1. Um Transcurso Viseense
Viseu, tarde de 18 de Janeiro de 2008
Se queres assistir ao transcurso da vida, que não a tua nem o teu, sai à rua e assiste. Não saberás os nomes, mas nomearás.
A mulher de pêra rolimaciça, a calça justa afundada em vistosa bota de couro castanho com orelhas: Eunice. O andar de Eunice torna rítmica a pedra que calça há séculos a rua.
O homem de botins baratos e rubicundas fauces, a cabeça engelhada e nua como um cotovelo, o cinto estrangulando a base da barriga, que bochecha líquidos como um colchão-d’água: Vital. Vital anda devagar e rente às montras para não empatar o trânsito pedonal e o transcurso da vida.
Tu, digo, marcha no sentido contrário ao do movimento maior. Crescerão para ti os rostos. Até que o ar da passagem lhes tome o lugar, os rostos crescerão para ti como flores doentes e distraídas.
Não te compararás a ninguém. Por desnecessidade te não compararás, pois que a igualdade das vidas confrange muito os viventes.
Quando muito, correlaciona o que trazes vestido com as roupas que passam. As golas altas que enforcam os baixos pescoços. Os dólmanes repetidos que militarizam velhos e crianças sem qualquer noção do ridículo. O lençarafat do militante de esquerda que come hambúrgueres onde era uma livraria. Que vestirás tu, amanhã?
Ambula e deambula, não receies a brevidade: a da ambulação como a da vida. Não receies porque te bastará uma dor para que longa te seja a vida.
Onde acabam as sapatarias, subirás pela esquerda até desaguares no largo suspenso pelo Sol. Lerás
Viseu, tarde de 18 de Janeiro de 2008
Se queres assistir ao transcurso da vida, que não a tua nem o teu, sai à rua e assiste. Não saberás os nomes, mas nomearás.
A mulher de pêra rolimaciça, a calça justa afundada em vistosa bota de couro castanho com orelhas: Eunice. O andar de Eunice torna rítmica a pedra que calça há séculos a rua.
O homem de botins baratos e rubicundas fauces, a cabeça engelhada e nua como um cotovelo, o cinto estrangulando a base da barriga, que bochecha líquidos como um colchão-d’água: Vital. Vital anda devagar e rente às montras para não empatar o trânsito pedonal e o transcurso da vida.
Tu, digo, marcha no sentido contrário ao do movimento maior. Crescerão para ti os rostos. Até que o ar da passagem lhes tome o lugar, os rostos crescerão para ti como flores doentes e distraídas.
Não te compararás a ninguém. Por desnecessidade te não compararás, pois que a igualdade das vidas confrange muito os viventes.
Quando muito, correlaciona o que trazes vestido com as roupas que passam. As golas altas que enforcam os baixos pescoços. Os dólmanes repetidos que militarizam velhos e crianças sem qualquer noção do ridículo. O lençarafat do militante de esquerda que come hambúrgueres onde era uma livraria. Que vestirás tu, amanhã?
Ambula e deambula, não receies a brevidade: a da ambulação como a da vida. Não receies porque te bastará uma dor para que longa te seja a vida.
Onde acabam as sapatarias, subirás pela esquerda até desaguares no largo suspenso pelo Sol. Lerás
ESTA CAPELLA HE DO POVO QUE SE FEZ
A CUSTA DAS ESMOLLAS DOS DEVOTOS
ANO DE 1742.
A CUSTA DAS ESMOLLAS DOS DEVOTOS
ANO DE 1742.
E obolorás
ESMOLLA PARA AS OBRAS DE
N. SENHORA DOS REMEDIOS.
N. SENHORA DOS REMEDIOS.
Havendo contribuído para a farmácia das almas e dos pobres, seguirás tua mesma obra, cuja pobreza haverás de recompensar com alma. A tua, transcursora e nomeadora; e frívola e tristonha. O Sol tem mais dez minutos no largo, não tarda é noite, recolherás a casa dentro de tua roupa, como já por então o terão feito Vital e Eunice e toda a gente.
2. Pátio
Regresso Viseu-Caramulo, tarde de 18 de Janeiro de 2008
Eu não sei.
Falo por mim.
Vejo as marcas.
O que marcam, não sei.
Um piano no coração enquanto pudermos ser perpétuos.
Um coração feito de cordas e incêndios.
O pensar dá-se a compêndios
o mais das vezes obsoletos.
Ainda assim.
Não saber, digo, é uma glória.
Diz-se – e fica dito
para que se saiba.
