31/01/2008

Quem me Dera - Rosário Breve nº 37


Improviso nº 8 – O Trópico de Fevereiro
© Fernando Campos
http://www.ositiodosdesenhos.blogspot.com/

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É a crónica nº 37 da série Rosário Breve, esta semana n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt).
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Quem me Dera

Quem me dera ser mulher.
Se o (ou a) fosse, ser-me-ia legítima a ambição de me casar com José Sócrates: para que ele me fizesse, a mim sozinha, o que anda a fazer ao País. E eu seria feliz.
Sei muito bem que ele é tão socialista quão engenheiro. Mas mesmo assim. Casada com ele, eu seria bem mais alegre que um qualquer manel. Ao lado dele, mesmo que um pouco atrás no fotoprotagonismo, eu orçaria. Eu diria as coisas muito claramente. Eu nunca mais escreveria crónicas n’O Ribatejo.
Acho que já há operações para isso, mas também acho que não sou homem para me sujeitar a uma navalhada do, ou melhor, no género. Tenho pena, é claro, mas vou continuar a não-ser-homem-para-isso.
Enquanto envelheço, envileço. Ao balcão da Genoveva, rodo o cálice de ginja com o dedo do cachucho e digo mal de tudo menos dele, que um pobre não é obrigado a ser burro.
Quem me dera, porém, ser burra. Isto é: ser homem para ser mulher. Eu arejaria, muito translúcida, por esses dourados salões da popularidade sem povo. Eu sorriria bâton no marfim. Eu seria, inevitável e fatal, a página-três das melhores revistas piores. Sim, eu seria do piorio por tanto, e tanta, ser do mulherio.
Mas não. Vou continuar isto: um dos fatais ao balcão da inevitável Genoveva, a qual, fatal, desde que o manel dela lhe fugiu alegremente p’a sempre e p’a nunca mais, sabe muito bem que os homens a sério, como por exemplo José Sócrates, são como a ginja. Ou seja: só são bons com elas. Isto é: comigo.

30/01/2008

A Noite em Breve – capítulo 17

Casa de Manuel Fardinha e de Augusta Rendilheira sem Manuel e sem Augusta ,
Pedrulha do Campo, Coimbra, tarde de 25 de Dezembro de 2007.
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A NOITE EM BREVE – capítulo 17
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)


17
Caramulo, entardenoitecer de 31 de Agosto de 2007

Tivemos em casa o Adelino, a Adelaide e o João Correia: uma tarde feliz.
Na pastelaria, pelo entardenoitecer do último dia do último Agosto deste ano, assisto a uma cena formosa. Éramos só dois clientes, cada um em sua mesa. Aos vinte para as oito, começou a final da Supertaça Europeia: Sevilha vs. Milan, um encontro marcado pela homenagem ao recente falecimento de um jogador da equipa andaluza, Puerta. Já era formoso e comovente os jogadores de ambas as equipas usarem no braço um fumo negro e, nas costas, abaixo dos nomes individuais e dos números, o nome do malogrado rapaz. Comentei isso com a patroa da pastelaria, Mónica. Voltei à minha mesa e sentei-me para dividir a atenção entre o que vos escrevo e o jogo. Foi então que entrou no estabelecimento o irmão do outro cliente. São meus vizinhos, moram no rés-do-chão. Cumprimentaram-se beijando-se as faces: que bonito!
Lembro-me de ter, outrora, escrito:

A minha vida é menor do que o mar.

Confirmo isso todos os dias enxutos. Também é menor do que a montanha – e do que a rosa: viver. Uma braçada de azevinho colada ao peito, o perfume das leituras, a mulher nua em palco, os acidentais amores de banco traseiro de automóvel – tudo, apesar de tudo, menor do que a rosa, a montanha e o mar.
Recordo a tarde em que o meu irmão Jorge me franqueou os bastidores do, antigamente, Teatro do Príncipe Real, depois Avenida e agora nada, em Coimbra. Ele desenhava e pintava, por pouco dinheiro, alguns reclamos publicitários que a gerência contratava e mandava agravar ao pano de palco. Nos bastidores, em salas esquecidas por tudo e todos menos por ele e pelo pó, demoravam os restos mortais de uma escola conimbricense. Havia arquivos entre os despojos: relatórios, onomásticas então (quando?) jovens e agora (quando?) extintas; havia répteis sorrindo em éter os sorrisos dos homens enfrascados como aquele em me tornei, lagartos nadadores do hialúrgico oceano dos frascos de ciências naturais; carimbos; lápis (que recolhi); e pó. Também o meu irmão Jorge está hoje no éter – mas não nos bastidores, que eu não deixo: o Príncipe Real verdadeiro é ele, carago.
O Tempo. Seu consumo de ar-árvores. Seu consumo de teatros, príncipes, cidades, dias. Noites. Seu consumo. Sua consumpção. Sua mortal beleza mortífera e rediviva. Chamar eu a um dos muitos seres – e entre eles, enquanto.
Lembro-me de ver chover num lago: água aceitando água. O berlinde azul, aveludado pelos grandes frios fixadores de constelações, aceita miúdos como nós, para serviço de formiganço e perplexidade. Formiguei – e formigo – como toda a gente: vendo água chover água. Havia mesas fixas em torno do lago. Bancos fixos, também, à terra. Vazias, vazios: as mesas, as casas. Recordo a eternidade efémera da minha visão. Recordo a eternidade não efémera das águas. A gente pode destruí-las quimicamente, que elas retornarão a água sem nós. Em éter se refarão as águas que estragámos – digo eu, que nada sei.

29/01/2008

A Noite em Breve - capítulo 16

Continua a saga pseudodiarística de
A NOITE EM BREVE
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)


16
Caramulo, entardenoitecer de 30 de Agosto de 2007

É pela vitalícia morte do dia – chora de suspensão de cristais. Escrevo para não pensar imediatamente no imediato – a necessidade de outro emprego para o dia, que recompense o esforço e a dedicação com um pouco mais de dinheiro. Escrevo para me inventar um crepúsculo melhor.
Vejo homens que não estão. São, não estão – como ideias. Vi uma mulher que estava. Estava e era: à janela, catando uma planta de vaso, colhendo flores mortas que o Sol tinha bebido até à sede. Sei que tem cinquenta e quatro anos. Também vi, passando, uma rapariga de duras tetas de cadela apontado em frente de sob a camisola encarnada. Era bonita e leve – e há-de ser o amor distraído de alguém. Gosto destas festas lentas, destes paulatinos bailes. Se calhar, até da vida gosto – e nem sempre isso me ocorre. Sou algumas palavras, nem sempre estou.
Lapsos do dia profissional permitiram-me a observação de imagens: um homem de barba e olhos muitos belos com um gato ao peito; um homem a um balcão arengando às massas uma metafísica de bebedouro; um mapa desenhado a lápis de cor; uma mulher defunta aos cento e um anos; um torso feminino nu e em sombra; um cão guardando uma criança como um anjo daltónico; o mesmo homem do gato, sem gato e escrevendo à máquina; um pássaro de cor e corpo de pó de carvão; um barco pejado de emigrantes noruegueses de 1908; a lista de víveres individuais desses homens, mulheres e crianças; um carro branco com um cão fechado; uma palavra azul cujo significado é verde; uma boca inteira e calada como uma pedra; um lagarto dentro de uma gaiola; o rosto do lagarto como se o de um cão dentro de um carro branco cujo significado não é azul.
Sobre a mesa, crepusculares, os objectos pontificam em solitária humildade: o cinzeiro, o copo, a garrafa, o coiso dos guardanapos de papel. Uma pintura volumétrica eles oferecem. Olho os objectos. Quando os não olho, olham-me eles. Atentos cumpridores da material percepção, os objectos nascem descoroçoados para viver mais – e vivem – do que nós. Está bem assim.
Recordo um desfile em Coimbra. Era 1974, o ano cristão. Tinha havido uma suave zaragata de metralhadoras com cravos em Lisboa. Morreram quatro pessoas na Rua António Maria Cardoso, todas do lado errado: coisa pouca, mínima, de nada. Em Coimbra, umas semanas depois, houve o desfile. Equiparam de camisolas brancas e calções amarelos uma multidão de crianças. Desfilámos pelas ruas direitinhos ao nosso futuro – isto. No fim do desfile, pediram-nos de volta camisolas e calções, o branco e o amarelo. Eu devolvi e vim para isto. Talvez tenha sido antes da tal revolução, já não sei.
Também recordo uma chuvada ocre num fim de tarde. Era vivo um amigo mais antigo chamado Ernesto Santos Lucas. Estávamos a ver a vida acontecendo à nossa volta: os preços do minimercado, o retorno a casa da escriturária da fábrica de porcelana, o vento na crista das laranjeiras, a angústia do Belenenses, a rodada de tintos. Choveu muito, de repente – e muito depressa. O Sol assomou a ocidente numa sangria de laranjais – e a vida tornou-se ocre. Água e luz patinhavam como crianças alvoroçadas por sua mesma – repentina, depressiva – felicidade.
Recordinvento (minto ou sinto, não sei) um crepúsculo de Outono. Era por uma encosta ervada. Subia-se, descia-se, recolhia-se da creche a criança, subia-se aos ombros a criança, a criança assumia o pai como um primeiro-andar-poderoso, corria com ela às cavalitas até que ela gritasse de pura euforia. Eu era poderoso. Era em milnovencentosenoventequalquer coisa, coisa-pouca, coisa-tudo na minha mais absoluta mentira: a minha vida. Era no Outono. O meu trabalho era ir buscar essa menina branca, correcta, linda e limpa como uma face de azulejo passada a aguarrás. Os objectos na mesa.
A noite, agora. A noite sempre justa de todas as noites. A humanidade mais desumana: a atenção que nos presta a noite. Objecto lançado de veludo (negro veludo, estrelas de xerife) sobre nós: homens parados dentro de casas a caminho, descendo.
Objecto lançado devoluto: estrelas de xerife para meninos que não matem índios nem comam merda. Meninos apenas meninos: antes das patilhas brancas, depois da fadiga sexual, durante a lírica travessia da vida.
A onírica travessia da ávida.
A telúrica maresia almorávida.
A barbitúrica sinestesia almóada.
As coisas que tudo dão para nada.
Estou, agora: já não sou. A noite é: é, não se deixa estar sem mais aquelas. O ideal consiste em ter um clube, um mármore lavado a mal húmido pano, um serviço de copos e umas colunas com jazz. Mas a vida já não traz muito jazz? A vida trazz muito jaz? Está certo assim.

