Viseu, Café Lafões, manhã de 29 de Julho de 2008
Regresso à noite como se a casa volvesse.
Chego para ser um cavalo quebrado
nunca mais imune à cutelaria lunar.
Deixo os anjos estacionados à porta,
saio cedo para reconferi-los na manhã
do pequeno comércio, escoando-se a vida
e os demais apetrechos da economia.
Disponho-me então, munido de anjos, a
dizer mal do nosso povo e bem da nossa língua,
sistemática atitude que me estabelece
como um descarado filho-da-puta mais
entre pares muito iguais.
Com um pouco de sorte, a luz muito branca
aleita a respiração, então que contemplo
a mostra de pernas das mulheres pelo verão
das ruas, as pernas tristes e bonitas das mulheres,
como bonitos e tristes são os rostos dos homens,
na sorte mínima.
Os homens são as sombras verticais ante o rio,
que o município calafetou a cimento e
atou com arame para que a sede dure
para sempre.
Os meus anjos tomam-me pela mão esquerda
e derivam-me entre igrejas e casas
de fotocópias, deixo-me levar na corrente
esquerdina dos desagasalhados do coração
dados a versos e a frituras de feira popular,
salvando-se a língua, não o povo.
Tudo se penetra (é uma terça-feira), tudo
é mútuo no Nada: uma ideia cruza um
pórtico de pedra, um sonho embate na
mercadoria exposta, as pernas das mulheres
zebram a camartelo a agonia das próstatas,
duas vizinhas trocam de maridos e de naperões
e de netos e de serviços de chá esbeiçados,
há lasquinhas de esmalte por todos os derredores
do coração.
Ainda a manhã não se acabou na praia de si mesma,
já eu frequento as cabines telefónicas marcando
os números impensáveis a que os anjos
obrigam: então, uma boca cospe encarnado
no chão, entre pontas de cigarro e prospectos
pára-brisas de professores africanos especializados
em destinos mulatos e outros intestinos latos.
A cidade cheira a campo, sobretudo a partir
da imundície dourada do costume: torrefacções
de óleo alimentar, espermas arrefecidos de pais
adoptivos, casos e casas de polícia, tum-tum-
-bares pejados dos atrasados mentais da modernidade,
os que nunca Correia Garção, oh nunca!, muito menos
João Roiz de Castelo-Branco.
Os meus anjos arrulham como galinhas mentais,
toda a vez que, agora eu, os arrasto para uma
onomástica, um filão, uma bibliografia.
Entretanto, a poleiro de algum altar, os autarcas
comem palha e crocitam bruxelas-bruxelas-
-lisboa-lisboa-estrasburgo-armação-de-pêra-
-bruxelas-bruxelas. Já então me dói a
víscera fundamental (funda, mental) do coração: e lembro
entardeceres malvasiados a capilés e palitos-la-reine,
numa infância que os anjos não houveram
e que por tal odeiam.
Para não morrermos de todo nem tanto, eu
e os anjos frequentamos funerais até de estranhos,
participação social que sempre nos torna
um pouco menos desconhecidos nas inaugurações
de grandes superfícies, casas-museus e outros alternes.
Fingimo-nos tristes e bonitos, os rostos calejados
de cal e rictos de giz, ainda não é hoje
que chove.
Entre almedinas, cai então a noite como um papel preto,
levanta-se um vento de conspiração de almas,
zunem telegrafias anciãs os nomes das ruas,
tropeça de bagaço o cavalheiro de óculos escuros que sonha
sodomizar a mulher, pinguinam muito lácteas
as gordas mais baratas da avenida – e então
me quebro como um cavalo ou um verso, os anjos deixados
à porta da noite – como se fora a noite
esta casa adentro, afora o cutelo da Lua.
5 comentários:
Olá Daniel.
Parabéns pelo livro, pela Belíssima poesia, que me lembra o velho Platero.
Platero e eu...
Da tua velha amiga
Bluesmile
Magnífico, Amigo!
JJC
nota: há comentários removidos não por lápis-azul, mas porque apareceram repetidos.
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