acabada a manhã. Tentarei, na tarde e na noite que se seguem, não ceder ao amargor supranumerário da consciência. Procurarei (encontrarei?) árvores – árvores e o vento nelas dando-lhes de pássaros respiratórios e de ouro cantor. Se o lograr, serei de novo o que fui já: não uma repetição de retrato, mas um rosto novo, um rosto em que aquele cão solitário confie para dono e companheiro de solidão, passeio abaixo, passeio acima.
ABANDONOS
Resigno-me sempre muito mal, cada vez que se me impõe a visão de um abandonado. Um gato, um cão, uma pessoa: cada espécie é propícia ao desperdício. E eu não consigo nunca furtar-me à tristeza perante (de pessoa, cão ou gato) um caso de abandono.
Na aldeia, acontece menos. O universo é mais restrito, na aldeia. Também acontece, eu sei. Mas acontece menos do que na cidade. Esta manhã, tomando com a minha mulher a primeira cafeína do dia, havia um cão sem dono nem perspectiva. A água dos olhos dele arrefecia ao sol de Julho. Apresentava uma orelha roída ou pela moléstia ou por outro cão. Movia-se lentamente. Encontrou uma sombra, deitou-se na pedra. Respirava como um acordeão doente. De pronto, o café amargou-se-me entre a boca e o coração. Paguei, saí dali depois de beijar a face por igual condoída da minha senhora, sentei-me aqui a escrever-vos isto.
Estou agora num café gentil da Avenida Capitão Silva Pereira. A manhã cresce fresca e luminosa. Estou calado a um canto. Ainda penso no cão. Então (agora mesmo, enquanto e quanto escrevo), impõe-se-me a recordação de um homem que muitas vezes vi pelas ruas desta cidade de Viseu. É de olhos azuis e de roupas muito limpas e muito pobres. É a personificação viva da solidão: uma estátua que se mexe, acima, abaixo. Recolhe do chão pontas de cigarro que o mundo dos fumadores abandona à passagem. Tem uma caixa de fósforos de cozinha.
Uma vez, parei ante ele e ofereci-lhe um cigarro não pedido. Aceitou-o sem olhar a minha mão. Olhou-me nos olhos enquanto recolhia o cigarro. Aquele azul aguado e magoado frechou-me irremediavelmente o instante. Balbuciou um “Agradecido” correctíssimo e seguiu caminho, abandonando-se ao seu mesmo abandono. Nunca o esquecerei. Sei-o bem: nunca o esquecerei.
Quando puder, voltarei a viver na aldeia, restrito universo onde o abandono é, ao menos, colectivo. Digamo-lo: onde o abandono, por universal, não se nota nem se sofre tanto. Não se nota nem se sofre tanto a evidência existencial do abandono, na aldeia. É tudo perto, até a vida, até a morte. Na cidade, porém, sucede-me evocar um homem mercê de um cão – e vice-versa.
Aqui há gato.
OURO, VISTE-LO
Tenho duas filhas, mas espero que se tornem, também elas, meninos. E de ouro. Dois meninos de ouro: é o que mais lhes desejo. Também depende delas, não só da minha esperança.
Um cursozito tecnológico desses rápidos para as estatísticas e um cartão-chip de juventude partidária como agora os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último: eis dois degraus que as minhas duas rosas terão de adquirir antes que se faça tarde na vida delas, como na minha se fez a partir do momento em que, tendo cursado Letras, me estatelei de pára-quedas no país dos Números.
Meninas-meninos, sim. E de ouro. Mesmo que de ouro de espúria casquinha de pechisbeque, ouro-lata de ourivesaria covilhanense, por assim dizer. Ainda no outro dia me dei ao solitário prazer de um trocadilho duplo. Era este: perdemos em 2004 com os Gregos porque o Sócrates deles é a sério; e porque o Sócrates deles sempre tinha o Platão, ao passo que nós, com o nosso, nem latão.
As minhas meninas torcem o nariz a tanta agrura paternal. De facto, tornei-me um “cota” ácido, um rezingão malacueco, um ocioso misantropo, um vedor de águas paradas, um obstinado maledicente, um ex-menino de ouro-nenhum e de prata-viste-la. Pois foi. Pois é. Mas também a realidade se encarrega de dar-me razões: 24 horas por dia, sete dias/semana, 12 meses/ano e, com algum azar, 70 anos/vida.