28/01/2008

Plantas Olham Mulheres



1

A manhã das coisas em penumbra na sala.
Fora, a praça ardendo à graça do Sol.
Algumas pessoas enxotadas da alegria como cães.
Alguns cães parecidos com pessoas na idade.

O ar é frio, ressuma das pedras.
Plantas em vasos olham dos varandins.
A mortalidade exerce musgos nas estátuas.
Pombos pensativos demandam frinchas na calçada.

Um restaurante abre-se ao domingo de ninguém.
O balconista boceja a falta de famílias.
Uma gravata gorda pulsa-lhe cor na garganta.
Os preços das coisas numeram a penumbra.

2

Sobre nós vigora a natureza da passagem.
Tem dos velhos fluidos a mecânica antiga.
As lojas amarelecem seus outonos particulares.
Plásticos electrificados não deixam dormir as árvores.

Quando as pessoas querem, o rio é visto.
Bálsamos acodem aos olhos, à pele.
Onde os salgueiros molham os olhos, também as pessoas.
Pelas margens, cães suportam a sede.

De repente, uma criança e uma maçã convivem.
Num saco de pano, a velha leva pão velho.
Estou aqui, mora-me a cabeça outro sítio-tempo.
E toda a vida a vida se faz este exílio.

3

Outra vez virão os ventos dar a rosa deles.
Saudaremos o mar interior deles.
Na árvore dentro de nós, os ramos do sangue ainda.
E lâmpadas nos serão os olhos cada noite.

Entretanto a manhã triunfa.
Extensões de erva pastam a luz.
Um cedro é de si mesmo votiva vela verde.
Num pátio, um cão ladra moralidades.

Anjos enxotam pombos na praça da estátua.
O homem de casaco encarnado encerra a igreja.
Em baixo, fugindo, uma palmeira tosse som.
A ponte espera deitada na já-tarde como uma mulher.




Versos: Abraveses (Viseu), início da tarde de domingo, 27 de Janeiro de 2008

Fotografia
: Caramulo, fim da tarde de 27 de Janeiro de 2008

25/01/2008

ASAE-vos uns aos outros

Esta é a crónica nº 36 da série Rosário Breve, a partir de hoje, 25 de Janeiro de 2008, n' O Ribatejo (em papel e em www.oribatejo.pt).

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ASAE-vos uns aos outros

As “notícias” são inequívocas: estamos na mira do terrorismo. Internacional? Sim. Mas do nacional também estamos. Na mira da mouche.
Explico-me: ele há dois terrorismos. Um é o bom. O bom é sempre cristão. Cristão e nosso. O outro é o mau, que nunca é cristão, muito menos nosso. O mau é sempre o de lá de fora. Por exemplo, o do Paquistão, país sobre o qual cheguei a fazer cópias e redacções na escola primária daquele tempo em que o senhor Presidente da República de então, almirante Américo Thomaz, usava sapatilhas brancas como uma enfermeira anacrónica e apardalada.
O terrorismo bom é o de cá. É o do moçárabe António Nunes, também por exemplo, esse senhor que apenas fuma cigarrilhas de jackpot e que só deve sonhar com colheres de pau e outras islamices do género.
Que Mafoma abomine o toucinho, vá que não vá: também nós queimámos, em alegres e popularuchos autos-de-fé, as irradiações gentias do Porco Sujo. Que a Mourama ainda não tenha percebido o teor humano das mulheres, não vá que vá: nós por cá, tirando talvez o BCP, até as deixamos trabalhar de cabeça descoberta, sobretudo para as termos por conta. Agora que a Cristandade continue gerando antónios-nunes e cigarrilhas, não me parece bem.
Na raiz profunda da cisão entre “civilizações” (a boa, que é a nossa, e a péssima, que é a deles) estão vários factores: as telenovelas da TVI, o preço do sabão azul, a RTP Memória e a proibição do SG Gigante quando a Lua fecha as Portas do Sol.
Como moro num sítio sossegado, o único terrorismo a que estou sujeito é o consumo imoderado de ginjas ao balcão da Genoveva, uma senhora que criou os catorze filhos com biberões de vidro verde rolhados a cortiça e desrolhados com os dentes. Tirando isso, tudo é tranquilo. Os milícias do senhor António Nunes nunca aqui vieram nem hão-de vir, até porque nós olhamos os lírios do campo e sabemos que o nosso reino é deste mundo. Como nunca passámos um fim-de-ano em casino algum, jamais confundimos o mau-maria com o Maomede. Nem enfermeira com sapatilha.

24/01/2008

Fragmento Futuro para A Noite em Breve

Da esfe(é)rica Lua a prata mansa (e, fria,
que mana a não terna eterna desumanidade)
recolho eu ao mês o mesmo dia
que, só, todo é noite, nocturn(a)idade.
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Caramulo, tarde de 24 de Maio de 2008

Dicções à Passagem

1. Dicções

Se ao corpo que és ou foste, digo, cinzelei o meu nome, digo,
não mais que não contados números contarão desse nome as letras.
Tão banal o cálculo quanto a ortografia quão algum amor,
digo.
Este mesmo caderno dentro de que guardo isto, digo,
mais de vinte anos esperou em branco numa caixa de papelão.
Antes o branco guardara, dizes.
Disseste.



2. À Passagem

Um carro de praça que passa levando
à vila do vale ’ma mulher antiga.
E eu levo a manhã calado mirando
a letra do mundo, do mundo a cantiga.

Faz sol, está frio, eu cinjo o casaco,
sigo rua a baixo do lado escuro.
Café ao balcão, troco p’ra tabaco
e ala de novo, o passo inseguro.

Levado ao vento do tempo que faz
(e desfaz, o sacana, o mesmo levar),
encoir’ o casaco, pareço rapaz,
um velho-menino que há-de passar.



3. Eu Deixo, Eu Vejo

Gladíolos e anémonas vegetam no papel:
poesia é trabalho da palavra vazia.
Recebo de dentro as emanações palavrosas,
não o mundo propriamente dito,
mas escrito.
Flâmula, gerânio, luminária:
que vária é a palavração
do mundo de si mesmo oco,
que tanto escreve e diz tão pouco!

Mas na consumpção da manhã alberga o ar certos ouros.
À volta do canteiro, crianças desferem gargalhadas.
Buzinam busílis vezeiros besouros.
E eu gosto de ver coisas palavradas.

Gosto. Uso muito, ’inda sem sorte, o passaporte
do verbo pela vida do mundo em flor.
É um lexicamor que sobe e é fundo.
E é grácil de graça, o grande estupor.


A palavra é sozinha como um lixo.
Ela usa usados corpos.
Eu deixo. Deixo-me nela, verboso.
Uso-a para meu fim, do vosso afim.
Ela estabelece o corpo: e suas roupas: e
seus frios.
Revoadas migrantes descem dos gelos árcticos
às parisienses cordaturas das vielas.
Açafrão inflama pus solar na comida fotografada.
Deriva de sua balsa o mesmo náufrago
que ao mar nunca se fez –nem fará.
(Também – nem mar há).

Eu vejo homens: cavalos de pau pintado em carrossel.
Vejo da futura viúva o dossel em tálamo.
Cortinados frapam aduções amolgadas
pelo zincovento de mercurial cor.

Vãos homens: verbais, portanto.
Morrem-nos os mortos seus silêncios.
E eu vivo deles, florais e hortênsios,
o mudo falar, o calado canto.

Nunca mais cometerei (sem ser aqui, no caderno) o crime
do porvir que só antepassa.
Há pouco até fiz, de um carro de praça,
levação de nome do cume estreme.

Gladíolos e anémonas.



4. Oração

Senhora nenhuma de todas as horas,
perdoa o frio da igreja do meu corpo,
o linho sujo de seu meu tabernáculo,
as suas flores murchas em adoração.

Perdoa também, já agora, a oração.



5. Procissão

Um rosto sépia m’exibo nos vidros dos cafés.
O nome entre licores, a escons’ opinião.
De cabeça se nasce, à frente os pés
completam no fim nome e procissão.



6. Ao Sol

Ao sol um pouco, uma vez na vida.
Ao sol um pouco, ainda uma vez na vida.
Ao pouco sol, uma vez na vidainda.



7. Enigma

Quantas, as tantas faces de um só rosto?



8. Idade

De casa de seus pais
desaparecem crianças.
Aconteceram-me tais andanças.
Nunca vim nos jornais.