Temos uma árvore de veias dentro.
Uma ferrovia de mercadorias por
que pagaremos.
Ninguém nos pagará, mas
ninguém nos podará, também.
Nunca mais houve crianças no meu pátio,
que se tornou um pátio só, sem crianças
que o aumentassem a estádio, pradaria,
láctea via que
nada nem alguém vê,
já,
mais,
nunca.
Isso, sei.
3. Uma Volta a Vermoil, Certa Quinta-Feira
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008
2. Pátio
Regresso Viseu-Caramulo, tarde de 18 de Janeiro de 2008
Eu não sei.
Falo por mim.
Vejo as marcas.
O que marcam, não sei.
Um piano no coração enquanto pudermos ser perpétuos.
Um coração feito de cordas e incêndios.
O pensar dá-se a compêndios
o mais das vezes obsoletos.
Ainda assim.
Não saber, digo, é uma glória.
Diz-se – e fica dito
para que se saiba.
Temos uma árvore de veias dentro.
Uma ferrovia de mercadorias por
que pagaremos.
Ninguém nos pagará, mas
ninguém nos podará, também.
Nunca mais houve crianças no meu pátio,
que se tornou um pátio só, sem crianças
que o aumentassem a estádio, pradaria,
láctea via que
nada nem alguém vê,
já,
mais,
nunca.
Isso, sei.
3. Uma Volta a Vermoil, Certa Quinta-Feira
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008
Para o Daniel Ponte, Filho-Neto
À direita, na chuvinha, um quintal de erva.
Laranjeiras sobem do pátio por ourivesaria.
Nas costas, a igreja tange bronze gravado em cassete.
É o funeral da Senhora Avó, que Mãe de netos foi.
O silêncio calca os passos medidos do féretro.
A Junta de Freguesia diz que as campas não.
Que as campas não podem.
Não podem ter mais.
Ter mais do que dois metros de comprimento
por um de largura.
Até morrer tem de levar alvará,
sabe Deus lá.
A senhora olha de cera o último céu.
A irmã do Daniel dá rosas:
rubras metade do ramo, amarelas a outra.
É ouro de atirar à cova em sangue.
Na igreja, findo o serviço, o Daniel tenta a leitura.
A leitura sempre fez mal ao mundo.
As pessoas nunca deveriam
nem ler nem morrer
nem viver para isso.
A Avó-Mãe, julgamos, teve uma vida feliz.
Um alvará feliz, julgamos.
Deu o coração todo contra a morte.
A morte só pôde levar o corpo,
há coisas que não leva antes
de nos levar a nós,
os que julgamos,
nós,
os que damos,
amarelas,
rubras,
rosas de laranjeiras que sobem,
quando desce a chuva,
quinta-feira,
era meio-dia e tal,
em Vermoil.
4. O. J. N.
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008
Ainda se pode tocar nos muros, estão
quentes do sol do dia.
Não digo o dia, choveu tanto hoje.
Digo o dia dum muro ao sol, talvez
em outra vida una,
não esta vária,
ainda.
Ou já não.
5. Quinze, Terça, Caramulo-Coimbra
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008
Nasceu Matilde, filha de Isabel e de João.
6. Em C., com C., I., F. e D.
Coimbra, fim da manhã de 19 de Janeiro de 2008
Quando o país da manhã se acaba, resta
o deserto da tarde, que é preciso demandar
até que a cidadela da noite suba.
Estou pelo fim da manhã. Todo o país
dela devassei, recebendo dos rostos
a fadiga própria, a eles dando a minha
e o meu.
Esta é Coimbra, a minha cidade.
No regresso breve, verifico que as lojas antigas
fizeram como fazem os pássaros: mudaram
de ramo.
Restam algumas escolas no deserto.
Caiu há muito a Torre de Santa Cruz.
Não se pode fumar no café onde explodiu
a botija de gás que arremessou a senhora
mexicana para os pés frontais do trolley-bus,
para aí 1970.
Nem o fumo já, nem a senhora mexicana,
nem nunca mais o instante-ano que foi
quando foi.
Vim a Coimbra dar as voltas de Camilo.
Apanhei o comboio de Ismael.
Tomarei café no café onde Francisco e Camilo.
Chamei-me Daniel.
7. Pronto
Coimbra, fim da manhã de 19 de Janeiro de 2008
Pronto, agora é a morte
por enquanto alheia, por
agora.
8. Praça da República – Um Soneto menos Doze Versos
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Merec’ isto talvez alguma soneto,
que a praça é taça d’ouro solar.
