28/07/2008

Passeio Frio – outro


Viseu, Café Magnólias, tarde de 28 de Julho de 2008



Faleceu há pouco o meu Amigo Né Ferreira




Esta tarde, o Papão quis tocar viola com o meu corpo
e tocou.
O telefone toca nas trevas do pleno dia: diz-me
que o Né etc.
Saio à rua a ensurdecer, o sangue todo na garganta
como um tambor vermelho,
vejo que passam as raparigas em flor,
como as de Proust, que temia as correntes-de-ar
e se dispôs a morrer depois de um
passeio frio.

Eu se calhar preciso da morte dos amigos
para desentender-me totalmente com a vida.
Anda um gajo aqui em terra seca a falar de barcos
e merdas assim – e o corpo é uma viola.

Esta tarde é peremptória: levo o corpo a ver
o comércio, a flor morena das raparigas
que confirmam o sol em risadas de marfim,
de ébano puro os xilofones de seus ossos.

Habito o futuro transitado, um punhado de versos.
Nada tenho a haver da recente onda de assaltos.
Sou filho de meus pais, mesmo não estando
vivos todos eles. Resta-me a língua portuguesa

por habitação.
Esta tarde, o Papão
queima-nos a boca – e em vão
trocaríamos a lua pela terra,
afinal o sol sempre nos franqueia as ruas,
em flor passam as sombrias raparigas
todas leite, todas nascidas do milagre
entre um homem qualquer
e uma qualquer mulher.

Queixei-me do facto ao senhor Germano do café.
Ele ouviu-me, aconselhou-me alguma calma,
reteve a ignorância do nome do amigo
(Né, de Ernesto),
tocou-me num braço, por coincidência eu tinha
vestido de manhã uma camisola preta, penso não ter
deslustrado,
ébano,
a memória dele.

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Canzoada Assaltante