Datas:

1. Caramulo, noite de 22 de Janeiro de 2008
2 e 3. Idem, fim da manhã de 23 de Janeiro de 2008
4 a 8. Idem, tarde de 23 de Janeiro de 2008

22/01/2008

Vinte para Duas Plantas Carnívoras

1. Um Transcurso Viseense
Viseu, tarde de 18 de Janeiro de 2008

Se queres assistir ao transcurso da vida, que não a tua nem o teu, sai à rua e assiste. Não saberás os nomes, mas nomearás.

A mulher de pêra rolimaciça, a calça justa afundada em vistosa bota de couro castanho com orelhas: Eunice. O andar de Eunice torna rítmica a pedra que calça há séculos a rua.

O homem de botins baratos e rubicundas fauces, a cabeça engelhada e nua como um cotovelo, o cinto estrangulando a base da barriga, que bochecha líquidos como um colchão-d’água: Vital. Vital anda devagar e rente às montras para não empatar o trânsito pedonal e o transcurso da vida.

Tu, digo, marcha no sentido contrário ao do movimento maior. Crescerão para ti os rostos. Até que o ar da passagem lhes tome o lugar, os rostos crescerão para ti como flores doentes e distraídas.

Não te compararás a ninguém. Por desnecessidade te não compararás, pois que a igualdade das vidas confrange muito os viventes.

Quando muito, correlaciona o que trazes vestido com as roupas que passam. As golas altas que enforcam os baixos pescoços. Os dólmanes repetidos que militarizam velhos e crianças sem qualquer noção do ridículo. O lençarafat do militante de esquerda que come hambúrgueres onde era uma livraria. Que vestirás tu, amanhã?

Ambula e deambula, não receies a brevidade: a da ambulação como a da vida. Não receies porque te bastará uma dor para que longa te seja a vida.

Onde acabam as sapatarias, subirás pela esquerda até desaguares no largo suspenso pelo Sol. Lerás

ESTA CAPELLA HE DO POVO QUE SE FEZ
A CUSTA DAS ESMOLLAS DOS DEVOTOS
ANO DE 1742.

E obolorás

ESMOLLA PARA AS OBRAS DE
N. SENHORA DOS REMEDIOS.

Havendo contribuído para a farmácia das almas e dos pobres, seguirás tua mesma obra, cuja pobreza haverás de recompensar com alma. A tua, transcursora e nomeadora; e frívola e tristonha. O Sol tem mais dez minutos no largo, não tarda é noite, recolherás a casa dentro de tua roupa, como já por então o terão feito Vital e Eunice e toda a gente.

2. Pátio
Regresso Viseu-Caramulo, tarde de 18 de Janeiro de 2008

Eu não sei.
Falo por mim.
Vejo as marcas.
O que marcam, não sei.

Um piano no coração enquanto pudermos ser perpétuos.
Um coração feito de cordas e incêndios.
O pensar dá-se a compêndios
o mais das vezes obsoletos.

Ainda assim.
Não saber, digo, é uma glória.
Diz-se – e fica dito
para que se saiba.

Temos uma árvore de veias dentro.
Uma ferrovia de mercadorias por
que pagaremos.
Ninguém nos pagará, mas
ninguém nos podará, também.

Nunca mais houve crianças no meu pátio,
que se tornou um pátio só, sem crianças
que o aumentassem a estádio, pradaria,
láctea via que
nada nem alguém vê,
já,
mais,
nunca.

Isso, sei.

3. Uma Volta a Vermoil, Certa Quinta-Feira
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008

Para o Daniel Ponte, Filho-Neto

À direita, na chuvinha, um quintal de erva.
Laranjeiras sobem do pátio por ourivesaria.
Nas costas, a igreja tange bronze gravado em cassete.
É o funeral da Senhora Avó, que Mãe de netos foi.

O silêncio calca os passos medidos do féretro.
A Junta de Freguesia diz que as campas não.
Que as campas não podem.
Não podem ter mais.
Ter mais do que dois metros de comprimento
por um de largura.
Até morrer tem de levar alvará,
sabe Deus lá.

A senhora olha de cera o último céu.
A irmã do Daniel dá rosas:
rubras metade do ramo, amarelas a outra.
É ouro de atirar à cova em sangue.

Na igreja, findo o serviço, o Daniel tenta a leitura.
A leitura sempre fez mal ao mundo.
As pessoas nunca deveriam
nem ler nem morrer
nem viver para isso.

A Avó-Mãe, julgamos, teve uma vida feliz.
Um alvará feliz, julgamos.
Deu o coração todo contra a morte.
A morte só pôde levar o corpo,
há coisas que não leva antes
de nos levar a nós,
os que julgamos,
nós,
os que damos,
amarelas,
rubras,
rosas de laranjeiras que sobem,
quando desce a chuva,
quinta-feira,
era meio-dia e tal,
em Vermoil.

4. O. J. N.
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008

Ainda se pode tocar nos muros, estão
quentes do sol do dia.
Não digo o dia, choveu tanto hoje.
Digo o dia dum muro ao sol, talvez
em outra vida una,
não esta vária,
ainda.
Ou já não.

5. Quinze, Terça, Caramulo-Coimbra
Caramulo, noite de 18 de Janeiro de 2008

Nasceu Matilde, filha de Isabel e de João.

6. Em C., com C., I., F. e D.
Coimbra, fim da manhã de 19 de Janeiro de 2008

Quando o país da manhã se acaba, resta
o deserto da tarde, que é preciso demandar
até que a cidadela da noite suba.

Estou pelo fim da manhã. Todo o país
dela devassei, recebendo dos rostos
a fadiga própria, a eles dando a minha
e o meu.

Esta é Coimbra, a minha cidade.
No regresso breve, verifico que as lojas antigas
fizeram como fazem os pássaros: mudaram
de ramo.

Restam algumas escolas no deserto.
Caiu há muito a Torre de Santa Cruz.
Não se pode fumar no café onde explodiu
a botija de gás que arremessou a senhora
mexicana para os pés frontais do trolley-bus,
para aí 1970.
Nem o fumo já, nem a senhora mexicana,
nem nunca mais o instante-ano que foi
quando foi.

Vim a Coimbra dar as voltas de Camilo.
Apanhei o comboio de Ismael.
Tomarei café no café onde Francisco e Camilo.
Chamei-me Daniel.

7. Pronto
Coimbra, fim da manhã de 19 de Janeiro de 2008

Pronto, agora é a morte
por enquanto alheia, por
agora.

8. Praça da República – Um Soneto menos Doze Versos
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

Merec’ isto talvez alguma soneto,
que a praça é taça d’ouro solar.

9. Praça da República – Um Soneto menos Dois Versos
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

Condição mercurial do rio represo,
como um pranto nos olhos estancado,
rio eu enfim, imun’ e ileso,
não estou hoje p’ra tango, milonga ou fado.

Eu sinto-me bem, que o Sol decorre.
O tenro arvoredo sussurra segredos.
Já ninguém nos nasce ou nos vive, só nos morre.
Mas os exílios são benignos degredos.

Do mais que não escrevo, dizendo p’ra dentro
sigo eu em registo de fauna e flora:
esta é o plátano na praça ao centro;
aquela é a moça ao Sol, mas outrora.

10. Deles e Dela a M.
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

Não so a noite escurecia os dias – ou não
tão ela quão
a memória deles.

E dela.

11. Lucro
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

O mundo de que te me perdeste perdendo-me
ganhaste.

12. Arte Poética – Uma Confissão Proteica
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

Nunca sinto fome, que o coração trago no estômago.

13. Da Capo
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

Se música for quanto escreva ou diga,
tu esquece-m’ o nome, lembra-m’ a cantiga.

14. E as Coisas Restantes
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

O meu mundo é português
nunca houve muito mundo no mundo
excepto para os marinheiros
e para os construtores de relógios
que na montanha fria
entre vacas que uberavam chocolate
com o mar sonhavam
e com o mundo
eu não tenho relógio
não dou chocolates
nasci português
poderia ter nascido vaca
e nesse caso
outros mundos ao mundo
etc.

15. Nos Sumus Sal Terrae
Coimbra, tarde de 19 de Janeiro de 2008

Fecharam as lojas, à noite,
que a vida, comércio,
a si mesma encerra.
O tudo é vender, se o
que te não veio foi-te
dar de graça sem sal e sem terra.

16. L. T.
Coimbra, noite de 19 de Janeiro de 2008

Mais tempo se desconta a idade, menos
há-de contar.
É bom sabê-lo, no Café Santa Cruz,
Coimbra.
Vim aqui ver, de óculos escuros em a pálida cara,
os alfredos marceneiros locais.
O tempo em nós: condescontador.
Saldos somos
baratos:

liquidação total.

17. Cara ou Rosto, Boi ou Vaca
Coimbra, noite de 19 de Janeiro de 2008

As nossas caras circulam como moedas.
De borla as damos à despesa corrente.
Ter cara e parecer, é próprio de gente
que vivendo se custa e gasta em merdas.

Avoengos à nascença, nossos rostos
d’ início luzem mas depois s’ ofuscam.
À noite, como estrelitas, ’inda coruscam,
mas o mais são menos dias mais desgostos.

Mal nenhum, muita atenção!
Mal nenhum, que alguma é a ganhação!

De resto, o rosto é rasto e verso gasto.
Que boi ou vaca sendo, tudo é pasto.

18. Sessão Contínua
Caramulo, entardenoitecer de 21 de Janeiro de 2008

O universo prossegue em sessão contínua, segunda-feira.
Algures, um homem ama uma mulher.
À saída da escola, crianças riem escalas cromáticas.
Árvores fremem corações ventosos, verticais.