9. Praça da República – Um Soneto menos Dois Versos
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Condição mercurial do rio represo,
como um pranto nos olhos estancado,
rio eu enfim, imun’ e ileso,
não estou hoje p’ra tango, milonga ou fado.
Eu sinto-me bem, que o Sol decorre.
O tenro arvoredo sussurra segredos.
Já ninguém nos nasce ou nos vive, só nos morre.
Mas os exílios são benignos degredos.
Do mais que não escrevo, dizendo p’ra dentro
sigo eu em registo de fauna e flora:
esta é o plátano na praça ao centro;
aquela é a moça ao Sol, mas outrora.
10. Deles e Dela a M.
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Não so a noite escurecia os dias – ou não
tão ela quão
a memória deles.
E dela.
11. Lucro
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
O mundo de que te me perdeste perdendo-me
ganhaste.
12. Arte Poética – Uma Confissão Proteica
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Nunca sinto fome, que o coração trago no estômago.
13. Da Capo
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Se música for quanto escreva ou diga,
tu esquece-m’ o nome, lembra-m’ a cantiga.
14. E as Coisas Restantes
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
O meu mundo é português
nunca houve muito mundo no mundo
excepto para os marinheiros
e para os construtores de relógios
que na montanha fria
entre vacas que uberavam chocolate
com o mar sonhavam
e com o mundo
eu não tenho relógio
não dou chocolates
nasci português
poderia ter nascido vaca
e nesse caso
outros mundos ao mundo
etc.
15. Nos Sumus Sal Terrae
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Fecharam as lojas, à noite,
que a vida, comércio,
a si mesma encerra.
O tudo é vender, se o
que te não veio foi-te
dar de graça sem sal e sem terra.
16. L. T.
Coimbra, noite de 19 de Janeiro de 2008
Mais tempo se desconta a idade, menos
há-de contar.
É bom sabê-lo, no Café Santa Cruz,
Coimbra.
Vim aqui ver, de óculos escuros em a pálida cara,
os alfredos marceneiros locais.
O tempo em nós: condescontador.
Saldos somos
baratos:
liquidação total.
17. Cara ou Rosto, Boi ou Vaca
Coimbra, noite de 19 de Janeiro de 2008
As nossas caras circulam como moedas.
De borla as damos à despesa corrente.
Ter cara e parecer, é próprio de gente
que vivendo se custa e gasta em merdas.
Avoengos à nascença, nossos rostos
d’ início luzem mas depois s’ ofuscam.
À noite, como estrelitas, ’inda coruscam,
mas o mais são menos dias mais desgostos.
Mal nenhum, muita atenção!
Mal nenhum, que alguma é a ganhação!
De resto, o rosto é rasto e verso gasto.
Que boi ou vaca sendo, tudo é pasto.
18. Sessão Contínua
Caramulo, entardenoitecer de 21 de Janeiro de 2008
O universo prossegue em sessão contínua, segunda-feira.
Algures, um homem ama uma mulher.
À saída da escola, crianças riem escalas cromáticas.
Árvores fremem corações ventosos, verticais.
O mundo é verificável a partir de dentro.
Temos urbanizações ladrando janelas frias dentro.
Mulheres recolhem cinzentamente a casa.
O fim do dia parece-se muito com a vida.
A vila é breve como uma boca.
O coração é uma jóia encarnada.
Entre árvores e animais, é pública a solidão.
Meia dúzia de carros farolina a noite.
A pessoa fecha sete gavetas por chave.
Fecha-se em casa, cozinha, cheira a Lua.
As casas fecham as chaves das gavetas.
Os fetos pensam em rosé no sangue.
19. Talvez um Dia
Caramulo, noite de 21 de Janeiro de 2008
Talvez um dia, pela noite, um verso (digamos um verso) me situe de vez sob a Lua, mesmo que faça frio e faça frio viver.
20. Do Perfume Possível
Caramulo, manhã de 22 de Janeiro de 2008
A pessoa é a possibilidade.
Circunscrita, (de)limitada e sitiada embora pela legislação física (de que a psicológica é instante, posto que nada transcende a matéria), a pessoa é possível.
Os seres da vida pendulam, relógios individuais, autoportáteis cronómetros. Assisto a essas mutiladas ergonomias com a mesma atenção (e necessidade, também) com que em criança mirava os brinquedos. Ontem, por exemplo. Passava um funeral na rua. Vi o que nunca tinha visto: entre os três opa-irmãos da confraria (à frente, com a cruz) e o carro funerário, seguia o senhor padre no seu próprio carro. O padre ia de carro, o maralhal ia a pé. Uma brincadeira. Uma canalhice, enfim.
