Se ao corpo que és ou foste, digo, cinzelei o meu nome, digo,
não mais que não contados números contarão desse nome as letras.
Tão banal o cálculo quanto a ortografia quão algum amor,
digo.
Este mesmo caderno dentro de que guardo isto, digo,
mais de vinte anos esperou em branco numa caixa de papelão.
Antes o branco guardara, dizes.
Disseste.
2. À Passagem
Um carro de praça que passa levando
à vila do vale ’ma mulher antiga.
E eu levo a manhã calado mirando
a letra do mundo, do mundo a cantiga.
Faz sol, está frio, eu cinjo o casaco,
sigo rua a baixo do lado escuro.
Café ao balcão, troco p’ra tabaco
e ala de novo, o passo inseguro.
Levado ao vento do tempo que faz
(e desfaz, o sacana, o mesmo levar),
encoir’ o casaco, pareço rapaz,
um velho-menino que há-de passar.
3. Eu Deixo, Eu Vejo
Gladíolos e anémonas vegetam no papel:
poesia é trabalho da palavra vazia.
Recebo de dentro as emanações palavrosas,
não o mundo propriamente dito,
mas escrito.
Flâmula, gerânio, luminária:
que vária é a palavração
do mundo de si mesmo oco,
que tanto escreve e diz tão pouco!
Mas na consumpção da manhã alberga o ar certos ouros.
À volta do canteiro, crianças desferem gargalhadas.
Buzinam busílis vezeiros besouros.
E eu gosto de ver coisas palavradas.
Gosto. Uso muito, ’inda sem sorte, o passaporte
do verbo pela vida do mundo em flor.
É um lexicamor que sobe e é fundo.
E é grácil de graça, o grande estupor.
A palavra é sozinha como um lixo.
Ela usa usados corpos.
Eu deixo. Deixo-me nela, verboso.
Uso-a para meu fim, do vosso afim.
Ela estabelece o corpo: e suas roupas: e
seus frios.
Revoadas migrantes descem dos gelos árcticos
às parisienses cordaturas das vielas.
Açafrão inflama pus solar na comida fotografada.
Deriva de sua balsa o mesmo náufrago
que ao mar nunca se fez –nem fará.
(Também – nem mar há).
Eu vejo homens: cavalos de pau pintado em carrossel.
Vejo da futura viúva o dossel em tálamo.
Cortinados frapam aduções amolgadas
pelo zincovento de mercurial cor.
Vãos homens: verbais, portanto.
Morrem-nos os mortos seus silêncios.
E eu vivo deles, florais e hortênsios,
o mudo falar, o calado canto.
Nunca mais cometerei (sem ser aqui, no caderno) o crime
do porvir que só antepassa.
Há pouco até fiz, de um carro de praça,
levação de nome do cume estreme.
Gladíolos e anémonas.
4. Oração
Senhora nenhuma de todas as horas,
perdoa o frio da igreja do meu corpo,
o linho sujo de seu meu tabernáculo,
as suas flores murchas em adoração.
Perdoa também, já agora, a oração.
5. Procissão
Um rosto sépia m’exibo nos vidros dos cafés.
O nome entre licores, a escons’ opinião.
De cabeça se nasce, à frente os pés
completam no fim nome e procissão.
6. Ao Sol
Ao sol um pouco, uma vez na vida.
Ao sol um pouco, ainda uma vez na vida.
Ao pouco sol, uma vez na vidainda.
7. Enigma
Quantas, as tantas faces de um só rosto?
8. Idade
De casa de seus pais
desaparecem crianças.
Aconteceram-me tais andanças.
Nunca vim nos jornais.
Datas:
1. Caramulo, noite de 22 de Janeiro de 2008
2 e 3. Idem, fim da manhã de 23 de Janeiro de 2008
4 a 8. Idem, tarde de 23 de Janeiro de 2008
1. Caramulo, noite de 22 de Janeiro de 2008
2 e 3. Idem, fim da manhã de 23 de Janeiro de 2008
4 a 8. Idem, tarde de 23 de Janeiro de 2008
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