O mundo é verificável a partir de dentro.
Temos urbanizações ladrando janelas frias dentro.
Mulheres recolhem cinzentamente a casa.
O fim do dia parece-se muito com a vida.

A vila é breve como uma boca.
O coração é uma jóia encarnada.
Entre árvores e animais, é pública a solidão.
Meia dúzia de carros farolina a noite.

A pessoa fecha sete gavetas por chave.
Fecha-se em casa, cozinha, cheira a Lua.
As casas fecham as chaves das gavetas.
Os fetos pensam em rosé no sangue.

19. Talvez um Dia
Caramulo, noite de 21 de Janeiro de 2008

Talvez um dia, pela noite, um verso (digamos um verso) me situe de vez sob a Lua, mesmo que faça frio e faça frio viver.

20. Do Perfume Possível
Caramulo, manhã de 22 de Janeiro de 2008

A pessoa é a possibilidade.
Circunscrita, (de)limitada e sitiada embora pela legislação física (de que a psicológica é instante, posto que nada transcende a matéria), a pessoa é possível.

Os seres da vida pendulam, relógios individuais, autoportáteis cronómetros. Assisto a essas mutiladas ergonomias com a mesma atenção (e necessidade, também) com que em criança mirava os brinquedos. Ontem, por exemplo. Passava um funeral na rua. Vi o que nunca tinha visto: entre os três opa-irmãos da confraria (à frente, com a cruz) e o carro funerário, seguia o senhor padre no seu próprio carro. O padre ia de carro, o maralhal ia a pé. Uma brincadeira. Uma canalhice, enfim.

Dias de sol completo em pleno inverno. Auríferas jornadas que, por assim, dizer, perdoam. Doam e perdoam. A massa vegetal crepita em brandura. São frescas as sombras, sabe bem tactear o chão com os sapatos. O ferro do frio vibra na água dos tanques, mas derredor fulgura o desassombro da luz. Claro que a adesiva melancolia se não desprende dos olhos assim sem mais nem menos – mas a solaridade exerce, forte, seu ofício de organista de catedral. Não é já, nem ainda, a morte – mas a vida entretida a segregar pequenos verões na invernia.

Toda a noite fervilhei sonhos.
Um homem velho dizia-me, conspícuo, melífluo, que roubasse livros velhos abandonados em cadeiras de hotel.
Uma mulher com filha pequena olhava um centro de praça.
A mulher de um amigo meu, sentada à boca de uma lareira apagada, dizia-me Ele nunca está em casa Ele nunca está em casa.

Algumas vezes (raríssimas), sou abençoado pela falta de palavras. Continuo a achar que A palavra é o facto em lugar da coisa, mas por vezes a mundial solidão das coisas desnuda-se-me como um colo de cabeleireira morno nas costas. Sou feliz quando esses espelhos se me desvocabulam. Passa depressa – como tudo.

Sábado passado, em Coimbra. Possuído de meu mesmo andamento. Onde esteve gente que amei, sozinho estive. O mecanismo dos pretéritos era de uma evidência branca. Aquelas árvores, aquela praça, aquelas casas: sombra, sombra, sombra. Uma pomba oxidada num varandim, um choupo folheando o livro de si-mesmo, uma fonte declinando latináguas, um autocarro vazio como um búzio sem gravação de mar dentro, as lojas de comer e beber, as ladeiras abruptando asmas tabágicas, andadoras de sábados e de extintas cidades natais.

Restam algumas casas de pedra, mas era de madeira quem as construiu. Estiola a seiva, evanesce a madeira, que dura como pedra pareceu. Não mais.

Amanhã, talvez, descerei ao vale. Por enquanto, limpo as penas ao sol do cume. Veias sangram água pelas faces da terra-serra. A manhã acaba aqui, em casa esperam as coisas, descerrarei talvez os largos cortinados da sala, queimarei talvez um dedo quando botar o caldo a fervuras, dentro dos armários crescem as plantas mais carnívoras: sombra e esquecimento – seu frio perfume humano, pessoal, possível.

21/01/2008

Coiso & Coiso - nº 35 da série Rosário Breve

É mais uma croniqueta para O Ribatejo (www.oribatejo.pt) - em papel e em linha desde sexta-feira, 18 de Janeiro de 2007.

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Coiso & Coiso

“Informação não é sabedoria.” Assim diz uma personagem de John Le Carré (em Single & Single, obra de 1999). Está certo. Todo o emissor de informação deve ficar por aí: pela emissão. É ao receptor que cabe a eventualidade de, assimilada a informação, a transformar, ou não, em saber. Isto está certo noutros sítios do mundo. Em Portugal, está visto que não.
Todos os dias, a comunicação social (a séria, a ética, a mais ou menos independente e profissional) emite sinais informativos de importância maior. E todos os dias o País se borrifa alegremente para a gravidade do factos que lhe são expostos. Somos um país pintor: estamo-nos nas tintas para o que nos borra a pintura.
Ao correr da pena, folheio aleatoriamente os jornais da manhã de terça-feira. (Nota: quase já não ligo nem a nem à televisão, pois que mais e mais desacredito nos “conteúdos” superficiais da caixa mais ilusionista do que mágica.) Que me informam os jornais? Um ror. Um horror. Exemplos?
O actual presidente da Lusoponte, quando no Governo em 1994, assinou com a mesma Lusoponte o “monopólio da exploração de tudo o que fosse ponte”. (M. A. Pina, JN, pág. 64.)
Alterações ao Código de Processo Penal comprometem, segundo os magistrados, o combate à “criminalidade violenta e altamente organizada” e à “criminalidade económico-financeira”. (DN, pág. 65.)
Em Murça, um cartaz-outdoor que responsabilizava o presidente da Câmara e o primeiro-ministro pelo encerramento da urgência foi retirado. Ordens do cacique local. (Público, pág. 7.)
Governo encaixa 50 milhões de euros com “engano na precisão da taxa de inflação para o ano passado”. (CM, manchete e pág. 22.)
Devolvo os jornais à banca, peço um café e digo-vos que, de facto, estou mais informado, mas não mais sábio. Tu também não, decerto, digníssimo leitor meu.
Nem tu nem eu sabemos como se chama o presidente da Lusoponte. Muito menos o da Câmara de Murça. Olha, tratemo-los por Single & Single.

18/01/2008

Um Outro Hoje e Outros /seguido de/ As Tainhas

No Verão de 1981, o meu Pai comprou-me uma Underwood velha
(in As Tainhas, 14)


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Na entrada de hoje, 18 de Janeiro de 2008, alguma versalhada do mês corrente e, ainda, uma coisa chamada As Tainhas - quinze parágrafos que remontam, já, ao dia 2 de Abril de 1999. Coisa de outro século, portanto. Insiro As Tainhas por me parecer uma prosa que sintetiza alguma das obsessões por assim dizer eidéticas do que vou sendo e fazendo. Nada de importante.

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Recordações assim vivas são provavelmente sintomas de desordem.

Saul Bellow,
in Herzog




I. UM OUTRO HOJE

Recordo o dia de hoje. Um hoje qualquer.
Uma estação de correios bocejando selos.
As árvores além do quase nada de cá.
A noite anterior e a próxima juntas ao fim da manhã.
O corpo intransitivo, efeito de si mesmo.
Nenhuma causa para içar como a um pavilhão pirata.
Um pássaro muito pequeno povoando sozinho uma árvore.
Um televisor narcótico distraindo velhos.
O torso aquoso de uma mulher terrena.
O estanho vitalício da chuva.
Fumando ao longo de uma rua deserta, entre árvores videntes e candeeiros quase cegos, visão de uma loja de louças – profusão impressionante de cacos decorativos e utilitários. Entre jarras e terrinas, a nota enternecedora de brinquedos antigos: jamais vendidos mas nunca expulsos.
Um gato preto de peitilho branco: elegância de casino.
A ordem disto tudo.



II. TEM DE DAR

1


Reparo na imaterial solidez das pessoas.
Falo das poucas – quase nenhumas – que reconheço pelas ruas, pela cabeça.
Ondulam cortinas interiores nos olhares velados.
Algumas mulheres compensam a efemeridade psicológica com a imponência das nádegas e com a bandeja láctea do colo.
Adolescentes cinquentões persistem na calça de ganga e no blusão de couro.
Persisto eu no reparo da solidez imaterial dos corpos olhados que não vêem.
Entretenho-me com a minha mesma banalidade.
É inócua e inodora: dá versos, não dá mais nada.

2

Nem mais nada tem de dar: prosaicos versos.
Assiste-se ao vento nas árvores, mais forte quando dá de noite.
Diz-se, não se diz.
Por vezes, é a palavra que escolhe um gajo.
A palavra, a fórmula.
Estas coisas assim.



III. MANHÃ PLUVIAL E DEPOIS


Ouvia o mar na montanha,
via-o vir lá de longe.

Wolfgang Bächler, Há-de Vir a Água


1

Atravessa-nos a manhã pluvial o corpo.
Não podemos dizer: É a primeira vez.
A noite antiga mora ainda na manhã nova.
Estamos todos no inverno há muitos anos,
há muitas manhãs.

Em casas cerradas, as mães não esperam, agem.
Sagram o lume na pedra negra.
Apresentam o vinho e o pão, tratam do porco,
falam com as galinhas, adoram o canário.

Pelos montes, os homens perdem-se.
Não sabem que fazer de tanto olhar.
Olham-nos as pedras, sabe-os a terra.
Terra e pedra esperam-nos ao cabo do inverno.

Cabras e gatos fulguram na erva, hirsutas flores móveis.
Badala o vento seu bronze transparente.
Nem aves nem crianças habitam a nocturna manhã.
Nós só registamos tudo, alguns.