Dias de sol completo em pleno inverno. Auríferas jornadas que, por assim, dizer, perdoam. Doam e perdoam. A massa vegetal crepita em brandura. São frescas as sombras, sabe bem tactear o chão com os sapatos. O ferro do frio vibra na água dos tanques, mas derredor fulgura o desassombro da luz. Claro que a adesiva melancolia se não desprende dos olhos assim sem mais nem menos – mas a solaridade exerce, forte, seu ofício de organista de catedral. Não é já, nem ainda, a morte – mas a vida entretida a segregar pequenos verões na invernia.
Toda a noite fervilhei sonhos.
Um homem velho dizia-me, conspícuo, melífluo, que roubasse livros velhos abandonados em cadeiras de hotel.
Uma mulher com filha pequena olhava um centro de praça.
A mulher de um amigo meu, sentada à boca de uma lareira apagada, dizia-me Ele nunca está em casa Ele nunca está em casa.
Algumas vezes (raríssimas), sou abençoado pela falta de palavras. Continuo a achar que A palavra é o facto em lugar da coisa, mas por vezes a mundial solidão das coisas desnuda-se-me como um colo de cabeleireira morno nas costas. Sou feliz quando esses espelhos se me desvocabulam. Passa depressa – como tudo.
Sábado passado, em Coimbra. Possuído de meu mesmo andamento. Onde esteve gente que amei, sozinho estive. O mecanismo dos pretéritos era de uma evidência branca. Aquelas árvores, aquela praça, aquelas casas: sombra, sombra, sombra. Uma pomba oxidada num varandim, um choupo folheando o livro de si-mesmo, uma fonte declinando latináguas, um autocarro vazio como um búzio sem gravação de mar dentro, as lojas de comer e beber, as ladeiras abruptando asmas tabágicas, andadoras de sábados e de extintas cidades natais.
Restam algumas casas de pedra, mas era de madeira quem as construiu. Estiola a seiva, evanesce a madeira, que dura como pedra pareceu. Não mais.
Amanhã, talvez, descerei ao vale. Por enquanto, limpo as penas ao sol do cume. Veias sangram água pelas faces da terra-serra. A manhã acaba aqui, em casa esperam as coisas, descerrarei talvez os largos cortinados da sala, queimarei talvez um dedo quando botar o caldo a fervuras, dentro dos armários crescem as plantas mais carnívoras: sombra e esquecimento – seu frio perfume humano, pessoal, possível.
Laranjeiras sobem do pátio por ourivesaria.
Nas costas, a igreja tange bronze gravado em cassete.
É o funeral da Senhora Avó, que Mãe de netos foi.
O silêncio calca os passos medidos do féretro.
A Junta de Freguesia diz que as campas não.
Que as campas não podem.
Não podem ter mais.
Ter mais do que dois metros de comprimento
por um de largura.
Até morrer tem de levar alvará,
sabe Deus lá.
A senhora olha de cera o último céu.
A irmã do Daniel dá rosas:
rubras metade do ramo, amarelas a outra.
É ouro de atirar à cova em sangue.
Na igreja, findo o serviço, o Daniel tenta a leitura.
A leitura sempre fez mal ao mundo.
As pessoas nunca deveriam
nem ler nem morrer
nem viver para isso.
A Avó-Mãe, julgamos, teve uma vida feliz.
Um alvará feliz, julgamos.
Deu o coração todo contra a morte.
A morte só pôde levar o corpo,
há coisas que não leva antes
de nos levar a nós,
os que julgamos,
nós,
os que damos,
amarelas,
rubras,
rosas de laranjeiras que sobem,
quando desce a chuva,
quinta-feira,
era meio-dia e tal,
em Vermoil.
4. O. J. N.
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008
Ainda se pode tocar nos muros, estão
quentes do sol do dia.
Não digo o dia, choveu tanto hoje.
Digo o dia dum muro ao sol, talvez
em outra vida una,
não esta vária,
ainda.
Ou já não.
5. Quinze, Terça, Caramulo-Coimbra
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008
Nasceu Matilde, filha de Isabel e de João.
6. Em C., com C., I., F. e D.
Coimbra, fim da manhã de 19 de Janeiro de 2008
Quando o país da manhã se acaba, resta
o deserto da tarde, que é preciso demandar
até que a cidadela da noite suba.