O Scolari ter-se ido embora é que foi duro golpe assestado nos meus futuros meninos de ouro. Tropeçando em sacos cheios de dinheiro (contribuinte, logo nosso), o insigne pendurador de bandeiras republicanas da monarquia das bananas foi-se embora e despovoou os meninos/meninas, que assim já não hão-de jogar (até por não terem nascido no Brasil) na selecção nacional. Resta-lhes o pechisbeque tecnológico, o 12º por equivalência, os festivais de Verão para cigarras e os centros de desemprego de Inverno para formigas. Pobrezinhos dos meus meninos, pobrezinhas das minhas rosas.
No país dos Números que a nenhuma outra realidade contam se não (a) esta, escrevi estas letras que, pensando bem, não mostrarei às andróginas filhas minhas. Nem que mas pagassem ao preço de um ouro que não é verdade mas tão-só covilhanense, por assim dizer.
Fica dito.
É preciso não confundir “silicone” com “silly season”.
O primeiro é aquilo das micropeças de computador (não sei quais) e dos implantes mamários em actrizes de certos filmes (sabeis muito bem quais, fazei favor de me não puxar pela língua).
A “silly season” pode ser livremente traduzida por “estação das baratas tontas” e, por norma, era associada ao Verão. Era. Agora é fruta de todo o ano, como o tomate de estufa espanhol e a tesúria do consumidor. (Redacção intermédia: O Verão era uma das quatro estações do ano. Eu gostava muito do Verão. No Verão, eram as férias grandes. Já está.) Agora, o Verão só se nota pelas páginas e páginas de jornais de inquéritos “à la minuta” tipo onde-vai-passar-as-férias-que-livro-vai-levar-a-sua-avó-está-melhor-do-alzheimer-ou-ainda-reconhece-o-Júlio-Isidro? Sim – o Verão é isto e é os programas matinais de TV invadindo as praças municipais à mama do tacho orçamental do Poder Local (essa “conquista” do 25 de Abril que redundou em rotundas e em taxas de disponibilidade do contador da água).
Quem já viu o resultado do implante de silicone, não pode deixar de trepidar por dentro com as maravilhas da técnica. A tumefacção respiratória das actrizes é praticamente inabalável. Mas abala, ai não que não abala.
A barata tonta é diferente. Digamo-lo “com toda a clareza”, à maneira de um Paulo Portas e de um Francisco Louçã: a barata tonta é vilegiatura que veio para ficar, como o toyota de antigamente e o sorriso-ricto-esgar da Catarina Furtado dos nossos dias.
E está tudo muito bem assim. A realidade é o que nenhum de nós pode que ela não seja. Ainda bem. O horror seria, por exemplo, uma realidade à minha maneira. Ai eu proibiria logo quatro aspectos: o Portas, o Louçã, a Furtado e a TV matinal. Depois, imporia a obrigação do fabrico em silicone de toda a barata tonta que se pusesse… à mama. Mas isto nunca será. Só tenho pena de que a vossa realidade também não venha nunca a ser real. Sempre gostaria de saber quais as vossas interdições, qual a fractura exposta do vosso mais íntimo desejo (ninguém está a falar dos tais filmes), qual o verdadeiro aspecto de você(s) na TV.
No fundo, porém, deveríamos todos estar-lhes gratos: como as coisas estão e andam, as tontas devem ser as últimas coisas de facto baratas.
FLATO À FORÇA TODA
Vi num jornal que, depois da Britney Spears e da Christina Aguilera, chegou a vez da Gwyneth Paltrow ser beijada na boca por Madonna. Como por acaso até tenho um caderninho em que anoto tudo quanto é ósculo, anotei. Só lamento (mas pouco) que a aparente síndrome beijoqueira da execrável flausina não tenha ainda vitimado a Lynda Carter.
Lynda Carter? Sim, Lynda e Carter: a actriz de TV que nos anos 70 protagonizou a série Super-Mulher (ou WonderWoman”, no original). Consta que a Lynda é uma alcoólica reabilitada, condição que eu sei requerer superpoderes (ou “wonderpowers”). Mas, se calhar, estou a ser egoísta: o mais provável é que, na eventualidade de a Madonna lhe estampilhar, à Lynda, um “chocho” nas beiças, a Carter voltasse a meter-se nos copos à força toda. Digo eu. Se ela, Madonna, mo fizesse, eu beberia. Se ela mo não fizesse, também beberia. Digo eu.