O frio endurece-nos de jade as orelhas.
A boca é-nos canivetada.
Aduncam-se-nos as mãos andorinheiras.
Queimamos os pés, a sul esquecidos.

Não diremos: Nenhuma alegria.
A vida tem mais vidas, também.
É preciso registarmos a vida toda toda a vida.
Não sabemos porquê, à chuva.

Sempre aqui estivemos.
Mudamos de nome e de corpo,
mudamo-nos no mesmo, outros.

E o canário, muito viva cabeça, ri-se do porco.

2

O céu desce à terra a ser mar
para que, andanadando, possamos voar.

3

As folhas pelo chão, as pessoas pela avenida
– e umas e outras pela noite –
são as mesmas coisas ao mesmo da mesma maneira.



IV. TUDO É DIZER

1

Há uma semana que não faço a barba.
Um homem daqui disse-me que plantou repolho e cebolo.
Está a pensar construir uma estufa para o tomate.
Veio da feira a pensar nisso.
Diz que prefere o Verão ao Inverno.
Troco as boas-tardes com um carpinteiro que foi norte-coreano.
Há muitos anos que se refugiou aqui.
Já vi móveis feitos por ele – belíssimos, fortes, tudo de madeira antiga.
Ele é baixo, parece feito de louça.

Eu não faço móveis.
Envelhecem como nós as portas que fechamos?
Sim.
Envelhecemos de não fazer?
Sim.
A barba, por exemplo.

2

Que amor pode um eu ser em ti?
Que tua ideia minha posso sentir?
Escrevo hoje, noutro caderno, uma pessoa num comboio.
Alheio (imune) a amores, não sabe.
Não sabe que amor não pode ser plural.
Não pode ser plural sem se matar.
É como desejar felicidades.
Felicidade nunca foi plural na vida.
Quão feliz podes ser sem um eu?
Sentimentos?
Os meus, então, sentimentos.

3

Vou hoje dizer-te da montanha.
(
Não sei se já ta disse alguma vez.
Envelheço, julgo inovar no que repito
.)
A montanha está viva sobre a vila.
É uma grande pessoa deitada de lado.
Temo (ou espero) que um dia ela se ponha de pé.
Que um dia, mexendo os ombros, a escombros
nos resuma.
Enquanto não, amanhamos dela as entranhas.
Pedra, fruta, legumes, gado, imagens, casebres: ela dá.
Ela dorme de múltiplas cabeças.
Ela respira névoa.
Poucas mulheres, menos ainda homens: ela tem.
As mulheres caprinam, tasquinham, ardem.
Os homens aguardam as jóias das hortas.
Não imitamos os animais: não fazemos filhos.
Acima de tudo, tudo na montanha é descer.
Também: na montanha tudo é dizer.




Datação (tudo Caramulo):

I. Um Outro Hoje: noite de 16 de Janeiro de 2008
II. Tem de Dar: fim da manhã e tarde de 16 de Janeiro de 2008
III. Manhã Pluvial e Depois: manhã e tarde de 15 de Janeiro de 2008
IV. Tudo é Dizer: tarde de 10 (1) e manhã de 11 de Janeiro de 2008 (2 e 3)

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AS TAINHAS
números do Abril 1999


não costumo por norma dizer o que sinto
mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa

Ruy Belo


1

E com a epígrafe ficaria tudo dito, não fosse o caso de eu, como toda a gente, persistir na perseguição de qualquer coisa nova para dizer. Mas restam ainda coisas veramente novas? Por uso de pessimismo, costumo dizer que não, mas a verdade é que escrevo livros. Ele há coisas, as coisas são velhas, mas a dicção pode ser nova. A linguagem é velha e revelha, as formas, os géneros e os teores literários são velhos, mas, de uma maneira estranha (mágica, claro) a pessoa (a boca da pessoa, a mão da pessoa) é sempre recente.

2

Vê o que acontece, por não inocente exemplo, com o amor. Tema pisado, bem e mal tratado. Assunto de película americana, telenovela brasileira e/ou soneto de Camões etc. E vai-se a ver, eu nunca tinha escrito um livro com as duras asas do amor. Que fiz? Apertei-o no meu sangue, não permiti que ele tomasse conta deste livro. Totalmente não? Não. O amor está nas páginas, mas recusei que lhes desse a forma. Aproveitei-o, parasitei-o. E assim, amando, escrevi como se não bastasse amar.

3

Muralhei-me sempre de livros. Andei pelo Thomas Mann (e ainda ando). Vi o trabalho que a cabeça alemã puxou até que nascesse A Montanha Mágica. Lembro-me, no dia-a-dia, de situações desse livro. Como se se passassem naquilo a que chamamos, por nítida incerteza de vocabulário, realidade. Já conheci Os Buddenbrook. Escrevo estas palavras em 1999, mas no bolso esquerdo do casaco palpita-me a edição portuguesa de um voluminho de Mann de 1919: O Cão e o Dono. Se hoje escrevo livros, não é, evidentemente, porque nunca tenha havido livros, mas porque só posso conhecer verdadeiramente (e ultrapassar verdadeiramente) aquilo que escrevo. Quando leio obra alheia, reconheço-a minha. Nesse sentido, posso chamar-me Hans Castorp. Ou Bashan, por que não?

4

O livro que dediquei aos Homens-Cantores surgiu-me num comboio. Os comboios não são inocentes na minha vida. Transportaram-me o conhecimento do tempo, da perda, da transitoriedade, da dor, da luz e da noite. Há uma incidência surpreendente nos comboios: as mulheres lindas. Em 1988, na linha suburbana Figueira da Foz-Coimbra, uma rapariga havia que descia, para mal da minha vida e da minha poesia, no apeadeiro da Abrunheira. Era quase, o apeadeiro, o meu nome. Eu achava essa coincidência uma espécie de destino. Achei mal.

5

Quem é que disse que a vida está constantemente a transformar-se em literatura? O García Márquez, quase de certeza. Esse monstro. Em 1982 (ou princípios de 1983), arrastado pela voracidade publicitária do Nobel, entrei numa livraria de Coimbra (a Novalmedina) e comprei Cem Anos de Solidão. Fui trucidado pelos dias da leitura. Aí estava tudo o que eu queria, aí estava o que agora tenho: a noção maravilhosa de que se pode morrer e continuar feliz. Se se escreve assim (se se lê assim), a vida não é mortal.

6

O mesmo com Julio Cortázar, autor mágico também. O melhor tratamento das obsessões humaníssimas, a mais refinada inteligência posta, não contra o Homem, mas em prol do entendimento do Homem. Uma rapariga (como podia não ser?) emprestou-me, ano pouco depois do meu conhecimento de Gabo, um volume de contos do enorme argentino enorme. Eu já então lia como um possesso. Pensava eu. Possesso, possesso mesmo, fiquei de Cortázar. Eu digo-lhe, minha senhora: Todos os Fogos o Fogo, Bestiário, Um Tal Lucas, Rayuela, Blow Up, sei lá.

7

Os livros são importantes? São. Dão crédito aos meus dias e às cargas viárias dos meus dias: o amor pelo amarelo, a cerveja, o prazer de ouvir falar bem, a tontura em consequência de Bach, minha senhora.

8

Não costumo por norma dizer o que sinto”? Meia verdade. Somos sinceros até quando deliberadamente nos aldrabamos. Recorremos ao postiço com naturalidade. Está-nos na civilização. Cristo era um pobre teso. As igrejas são folhadas a ouro. Ou nas bibliotecas: tantos livros maravilhosos, e os funcionários mortos de sono. As contradições são, também elas, dicções. Sinto isto.

9

O meu Pai contava-me histórias. Eram as obsessões dele: viver numa montanha, ouvir a chuva no colmo da nossa choupana, beber café fervido sobre fogo de lenha. São as minhas histórias, agora. Não as racionei, não as racionalizei. Não tenho mais nada para contar. Tenho andado a escrevivê-las.

10

O make me a mask” – Dylan Thomas fez o verso, epigrafou-o Cortázar no pórtico do conto chamado O Perseguidor, esse feixe de páginas maravilhosas que o argentino fez para reviver o saxofonista Charlie Parker. Também quero a minha máscara – e tenho-a: é a literatura que posso. Tudo fundo (de fundar e de profundo): páginas-máscaras próprias e alheias. Exemplos? Oh quantos! Nemésio e Steinbeck escrevendo sobre o prazer material que resulta da preparação dos materiais da escrita: canetas, resmas de papel, máquina de escrever, tinta permanente, lápis, tudo. Repego no período: “N. e S. escrevendo sobre o prazer material que resulta da preparação dos materiais da escrita…” – jogar, jogar, jogar com a escrita, o poder palavroso.

11

A escrita? O poder palavroso? Tudo sinónimos de Italo Calvino. A formosura daquela inteligência. O brilho (o esplendor) pensativo. A fundíssima gnose do ofício (nele, vero ofício) literário: escritor, conselheiro editorial, epistemólogo, cidadão, bicho, viajante, Palomar. Calvino no comboio, eu no comboio, os homens sentados na tarde da estação de comboios. Isto é possível quando eu, por norma, etc.

12

Era miúdo. Eu era um menino. O estômago transformava-se-me num aquário baço. Era a dor emocional. Eu sentia. O mundo não era necessário. O estômago era suficiente. Ainda hoje escrevivo com o estômago. Mas dou-lhe polimentos: ao estômago e às palavras de aquário que saltam dele como tainhas.