Estou pelo fim da manhã. Todo o país
dela devassei, recebendo dos rostos
a fadiga própria, a eles dando a minha
e o meu.
Esta é Coimbra, a minha cidade.
No regresso breve, verifico que as lojas antigas
fizeram como fazem os pássaros: mudaram
de ramo.
Restam algumas escolas no deserto.
Caiu há muito a Torre de Santa Cruz.
Não se pode fumar no café onde explodiu
a botija de gás que arremessou a senhora
mexicana para os pés frontais do trolley-bus,
para aí 1970.
Nem o fumo já, nem a senhora mexicana,
nem nunca mais o instante-ano que foi
quando foi.
Vim a Coimbra dar as voltas de Camilo.
Apanhei o comboio de Ismael.
Tomarei café no café onde Francisco e Camilo.
Chamei-me Daniel.
7. Pronto
Coimbra, fim da manhã de 19 de Janeiro de 2008
Pronto, agora é a morte
por enquanto alheia, por
agora.
8. Praça da República – Um Soneto menos Doze Versos
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Merec’ isto talvez alguma soneto,
que a praça é taça d’ouro solar.
9. Praça da República – Um Soneto menos Dois Versos
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Condição mercurial do rio represo,
como um pranto nos olhos estancado,
rio eu enfim, imun’ e ileso,
não estou hoje p’ra tango, milonga ou fado.
Eu sinto-me bem, que o Sol decorre.
O tenro arvoredo sussurra segredos.
Já ninguém nos nasce ou nos vive, só nos morre.
Mas os exílios são benignos degredos.
Do mais que não escrevo, dizendo p’ra dentro
sigo eu em registo de fauna e flora:
esta é o plátano na praça ao centro;
aquela é a moça ao Sol, mas outrora.
10. Deles e Dela a M.
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Não so a noite escurecia os dias – ou não
tão ela quão
a memória deles.
E dela.
11. Lucro
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
O mundo de que te me perdeste perdendo-me
ganhaste.
12. Arte Poética – Uma Confissão Proteica
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Nunca sinto fome, que o coração trago no estômago.
13. Da Capo
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Se música for quanto escreva ou diga,
tu esquece-m’ o nome, lembra-m’ a cantiga.
14. E as Coisas Restantes
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
O meu mundo é português
nunca houve muito mundo no mundo
excepto para os marinheiros
e para os construtores de relógios
que na montanha fria
entre vacas que uberavam chocolate
com o mar sonhavam
e com o mundo
eu não tenho relógio
não dou chocolates
nasci português
poderia ter nascido vaca
e nesse caso
outros mundos ao mundo
etc.
15. Nos Sumus Sal Terrae
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008
Fecharam as lojas, à noite,
que a vida, comércio,
a si mesma encerra.
O tudo é vender, se o
que te não veio foi-te
dar de graça sem sal e sem terra.
16. L. T.
Coimbra, noite de 19 de Janeiro de 2008
Mais tempo se desconta a idade, menos
há-de contar.
É bom sabê-lo, no Café Santa Cruz,
Coimbra.
Vim aqui ver, de óculos escuros em a pálida cara,
os alfredos marceneiros locais.
O tempo em nós: condescontador.
Saldos somos
baratos:
liquidação total.
17. Cara ou Rosto, Boi ou Vaca
Coimbra, noite de 19 de Janeiro de 2008
As nossas caras circulam como moedas.
De borla as damos à despesa corrente.
Ter cara e parecer, é próprio de gente
que vivendo se custa e gasta em merdas.
Avoengos à nascença, nossos rostos
d’ início luzem mas depois s’ ofuscam.
À noite, como estrelitas, ’inda coruscam,
mas o mais são menos dias mais desgostos.
Mal nenhum, muita atenção!
Mal nenhum, que alguma é a ganhação!
De resto, o rosto é rasto e verso gasto.
Que boi ou vaca sendo, tudo é pasto.
18. Sessão Contínua
Caramulo, entardenoitecer de 21 de Janeiro de 2008
O universo prossegue em sessão contínua, segunda-feira.
Algures, um homem ama uma mulher.
À saída da escola, crianças riem escalas cromáticas.
Árvores fremem corações ventosos, verticais.
O mundo é verificável a partir de dentro.
Temos urbanizações ladrando janelas frias dentro.
Mulheres recolhem cinzentamente a casa.
O fim do dia parece-se muito com a vida.
A vila é breve como uma boca.
