Jogos Olímpios
O. “HOUVE RISOS”
“Houve risos. É o Olímpio.”
Eram 14h24 do dia 31 de Dezembro de 2007 quando recebi no telemóvel esta mensagem. Vinha do Rui Correia, um dos herdeiros do Olímpio que, na última manhã do ano passado, estiveram em Lisboa devolvendo-o à terra. Tive de telefonar ao Rui para dizer-lhe o quanto uma mensagem assim é A Poesia. O Rui disse-me para eu ter juízo. E eu tive: boto aqui a mensagem dele, que, sendo o que é, há-de decerto contribuir para que os versos que o Olímpio me causou, indo-se, me sejam perdoados com o brando riso da amargura.
1. A CONSULTA
A terceira madrugada do ano foi coisa que o vento trouxe.
Entre hiatos de chuva, a trovoada apedrejou de luz o papel preto do ar.
Mais negras que o ar foram as árvores à minha janela abertas como cartas.
Nenhum rumor humano tiritou na noite.
As casas de em torno tinham encerrado as pessoas como a animais.
Estive muito tempo a consultar a janela e a vida
– e fi-lo ao mesmo tempo a uma e a outra.
2. A FALA
Papéis falam pela casa.
Dentro de caixas, dentro de gavetas, pendurados de redes de aranhas, soltos pelos tapetes húmidos, na cozinha, na correnteza de frases que demovem as cozinhas e as latrinas, na impureza puríssima da nostalgia.
Falam mais na noite, mesmo de dia.
3. AS FOLHAS
Amarelecem e caducam as folhas
sem se sentir coitadas.
Deve ser bom ser vegetal,
ter sono e morrer no outono.
Nascem depois e são sempre
as mesmas de sempre, as folhas.
Conheço alguma poesia que gostaria
de ser como elas, as folhas
malucas, amarelas e caducas,
e verdes e novas e buliçosas.
Dá-lhes o vento de borla, brilham
ao Sol e à Lua, lembram-nos
calendários de bolso que não
é preciso trazer ao bolso.
Basta-nos trazê-las aos olhos,
como as noites serenas umas,
outras nervosas como os dias.
Sinto-as de noite contando pássaros.
Passam as folhas os dias a contar horas,
os anos a contar dias,
mas à noite contam pássaros
adormecidos, as folhas.
Nem carne as inflama, nem
osso as suporta: são a
pura existência, algo entre
a seiva e o ar.
Pelo chão, dão recados a uma
pobre humanidade, que as
varre, supondo-as lixo
do capricho da natureza.
Entendamo-las como rio ou
como murmúrio fluvial ao
menos. Claros espelhos de mão
são, bebedoras de água e de ar.
Quando todas de todo idas,
magros arbóreos esqueletos
deixam esperando-as.
Sempre voltarão.
Nós, que não, às folhas
esperamos sempre,
caprichosos e varridos,
coitados e olímpicos.
4. A ESTRADA
Estou parado à berma de uma estrada
que se não move nem comove.
Os pássaros não gritam tanto já.
Também eles se resignaram ao tempo de anos
desfeito.
Terrível e maravilhosa é a beleza, não
a paragem.
Também eu me resignei a couraçar o
peito.
Dou uma volta pelos campos, conto
os postes de alta-tensão, canto
nenhuma canção.
Nidifico nuvem nenhuma.
Há tanques de pedra com água fria.
Animais adormecidos há décadas na água
concedem ’inda algumas sombras pessoais.
Cavalos fumam oxigénio no alto,
entre fragas. O tempo passou tanto,
entretanto, que a Lua é diurna.
Folhas meninam correrias.
Pessoas velhas têm saudades das crias
que criaram, quando eu não parara
’inda e, cada dia, a estrada
ia.
5. E SE UM CAVALO
Um cavalo é um coração exposto.
Se ele pára, temos de ir a pé.
6. E SE ALGUÉM
E se alguém nos traz e leva a cavalo no coração?
7. MAIS FOLHAS
A nossa pobre beleza, a pobre graça nossa
de homens atirando os rostos para a frente:
belos, terríveis, maravilhosos cavalos pobres
na corrida parada, as folhas pelo chão
de alguma poesia, nosso vento de borla,
de graça.
8. O MENOS
Não podemos estar mais tempo.
9. O CASACO
Tenho vestido um casaco cinzento.
Estou sentado entre pedras cinzentas,
tenho um casaco cinzento, sou como
casaco e pedras.
Também tenho
de pedir perdão,
a cor é uma coisa que as crianças
escolhem enquanto podem,
antes do daltonismo e do alzheimer,
a vida, às vezes,
sim,
tenho-a.
Mesmo, ou ainda, que.
O. “HOUVE RISOS”
“Houve risos. É o Olímpio.”