13

Tenho de escrever, quanto mais não seja para não perder a mão, as palavras da minha vida. Peço de antemão o perdão possível: Laranjeira, Precisamente, Teor, Ouro, Inteligência, Norma, Pardo, Noite, Mãos. Tenho de parar. Receio esgotar as palavras. Corre risco a minha própria vida. E morrer? Não é morrer o ficar sem palavras?

14

Digamos que escrevi um livro dedicado a uma senhora. Ninguém perguntou nada à senhora. É, evidentemente, um mau livro de amor. Não é por aí, porém, que estou a ir. O que me interessou, foi chegar a esta falsa pompa de explicador de literatura: da boa (a dos outros) e da minha (que é também dos outros, como o é de minha senhora). No Verão de 1981, o meu Pai comprou-me uma Underwood velha, uma máquina preta em liquidação de escola de dactilografia. Foi antes da informática. Copiei sonetos e prosas para papel amarelo. Os textos antigos (Pierre Nordon a propósito de Conan Doyle, Camões sobre Dinamene e Lianor, António Sérgio em amável polémica com Joel Serrão) reviviam no tiquetaque da máquina de escrever. Disse “tiquetaque”. Como o tempo. Com a máquina Underwood, o meu Pai deu-me o Tempo. Por magia, ei-lo, ao Velho, nesta folha, redivivo. Literatura, claro.

15


As tainhas. Peixes malquistos pelo pescador à linha. Não prestam para comer: muitas espinhas e sabor à babugem lubrificante dos barcos ancorados. Mas serviram-me para dar imagem e título à toleima destas explicações não encomendadas. E para que eu pudesse, sentindo amor, falar de tainhas.

2 de Abril de 1999

17/01/2008

Três Alíneas para Ver se a Gente se Estende

1) Toda a gente tem um blog.
Só Deus tem um bGod.

2) Vale muito mais não saber o sentido da vida do que passar a vida em sentido.

3) Não existe Filho-da-Puta que mereça a Puta-que-o-Pariu.



Ámen, Caramulo, agora, 19h42m da noite de 17 de Janeiro de 2008

16/01/2008

A Noite em Breve – 15 (fragmento)

The Blue Hour
© Joel Meyerowitz (BaySky, 1984)

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A NOITE EM BREVE
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)



15
Caramulo, tarde de 29 de Agosto de 2007


(…) Escrevi um único verso, o dia todo.
Agora, penso na arrumação da biblioteca. Vou viver serões onomásticos, operar fronteiras de género, separar dicionários, reorganizar arquivos, alojar fotografias.
Agosto acaba. Mês fraquinho, insulso, desinteressante. Preciso de voltar ao livro dos anjos terminais. Mesmo sem andar a escrevê-lo, continuo a vê-lo. Preciso de passar dois dias em Coimbra: embora seja múltipla, a cidade do livro tem muito da minha. Necessito de andar por onde andam esses anjos que depois recolherei em um café, finalmente expostos e revelados. Preciso de trabalhar muito nisso.
Também tenho pensado no corpo – nisto que somos, que cada um é. E tenho, como toda a gente, pensado mal: por pensar que o pensamos a ele, ao corpo. Não: é ele quem nos pensa. Porque ele pensa-se. Inventou, até, um alter ego a que chama, por graça e por ironia, eu.
Eu sei (ele sabe) que é a idade a tornar-mo, ao corpo, tão presente. Uma vez, por indirecta exposição, disse dele (do corpo, de nós, do corpo de todos nós, de nós todos em corpo) isto:

saco de vísceras apertado em cima pelo olhar

e não errei. Em Pombal, bebendo cerveja com o meu querido amigo Adelino Correia, que é médico, converso muito acerca disto. Ele ensina-me coisas do saco de vísceras, com aquele olhar dele. Digo-lhe das minhas experiências, ele diz-me coisas das fichas dele: não há toque rectal que nos não faça pensar na alma.
Sob a mesa da pastelaria, descalço-me. Em meias finas, os pés liberados gemem um agradecimento que chega a ser comovente. Operários exaustos, humílimos, estes sulistas irmãos das mãos são quase tudo o que temos de verdadeiro. A ligação à terra é deles. Percebem muito melhor o mar do que as mãos. O coração a eles desce tantas vezes – nunca por acaso.
Recordo um cão amarelo num monte verde-cinza. Panasco, espargos, rosmaninho, trevo – o cãozito circulava dentro de cheiros vegetais, a que ele unia a fragrância puríssima da micção. Recordo esse cão – tinha olhos de menino depressa de mais devindo velho: aos doze anos de idade, era um octogenário que agradecia ainda o meu amor, cuja intimidade só pude repetir para com as minhas filhas. Esse cão foi uma pessoa em absoluto grau de pureza. A mãe dele também foi minha: isto é, também à mãe dele, como a ele, pertenci. Ela tinha olhos emoldurados a negro por um rímel cleopátrio, nefertítio. Era de uma beleza poldra, pulcra, maneirinha de ancas, de tetas pudendas e inumeráveis. Andava como se dançasse – e dança ainda, viva, no meu salão de mortos (bufete à disposição, frisas, serviço de bengaleiro, jazz-band). Ele nasceu gémeo de um ser de pêlo preto, que ofereci ao dono de um restaurante situado na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, Coimbra (a que voltarei para ver anjos). Ofereci-o e voltei ao amarelo. Dei-lhe um nome adjectivo: Canino. A vida dele instituiu a melhor dúzia de anos da minha vida. Invernos, sol, sestas no monte, passeios, brincadeiras: tudo isto nos aconteceu de acordo com Darwin. Eu levava uma manta de padrão escocês, uma almofada, um livro. Ele levava a cor amarela. Num canto inclinado do monte, entre arbustos, deitávamo-nos. Ele beijava-me uma mão, recolhia-se-me aos pés e adormecia de imediato, fulminado pela santidade dos cães amarelos. Eu lia alguma coisa, fechava o livro e procurava-o, adormecendo também. Encontrávamo-nos no sono: outro monte, nenhuma idade, nenhuma separação, eu amarelo, ele com um livro. Não quero hoje, quando durmo, que ele suspeite, sequer uma unha ou um segundo, da falta que me faz. Também o meu Pai era amarelo, também rosmaninhava, também morreu com apenas doze anos. E o meu irmão também, aos trinta e um.
Agora, a luz licoriza-se. Sobe da terra a noite, essa planta azul coalhada de prata e estrelas de xerife. Descomunal planta, iniciática sempre, sempre terminal. É a hora a que, à sua mesma solidão, acorrem os fantasmas. Vestem roupa de vidro, transrepentinam no cristal derradeiro da última luz, ampliam detalhes botânicos e calcários à passagem: tudo deformam à cinepassagem. Pessoas e personagens não diferem: a vida, por diferida, sim. Mas há o último sol nas últimas casas da primeira montanha, longe o mar, barcos revestem aves para navegar acima de toda a esperança, laranjais ocorrem, encosta nascente, como assaltos de ouro, padres aposentados procuram Deus e vermes no horto ladeado de poços e paredes caiadas. Sinto, no ar eléctrico, os telefonemas que, por uma bebida e uma sexualidade, fazem fervilhar os cabos aéreos. É quarta-feira, setembriza-se já o charco de sangue lilás na praia de postal, não quer ninguém envelhecer sem uma cara nova que, à lasanha e ao gintónix, ouça a história velha: a do nosso corpo contada por ele-mesmo. Agora, à procura de luz.
Ou agora, procurando: as velhas palavras que, por putice pura de novidade, querem surgir para ser linhas. Olha comigo, toma os meus olhos: janela de pastelaria, o castanheiro, quieta explosão de si mesmárvore, fiel à sua solidão de raiz, bruto de pedra, lindo como um nascimento perpétuo, amarelo.

14/01/2008

Um Trabalho Oratório – prosa dominical

© Jerry Uelsmann – Small Woods Where I Met Myself 1967

http://www.masters-of-photography.com/

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I

Ameaça o domingo ser eterno.
A chuva arrefece as mesmas pedras.
Escoradas de lume, as casas resistem.
Torcem-se de gelo, labaredas, as árvores.

Ontem, o mundo não era isto.
Não era este ontem o mundo.
Eu digo: o mundo ontem era outro.
A noite tocava-o todo ao mesmo tempo.

Ontem é que mundo foi eterno.
A noite amou-o bem e todamente.
A noite era de raposas e laranjeiras.
O dia agora é uma ameaça de dia.

Eternidade? Uma soma de ontens.
Poucos animais à vista do domingo.
O silêncio das pedras sob a chuva.
Os olhos abertos, fechados os livros.

Habita-me a prosa a vida toda.
Toda a vida é o pouco tempo todo.
Trabalho duramente a pedra: a prosa.
Hei-de portanto merecer a noite.

A noite escrita escreve raposas.
Escreve laranjeiras em si dentro.
O telefone desligado no bolso do coração.
Nenhum desejo e nenhuma garantia.

Uma malga de caldo pulsando nas mãos.
Os livros dormindo de pé na madeira.
O esplendor da árvore dançando, só, ao vento.
A lonjura oferecida pela varanda indiferente.

Voltarei por um dia à cidade perdida.
A nova arquitectura confirmou a morte da infância.
Prédios no monte outrora mundial.
Pastelarias, lojas de ferragens, floristas.

Famílias instantâneas como cubos de galinha.
Nenhum amor e nenhuma agonia.
Eu digo: agonia nenhuma, nenhum amor.
Regressarei rapidamente da cidade.