Entretanto, cá pelas lusas berças, ’tá tudo bem. O paraíso segue dentro de momentos, como antigamente as transmissões avariadas da televisão única (a mesma que, hoj’ em dia, e por piada, se diz “de serviço público”). Cá por nós, anda no ar o adocicado perfume a mortos da amargura, mas pode ser que não. Contra o vero desemprego, contra a falsa “qualificação”, contra a cosmética oratória, contra a flatulência verborreica e contra a verbosidade do flato, nada. Contra as pessoas, tudo. Está, portanto, tudo bem, aqui no paraíso-dentro-de-momentos.
É Verão, é tempo de “ícones”. Em Leiria, o “ícone” que mais imediatamente me ocorre, desculpai-me, é a Ribeira dos Milagres, mas isto é por causa do meu famigerado mau feitio. No resto do mundo (que começa na Barosa, passa pela Nova Zelândia e acaba, também por piada, em Pombal), o “ícone” é a Madonna, matrona magrela a quem nunca passou pela cabeça (até agora, ao menos) vir a Leiria beijocar um dos 400 mil bácoros que dejectam fezes impunes na dita Ribeira. Deve ser do flato.
Ainda se obrigassem cada porquinho a levar “chip” como os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último…
Proposta: beijemo-nos todos na boca. Proposta: em simpática encomenda personalizada, enviemo-nos todos à Lynda Carter. No remetente, escrevamos assim: Leiria-Portugal (“ou “wondercity of the wondercountry”).
E quando a encomenda lá chegar(mos), vamos mas é todos beber um copo com a Super-Mulher.
CRÓNICA FUTURA
Há muitos, muitos anos, a vida era simples. Tão simples, que o mundo nem precisava de engenharias cosmogónicas. Na cozinha maternal, o calendário de parede nunca mudava de ano, pois que a infância é (era) uma eternidade não numerária. Éramos todos felizes da felicidade maior que há (ou houve): a que resulta da não-consciência.
O futuro tornou-se agora e o agora é isto: os nossos rostos repetindo, por atavismo, os retratos espalhados por toda a casa como sentinelas do Tempo, como arautos da Passagem, como decretadores da Brevidade.
A vida é a vida. Só não compreendo, dela, isto: se nascer não é pecado, por que razão não nos perdoa a vida termos nascido dela e para ela? E mais: por que motivo não lhe perdoamos nós a ela, à ávida vida, esta pena de a pen(s)armos mais do que, simplesmente, a vivermos? Não sei responder. Só sei perguntar.
Há muitos, muitos anos, nós éramos simples. A nossa respiração, por infantil (por inicial, portanto), prolongava a brisa, que nas árvores entretinha a folhagem de passaritos cantores e de pinceladas de ouro aeróbico. Não era, então, o dinheiro (ou a escassez dele) que nos movia. Nem era o aspecto exterior que se nos assemelhava, por dentro, a nós mesmos. Éramos, mais pequenos embora em corpo, bem mais altos do que agora somos (ou parecemos, por fora). Por assim dizer, nós éramos, então, de verdade nós, não estes que agora, no futuro, nos tornámos.
(Em frente a esta crónica e em frente à mão que a escreve, uma loja de móveis espera clientes que não vêm; um cão abandonado trota solidão passeio acima, passeio abaixo; uma mulher antiga e muito branca cambaleia de mercearias rumo à casa viúva onde exerce sozinha seu particular atavismo fotográfico; mas uma adolescente desempoeirada grita euforias de telemóvel ao namorado algures no éter da modernidade.)
Pouso agora a caneta, a crónica está pronta, está acabada a manhã. Tentarei, na tarde e na noite que se seguem, não ceder ao amargor supranumerário da consciência. Procurarei (encontrarei?) árvores – árvores e o vento nelas dando-lhes de pássaros respiratórios e de ouro cantor. Se o lograr, serei de novo o que fui já: não uma repetição de retrato, mas um rosto novo, um rosto em que aquele cão solitário confie para dono e companheiro de solidão, passeio abaixo, passeio acima.
ABANDONOS
Resigno-me sempre muito mal, cada vez que se me impõe a visão de um abandonado. Um gato, um cão, uma pessoa: cada espécie é propícia ao desperdício. E eu não consigo nunca furtar-me à tristeza perante (de pessoa, cão ou gato) um caso de abandono.