Eram 14h24 do dia 31 de Dezembro de 2007 quando recebi no telemóvel esta mensagem. Vinha do Rui Correia, um dos herdeiros do Olímpio que, na última manhã do ano passado, estiveram em Lisboa devolvendo-o à terra. Tive de telefonar ao Rui para dizer-lhe o quanto uma mensagem assim é A Poesia. O Rui disse-me para eu ter juízo. E eu tive: boto aqui a mensagem dele, que, sendo o que é, há-de decerto contribuir para que os versos que o Olímpio me causou, indo-se, me sejam perdoados com o brando riso da amargura.
1. A CONSULTA
A terceira madrugada do ano foi coisa que o vento trouxe.
Entre hiatos de chuva, a trovoada apedrejou de luz o papel preto do ar.
Mais negras que o ar foram as árvores à minha janela abertas como cartas.
Nenhum rumor humano tiritou na noite.
As casas de em torno tinham encerrado as pessoas como a animais.
Estive muito tempo a consultar a janela e a vida
– e fi-lo ao mesmo tempo a uma e a outra.
2. A FALA
Papéis falam pela casa.
Dentro de caixas, dentro de gavetas, pendurados de redes de aranhas, soltos pelos tapetes húmidos, na cozinha, na correnteza de frases que demovem as cozinhas e as latrinas, na impureza puríssima da nostalgia.
Falam mais na noite, mesmo de dia.
3. AS FOLHAS
Amarelecem e caducam as folhas
sem se sentir coitadas.
Deve ser bom ser vegetal,
ter sono e morrer no outono.
Nascem depois e são sempre
as mesmas de sempre, as folhas.
Conheço alguma poesia que gostaria
de ser como elas, as folhas
malucas, amarelas e caducas,
e verdes e novas e buliçosas.
Dá-lhes o vento de borla, brilham
ao Sol e à Lua, lembram-nos
calendários de bolso que não
é preciso trazer ao bolso.
Basta-nos trazê-las aos olhos,
como as noites serenas umas,
outras nervosas como os dias.
Sinto-as de noite contando pássaros.
Passam as folhas os dias a contar horas,
os anos a contar dias,
mas à noite contam pássaros
adormecidos, as folhas.
Nem carne as inflama, nem
osso as suporta: são a
pura existência, algo entre
a seiva e o ar.
Pelo chão, dão recados a uma
pobre humanidade, que as
varre, supondo-as lixo
do capricho da natureza.
Entendamo-las como rio ou
como murmúrio fluvial ao
menos. Claros espelhos de mão
são, bebedoras de água e de ar.
Quando todas de todo idas,
magros arbóreos esqueletos
deixam esperando-as.
Sempre voltarão.
Nós, que não, às folhas
esperamos sempre,
caprichosos e varridos,
coitados e olímpicos.
4. A ESTRADA
Estou parado à berma de uma estrada
que se não move nem comove.
Os pássaros não gritam tanto já.
Também eles se resignaram ao tempo de anos
desfeito.
Terrível e maravilhosa é a beleza, não
a paragem.
Também eu me resignei a couraçar o
peito.
Dou uma volta pelos campos, conto
os postes de alta-tensão, canto
nenhuma canção.
Nidifico nuvem nenhuma.
Há tanques de pedra com água fria.
Animais adormecidos há décadas na água
concedem ’inda algumas sombras pessoais.
Cavalos fumam oxigénio no alto,
entre fragas. O tempo passou tanto,
entretanto, que a Lua é diurna.
Folhas meninam correrias.
Pessoas velhas têm saudades das crias
que criaram, quando eu não parara
’inda e, cada dia, a estrada
ia.
5. E SE UM CAVALO
Um cavalo é um coração exposto.
Se ele pára, temos de ir a pé.
6. E SE ALGUÉM
E se alguém nos traz e leva a cavalo no coração?
7. MAIS FOLHAS
A nossa pobre beleza, a pobre graça nossa
de homens atirando os rostos para a frente:
belos, terríveis, maravilhosos cavalos pobres
na corrida parada, as folhas pelo chão
de alguma poesia, nosso vento de borla,
de graça.
8. O MENOS
Não podemos estar mais tempo.
9. O CASACO
Tenho vestido um casaco cinzento.
Estou sentado entre pedras cinzentas,
tenho um casaco cinzento, sou como
casaco e pedras.
Também tenho
de pedir perdão,
a cor é uma coisa que as crianças
escolhem enquanto podem,
antes do daltonismo e do alzheimer,
a vida, às vezes,
sim,
tenho-a.
Mesmo, ou ainda, que.
Datas (tudo Caramulo):
0 – Fim da manhã de 7 de Janeiro de 2008
1e 2 – Noite de 3 de Janeiro de 2008
3 a 8 – Tarde de 4 de Janeiro de 2008
9 – Tarde de 6 de Janeiro de 2008
0 – Fim da manhã de 7 de Janeiro de 2008
1e 2 – Noite de 3 de Janeiro de 2008
3 a 8 – Tarde de 4 de Janeiro de 2008
9 – Tarde de 6 de Janeiro de 2008
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