Uma ideia de rosas perfuma o bebedor de café.
A manhã acabou-se, é já a eternitarde.
O bebedor de café trabalha o mármore.
É um trabalho oratório, não uma prece.

Não há a quem pedir, não há.
Mas também o que não há, é.
A palavra é o facto em lugar da coisa.
E a palavra chuva arrefece as pedras palavrosas.

Ontem à noite não escrevi, só vivi.
Era já tão pouco, viver.
Senti a rumorosa raposa, a laranjeira amarga.
Guardei-as para hoje, bebido o café.

Devo ter procedido bem: chove.
Este é o meu corpo, só.
Há mais mundo depois da varanda.
Escorei de lume a casa, calei-me.

Falam as coisas delas a ausência.
Como desconhecer quão o ausente é presente?
Não, hoje nem sequer falo dos mortos.
Dos vivos falo: eternos, rápidos.

E no entanto amo.
Amo contra mim.
Trabalho a pedra duramente.
O amor trabalha-me duramente.

Nenhuma religião me assiste que a da gramática.
Posso ser um ele pronominal.
Nenhum deus e nenhum santo.
Um anjo apenas verbal.

Recebo muito.
Dou tudo o que posso.
Percepção, recepção e entrega.
Pareço o homem do gás.

Os olhos apresento enxutos.
Levam-me os olhos as mãos a ver.
Já tenho a mais de dias devolutos.
Nenhuma noite eu hei-de mais perder.

Um homem do Lar escreve versos.
Possa
sempre o amor
ser ingénuo
.

Assim escreveu ele no caderno dele.
Veio mostrar-me estes versos.
A mim, que sou da prosa, só.
Copiei-os para que a poesia me visitasse, no domingo.

Dou-me horas, empresto-me anos.
Por uma tarde sou feliz na caligrafia.
Do mar da noite tenho sido marinheiro.
Em terra, entre arrefecidas pedras pluviais.

Dou-me laranjeiras à chuva.
Suspeito raposas nocturnas no dia.
E sinto sempre a grande alegria.
Viver também perfuma a palavra.

Rilke, diz Paulo Quintela, escreve
À Música
em 11-12 de Janeiro de 1918,
depois dum concerto privado
em casa de Frau Hanna Wolff
. Música para Rilke:
como o outro / lado do ar.

Era isto, sim. O habitante pedreiro.
Trabalhar as palavras arrefecidas pela chuva.
As palavras suspensas da eternitarde de domingo.
Foi para isto que vim, estou, irei.

Quando subia de carro na noite a vi.
A raposa que ruiva ardia toda rubra.
Bonita como um desenho de menina.
E, como uma menina, carnívora e materna.

Andei depois pela encosta aurificada de laranjeiras.
Da nascente sangrava álgida a ribeira.
Sentei-me numa pedra redonda, não quis o sol.
A terra cega como o céu me bastava e bastou.

E depois dormi e vi-as.
Vi as medusas respirando água.
Transparentes florações de vidro respirando.
Respiratórios espelhos como água dos olhos, elas.

Vi-as com esta prosa que ora, não pede.
Eu não peço.
Vejo medusas escritas por raposas escritoras.
Laranjeiras transparecem doces como água do mar.

É muito belo (é muito forte) poder isto.
Homens de sobretudo com chapéu rondam sombras.
Carros eléctricos zunem na cidade retornada.
Pastelarias e agonias e amores e não-posses.

E o coração transversal de quando chove.
Hoje chove, é domingo todos os poucos dias.
É o meu tempo? É o vosso também?
Medusas e músicas e mulheres alheadas.

Ao ombro porto o corvo gramático.
Telemáquico não mais por pai partido.
Escoa-se-me a infância, eterna, rápida.
Urbanizaram o monte, abriram pastelarias.

Abelhas e estrelas partilham mel e coalho.
A cidade zune nos carros do não-retorno.
Já não sou dado nem a preces nem a à infância.
E no entanto amo.

Sim, temos o coração a um tiro de pedra.
Somos tantas vezes uma pedrada para baixo.
Um vento nas cortinas da árvore provindo.
O nome faia, o nome olaia, o nome pedra.

Turva doçura acidulada, a chuva perante.
A passagem que se faz pedra de ruas.
O restaurante chinês, os gatos urbanos.
E a bandeira nacional murcha pendendo.

Vidrinhos cristalinos pespontam os olhos.
Os olhos das pessoas são lonjuras.
Estrelas atiradas fundo no céu vital.
Mortais e mortíferas – e tão vivas.

A boca amarga couros.
O sexo é oposto, tal contracanto.
A arte da fuga é nascer.
O retorno é da morte a arte.

À minha cidade voltarei, breve.
Colherei, leve, dela as vielas.
Mijos de gato e restaurantes orientais.
E todo o amor e toda a agonia.

Entretanto se fez dia.
Mereço eu ainda a vossa noite?
Pablo McCartney bebendo cerveja preta com o pai.
E o gelo ardendo mármores de famílias.

Nós amamos todos, todos ausentes.
Acolhemos as marés como a correio.
Gente, nós nos mesclamos entre gentes.
Não temos senão a chuva de permeio.

Leva-me a boca aos olhos, a boca.
Transporto astralinas condições.
Vicejam os punhos como encolhidas rosas.
Já os joelhos articulam palavritas úricas.

Úricas, únicas palavrinhas prosaicas.
Para isto vim, estou, irei.
Ranja um sino sobre campos de fumo.
Além-campos-d’água um bronze reboe.

Tudo por um deus seja inventado.
Um inventado deus num susto de mijo.
Nascemos? E ninguém nos perguntou nada?
Morremos? E ninguém nos respondeu nada?

Vi homens molhados e verdes través a chuva.
Vinham da guerra, não sabiam falar.
Queriam um pouco de lume que não matasse.
Não queriam viver, só lume queriam.

As mulheres corvoavam os homens regressados.
Cheiravam a fundas arcas sem alfazema.
Penelopavam ânsias extintas, o cão à porta.
Tinham perdido os homens na guerra.

Regressaram outros, os que vi.
Li-os, sombras tartamudeadas de vielas.
Caçavam sombras, as sombras.
Putas e chulos esperavam libertar-se da vida.

Andei depois pelas encostas aurificadas.
O meu irmão voltou a ser o homem.
A pedra garante-o, garante-o o mármore.
Duas datas e uma boca, nenhum olhar.

Tão poucas coisas merecem pessoas.
Nenhuma morte e nenhum nascimento.
Um rapaz velho demandando lousas.
Ele demandando o atlas.

Um atlas em que o mar
era tão azul
como depois nunca mais vi
– isto é Wolfgang Bächler.

Bächler foi a Coimbra em Junho de 1977.
Claro está, traduzido por Paulo Quintela.
Na tarde do dia 2 desse-mês-desse-ano,
leu na Casa Alemã o que tinha a dizer.

Que estranha é a simplicidade, amor.
Que estranha coisa é lembrar noutra cabeça.
Barcos tocam a pedra com a boca.
Peixes galinham gordos sob iridescente óleo.

À boca da barra, toca frio o barco antigo.
Antiga-nos a mãe na cozinha evacuada.
Dependuram-se ’inda azulejos ’ninos.
E o coração menos de si mesmo é amigo.

É talvez a felicidade.
Uma malga de caldo, o lume.
Um gelo voador. Uma idade.
Raposas e laranjas; e prosa e perfume.

II

Mereci a noite: ei-la.
Fruto dá atender a prata.
A prata e os diamantes-charcos do chão.
O frio e as hirtas laranjeiras.

É a hora das raposas, rápidas flamas.
A hora de que suspendo verbais arames.
Casas tossicam fumos, casais velhos.
Ao óleo da pedra, chuva chamarei.

Que ainda chove: pó d’água.
Pinceladas plúmbeas ocorrem altas.
E o vale afunda suas mesmas casas.
Diademas entornados como azeite duro.

Poucos homens, algumas mulheres, crianças nenhumas.
Fauna é tão pouco, supera de flora.
A escola apagada, cerrada a igreja.
Uma de nenhuma, a hora é agora.

Já vi das avenidas diferidas o néon.
Táxis sulcavam o próprio rasto.
Em casas antigas cantava o bolor.
Animais de seda atiravam janelas.

Contrário a si mesmo é o posto sexo.
O género de um homem que se faz espécie.
Leis da natura obrigam à demanda.
E os livros não ajudam, antes pelo contrário.

Dou-me minutos bons de luz tão pouca.
Vale a pena trabalhar.
Sair de casa com um casaco estreito.
Deitar andamento e sombra: pedra na pedra.

Água no gelo, na pedra a água.
Mui palavrosa é a compostura.
Eu tenho atendido pessoas na rua.
Eu não espero, nem peço, nem falo sempre.

Venha de onde vier a inclinação mesma.
Um pouco de calor, uma chávena meia.
Um rasto de areia a um vento de furna.
E o vapor da presença na ausente ideia.

De si mesmo a ausente ideia.
Um sino na campanha foragida.
Ter tido uma cidade, uma infância.
Uma morte linda e uma vida feia.

E não ser um filho-da-puta mais.
Mais um apenas desses filhos, não.
Ser um homem encostado às próprias cordas.
Sim. Mas um filho-da-puta mais, não.

Já viu um homem tão bonitas coisas.
O cliente do ausente barbeiro mirando-se, espelho.
A mulher dos canários entre coelhos.
A água regelada em arcas de pedra, ao sol.

Já vi eu tão bonitas coisas.
O céu cor-de-sabão-operário.
A azulibranca espumação do verde.
Os pés entremeados de finíssima areia d’ouro.

