Amanhã, 4 de Janeiro de 2008, n'O Ribatejo (http://www.oribatejo.pt/), mais uma.
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Mensagem de Ano Novo
Não recebi a mensagem de Ano Novo do senhor Presidente da República. Estava a fumar à chuva, posto na rua como um cão, de modo que as palavras do mais alto magistrado da Nação se me escaparam irremediavelmente. Não sinto qualquer angústia, ainda assim. Não é fácil acender o cigarro ao vento. Justiça, saúde, educação? Na porta aqui ao lado. Fiz uma panela de caldo verde, uns dias almoço eu, outros almoça a minha mulher. Sábado, não sei como vai ser. A minha mulher também não sabe. A mãe dela deu-nos um edredão este Natal. É quentinho. Enroscamo-nos na cama e esperamos que o sono nos perdoe. O último capitão de Abril é o Liedson, esse antifascista de balneário que enfrenta a ditadura com garras de leãozinho. A televisão está sempre no canal de desenhos animados por causa da gata: ela gosta de heróis japoneses. Às vezes, acontece-me parar na rua. Atrapalho o trânsito pedonal, respiro de boca aberta e futuro fechado. Tenho um livro de poesia alemã, ando com ele no bolso, raramente o abro. No fim do cigarro, ouvi duas valsas de Strauss tocadas pela Filarmónica de Viena de Áustria, mas a mensagem do senhor Presidente da República passou-me ao lado como uma carreira de escritor. A minha mulher, às vezes, olha-me e arrepende-se muito. Às vezes, vou ao cemitério ver a chuva a dar nos nomes de mármore. Talvez eu não seja do mesmo país que vós. Não sei. Sei tão poucas coisas. Conto estar vivo para o ano, o senhor Presidente da República também. O meu caldo verde não é dos piores. Ponho uma cebola ao pé das batatas, passo tudo com a varinha mágica, uso água da torneira por causa do meu optimismo incurável. A gata adormece, algures no Japão. A minha mulher circula pela casa como a música pelo ar. Eu não. Eu estou sempre na rua, fora da Presidência da República e fora do futuro, ao contrário de Rainer Maria Rilke, poeta da língua alemã no bolso dos cigarros.
1 comentário:
Gostei da crónica. Quanto à comunicação do senhor Presidente da República, não perdeste grande coisa.
Sei que não te esqueceste de agradecer o edredão à tua sogra, que, provavelmente, te ofereceu um "edredon".
Até por causa do teu novo edredão, a tua crónica devia ser de leitura obrigatória. Nomeadamente, pelos putos.
Ah, já me esquecia: a sopa faz sempre bem!
Abraço,
Manuel
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