O coração é uma jóia encarnada.
Entre árvores e animais, é pública a solidão.
Meia dúzia de carros farolina a noite.
A pessoa fecha sete gavetas por chave.
Fecha-se em casa, cozinha, cheira a Lua.
As casas fecham as chaves das gavetas.
Os fetos pensam em rosé no sangue.
19. Talvez um Dia
Caramulo, noite de 21 de Janeiro de 2008
Talvez um dia, pela noite, um verso (digamos um verso) me situe de vez sob a Lua, mesmo que faça frio e faça frio viver.
20. Do Perfume Possível
Caramulo, manhã de 22 de Janeiro de 2008
A pessoa é a possibilidade.
Circunscrita, (de)limitada e sitiada embora pela legislação física (de que a psicológica é instante, posto que nada transcende a matéria), a pessoa é possível.
Os seres da vida pendulam, relógios individuais, autoportáteis cronómetros. Assisto a essas mutiladas ergonomias com a mesma atenção (e necessidade, também) com que em criança mirava os brinquedos. Ontem, por exemplo. Passava um funeral na rua. Vi o que nunca tinha visto: entre os três opa-irmãos da confraria (à frente, com a cruz) e o carro funerário, seguia o senhor padre no seu próprio carro. O padre ia de carro, o maralhal ia a pé. Uma brincadeira. Uma canalhice, enfim.
Dias de sol completo em pleno inverno. Auríferas jornadas que, por assim, dizer, perdoam. Doam e perdoam. A massa vegetal crepita em brandura. São frescas as sombras, sabe bem tactear o chão com os sapatos. O ferro do frio vibra na água dos tanques, mas derredor fulgura o desassombro da luz. Claro que a adesiva melancolia se não desprende dos olhos assim sem mais nem menos – mas a solaridade exerce, forte, seu ofício de organista de catedral. Não é já, nem ainda, a morte – mas a vida entretida a segregar pequenos verões na invernia.
Toda a noite fervilhei sonhos.
Um homem velho dizia-me, conspícuo, melífluo, que roubasse livros velhos abandonados em cadeiras de hotel.
Uma mulher com filha pequena olhava um centro de praça.
A mulher de um amigo meu, sentada à boca de uma lareira apagada, dizia-me Ele nunca está em casa Ele nunca está em casa.
Algumas vezes (raríssimas), sou abençoado pela falta de palavras. Continuo a achar que A palavra é o facto em lugar da coisa, mas por vezes a mundial solidão das coisas desnuda-se-me como um colo de cabeleireira morno nas costas. Sou feliz quando esses espelhos se me desvocabulam. Passa depressa – como tudo.
Sábado passado, em Coimbra. Possuído de meu mesmo andamento. Onde esteve gente que amei, sozinho estive. O mecanismo dos pretéritos era de uma evidência branca. Aquelas árvores, aquela praça, aquelas casas: sombra, sombra, sombra. Uma pomba oxidada num varandim, um choupo folheando o livro de si-mesmo, uma fonte declinando latináguas, um autocarro vazio como um búzio sem gravação de mar dentro, as lojas de comer e beber, as ladeiras abruptando asmas tabágicas, andadoras de sábados e de extintas cidades natais.
Restam algumas casas de pedra, mas era de madeira quem as construiu. Estiola a seiva, evanesce a madeira, que dura como pedra pareceu. Não mais.
Amanhã, talvez, descerei ao vale. Por enquanto, limpo as penas ao sol do cume. Veias sangram água pelas faces da terra-serra. A manhã acaba aqui, em casa esperam as coisas, descerrarei talvez os largos cortinados da sala, queimarei talvez um dedo quando botar o caldo a fervuras, dentro dos armários crescem as plantas mais carnívoras: sombra e esquecimento – seu frio perfume humano, pessoal, possível.
1 comentário:
Bonjour, voltei, como o vento, mas ao contrario...percebeu daniel?
Estive sem virtual, deu-lhe o fanico. Agora jà tehno a droga do canil, o alimento cozinhado, o seu delirio...nao leva a mal?
Tomara muitos , o numero 20, é a tal droga. Fico de lado, de cara ao lado. nem se respira para nao perder nada. é genial, de génio interior, de tripas com elas e eles, e sombras e anjos, e fumos e frio e queimaduras nos dedos.
Prontos, tenho de ir a vida, navegar..."os sonhos do mundo", pois, é perigose seguir os sonhos, meurtrier.
Agora é assim, jà nao se pode voltar atràs. Beijos
LM
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