Na aldeia, acontece menos. O universo é mais restrito, na aldeia. Também acontece, eu sei. Mas acontece menos do que na cidade. Esta manhã, tomando com a minha mulher a primeira cafeína do dia, havia um cão sem dono nem perspectiva. A água dos olhos dele arrefecia ao sol de Julho. Apresentava uma orelha roída ou pela moléstia ou por outro cão. Movia-se lentamente. Encontrou uma sombra, deitou-se na pedra. Respirava como um acordeão doente. De pronto, o café amargou-se-me entre a boca e o coração. Paguei, saí dali depois de beijar a face por igual condoída da minha senhora, sentei-me aqui a escrever-vos isto.
Estou agora num café gentil da Avenida Capitão Silva Pereira. A manhã cresce fresca e luminosa. Estou calado a um canto. Ainda penso no cão. Então (agora mesmo, enquanto e quanto escrevo), impõe-se-me a recordação de um homem que muitas vezes vi pelas ruas desta cidade de Viseu. É de olhos azuis e de roupas muito limpas e muito pobres. É a personificação viva da solidão: uma estátua que se mexe, acima, abaixo. Recolhe do chão pontas de cigarro que o mundo dos fumadores abandona à passagem. Tem uma caixa de fósforos de cozinha.
Uma vez, parei ante ele e ofereci-lhe um cigarro não pedido. Aceitou-o sem olhar a minha mão. Olhou-me nos olhos enquanto recolhia o cigarro. Aquele azul aguado e magoado frechou-me irremediavelmente o instante. Balbuciou um “Agradecido” correctíssimo e seguiu caminho, abandonando-se ao seu mesmo abandono. Nunca o esquecerei. Sei-o bem: nunca o esquecerei.
Quando puder, voltarei a viver na aldeia, restrito universo onde o abandono é, ao menos, colectivo. Digamo-lo: onde o abandono, por universal, não se nota nem se sofre tanto. Não se nota nem se sofre tanto a evidência existencial do abandono, na aldeia. É tudo perto, até a vida, até a morte. Na cidade, porém, sucede-me evocar um homem mercê de um cão – e vice-versa.
Aqui há gato.
OURO, VISTE-LO
Tenho duas filhas, mas espero que se tornem, também elas, meninos. E de ouro. Dois meninos de ouro: é o que mais lhes desejo. Também depende delas, não só da minha esperança.
Um cursozito tecnológico desses rápidos para as estatísticas e um cartão-chip de juventude partidária como agora os cachorros nacionais nascidos a partir de 1 de Julho último: eis dois degraus que as minhas duas rosas terão de adquirir antes que se faça tarde na vida delas, como na minha se fez a partir do momento em que, tendo cursado Letras, me estatelei de pára-quedas no país dos Números.
Meninas-meninos, sim. E de ouro. Mesmo que de ouro de espúria casquinha de pechisbeque, ouro-lata de ourivesaria covilhanense, por assim dizer. Ainda no outro dia me dei ao solitário prazer de um trocadilho duplo. Era este: perdemos em 2004 com os Gregos porque o Sócrates deles é a sério; e porque o Sócrates deles sempre tinha o Platão, ao passo que nós, com o nosso, nem latão.
As minhas meninas torcem o nariz a tanta agrura paternal. De facto, tornei-me um “cota” ácido, um rezingão malacueco, um ocioso misantropo, um vedor de águas paradas, um obstinado maledicente, um ex-menino de ouro-nenhum e de prata-viste-la. Pois foi. Pois é. Mas também a realidade se encarrega de dar-me razões: 24 horas por dia, sete dias/semana, 12 meses/ano e, com algum azar, 70 anos/vida.
O Scolari ter-se ido embora é que foi duro golpe assestado nos meus futuros meninos de ouro. Tropeçando em sacos cheios de dinheiro (contribuinte, logo nosso), o insigne pendurador de bandeiras republicanas da monarquia das bananas foi-se embora e despovoou os meninos/meninas, que assim já não hão-de jogar (até por não terem nascido no Brasil) na selecção nacional. Resta-lhes o pechisbeque tecnológico, o 12º por equivalência, os festivais de Verão para cigarras e os centros de desemprego de Inverno para formigas. Pobrezinhos dos meus meninos, pobrezinhas das minhas rosas.
No país dos Números que a nenhuma outra realidade contam se não (a) esta, escrevi estas letras que, pensando bem, não mostrarei às andróginas filhas minhas. Nem que mas pagassem ao preço de um ouro que não é verdade mas tão-só covilhanense, por assim dizer.
Fica dito.
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