Nunca te busquei e encontrei-te nunca.
Nada vale recordar pães e poemas.
Dos aeroportos, a gaze vocálica não ecoa.
E tudo é viagem para quem fica.

Tudo é azeite para quem bruxuleia.
Em casinhotos escuros segrega a moral suas babas.
Faz-se um filho contra a aflição.
E a aflição nasce feita com o filho.

Andei antes por encostas purificadas.
A terra cheirava a gemas especiosas.
Havia culturas gentias, frias e lavradas.
O tudo dava laranjas, raposas e rosas.

Dei por mim em avenidas frias.
A chuva tinha-nos dado: a elas e a mim.
Voltei devagar ao que rapidamente mudou.
Não encontrei o sítio – a mim, sim.

Um toque de cânfora na asa narina.
Que não te cheire a morto, nem a vida.
Circula tu, frio e nu, pela avenida.
O que for, virá, maré, cor-de-marina.

Eu já fui menino, tive meninas já.
Tive duas meninas, tão pouco tempo.
Mais tempo tive eu menino, ainda.
Recordo, muito me esquece, cada momento.

Usam os pés canivetes próprios.
Enforca o mesmo sangue cordas de veias.
Além de ninguém, máquinas-de-costura.
Máquinas-de-ler, máquinas-de-esquecer.

Digo eu: não torres os mortos como a café.
Não os esqueças, mas não os torres.
O amor fundamenta-se na memória outra, a ingénua.
E memorizar é esquecer lembrança alheia.

Sim, é. A cabeça do pai. O rosto da mãe.
Amas mortos a que só agora chegas, vivendo.
Em 1920, um condutor de eléctricos vai ser teu avô.
Vai? Não vai. Treze anos só será pai de teu pai.

Esse homem de olhos azuis, 1880-1930.
Quem é o teu avô, esse ele não pronominal?
Avô-árvore. Pai de pai sem mulher-mãe ainda.
Pai de nada, pai de um morto, domingo chove.

Certo. Acertamos contas. Sei. Pouco.
Calma. Eu trabalho a pedra.
Digo pouco. Tenho uma gramática.
Tenho tudo. Tenho nada. Uma gramática.

Os anjos voejam, varejeiros, as janelas.
Cheira-lhes a árvores e à minha vida.
A minha vida é boa: varejeiras chama.
Pouca fauna, nenhuma flora senão toda.

É como o tempo. É como se tivesse de ser.
Os músicos pisam madeiras cruas.
Depois ficam à espera do milagre.
O milagre é a memória passar da cabeça às mãos.

Como o outro / lado do ar
possa sempre / o amor
ser atlas e azul
e no entanto.


Caramulo,
fim da manhã, tarde e noite de domingo,
13 de Janeiro de 2008

11/01/2008

O Exemplo do Boavista

Segue-se a crónica nº 34 da série Rosário Breve, no glorioso O Ribatejo (www.oribatejo.pt)

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O Exemplo do Boavista



Qual é a diferença entre os adultos que somos hoje e as crianças que hoje nascem? É esta: nós não temos onde cair mortos, elas não têm onde nascer.
Neste país, já não há distinção entre “desengraçado” e “desgraçado”, sequer ortográfica. Se a houvesse, notá-la-íamos entre os 68 cêntimos mensais de actualização das reformas e o salário do ex-caixa de banco Armando Vara. Não é o céu, portanto, que não tem limites: é a “Pátria”.
É facílimo demonstrar quão tudo é dificílimo. Ele é o fartote do aluguer de aviões e helicópteros da “época de incêndios”: quantas fortunas particulares com dinheiros públicos não estarão a ser amealhadas à conta do regabofe que é o crónico atraso dos concursos de compra? Ele é o “Tratado de Lisboa”, que já não vai a referendo porque sim: está tudo tratado. Ele é a “Lei do Tabaco”, o novo apartheid a que se seguirão os regulamentos policiais do Açúcar, do Toucinho, da Farinheira, do Calçado com Solas Vulcanizadas, do Copo de Plástico, do Travesti de Carnaval, do Gay de Todo o Ano, da Ovelha com Chip da Serra da Estrela e, ainda, a do Porreiro-Pá-Porreiro-Pá.
Os partidos com menos de cinco mil militantes (como o Boavista F.C., por exemplo) vão ter de fechar. Recomendo-lhes vivamente que, para sobreviver, se transformem em “igrejas”: basta-lhes inscrever meia dúzia de “bispos” brasileiros (como o Boavista, por exemplo).
Ele há, porém, consolações: e não, não estou a referir-me nem ao Goucha nem ao Baião. Refiro-me à consoladora proposta que o mais famoso casal algarvio, os McCann, recebeu. Parece que alguém quer levar ao cinema um filme sobre a Maddie. Tenho uma proposta para o elenco: a Esmeralda como personagem secundária. Toda a gente sabe quão secundária é a Esmeralda.
(Aos quarenta e picos anos, o que me aborrece não é não ter onde cair morto. É não ter como renascer. Sim, como o Boavista.)

10/01/2008

Três Coisas para Hoje


Três coisas para hoje: Os Sítios (tarde de 9 de Janeiro de 2008), Um Dia (noite de 7 ibidem) e uma prosa de Março de 2007, agora incluída na série A Noite em Breve. Tudo Caramulo, naturalmente, incluindo a fotografia, obtida na manhã de Um Dia.


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1. Os Sítios

Os sítios a que as botas me levam o coração e o nome recebem também a visita de cães dados ao peripatetismo, de homens de capacete sem motorizada e do pólen da chuva com que a tristeza insemina – de mim, dos cães e dos capacetes – os nomes e os corações.

Passam táxis vazios: nem condutores levam. A humidade empapa pelo chão milhares de cartas por abrir. Contêm folhas de árvores, mas não nos é dado lê-las, posto que foram remetidas a quem já cá não está por quem nunca aqui esteve.

Tempos houve em que vi gente. Era nas feiras populares. O mar cedia de noite aos carrosséis. Fritava-se milho e carne de porco. Bonecos de peluche roufenhavam maravilhas comerciais a gramofones de sorteio-de-cegos. Era no tempo em que os ciganos ainda não queriam parecer-se com o lado pior de nós. Um cálice de licor de ginja não era ainda o último recurso. Recordo-me recordando tudo isto durante o instante mesmo em que o via – e me via, anos depois, visto e havido.

Suponho que outros sítios haja onde hotéis vigorem as coruscações cosmopolitas que atraem os amantes com pressa e os senhorios com todo o tempo do mundo. Por aqui não há nada disso. Quem não quiser dormir ao relento, que empilhe toros e pedras em algum baldio não requisitado por usucapião. Aqui não temos amantes. Temos, quando muito, pessoas que já amaram – e por isso aqui estão agora, suponho.

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2. Um Dia

Foi um dia do terceiro milénio, esteve sempre nevoeiro.
Alguns homens derivaram na sombra do dia, uns a pé,
outros à janela como telas suspensas do tempo.
Tive tempo, eu, para ver isso tudo: homens e
nevoeiro num dia do milénio, dia sete do ano oito.

Recolho frases e compassos da boca dos homens na névoa.
As árvores dispõem os limites do tabuleiro.
Nem sempre me ocorre ser particípio futuro:
vivo algodões sobre que nenhuma jóia iodada.
Mas recebo colecções e usuras: e negoceio-as a sós.

Conheço o ouro, conheço a merda. Uma senhora doente
dos cornos contou-me coisas de um namorado antigo,
da actual medicação, não se queixa da comida do Lar,
queixa-se de nada se puder fumar e pôr moedas
no telefone a moedas do canto do café, a azul.

Continuo a achar tudo muito belo e muito januário.
O nevoeiro rebenta por baixo como uma bufa de nuvens,
as árvores armam-se em sérias como virgens de pau,
no espelho-de-água os peixes petrificados congelam
natações imaginárias, é preciso crer que nadam.

Também é preciso crer que nada acontece na vida,
oitenta e tal anos a fio, entre jardins e cabras,
são quarenta anos, são catorze, são mais ou menos
dias, depois milénios, então um dia sem sol
lunifica tudo, é preciso ter calma, à janela.

Acontece-me muito ser feliz nos particípios.
Ondulo, mineral, pela caligrafia da pessoa que me
calhou: esta, segunda-feira, sete do oito. Ainda
vai chover na noite nova, as nuvens levantam a saia,
dizem que há muitos anos era outror’ assim, não sei.

Foi um dia, há moedas azuis, nunca lhe atendem a chamada.
Foi um dia, esteve sempre
– etc.


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DOUTROS CADERNOS – II
Caramulo, 24, 25 e 26 de Março de 2007


A mocidade era de uma violência exaltante. Assim era, mesmo entre as madeiras da antiga Biblioteca Municipal, onde existia para consulta a colecção completa d’A Águia de Teixeira de Pascoaes. Eram de uma exaltante violência: a minha mocidade e a do o mundo. Eu tinha força: o ar era nutritivo. Depois, subi as muitas escadarias até à sala da Biblioteca Geral da universidade, onde era requisitável o volume de Pierre Nordon que trata, com profusão de pormenores, da vida e da obra de Sir Arthur Conan Doyle. Os dias pareciam-me cúbicos, vítreos, protectores. Talvez mesmo – perfeitos. O meu pássaro não era ainda a morte, ou o álcool, ou, sequer, a vida. Era a gramática.
Os pássaros viviam, os coelhos viviam, os outros leitores mexiam-se como se fossem de papel – e eram. A vida, trocada pela gramática e pela hermenêutica, consistia em momentos de chá e em horas não decadentes. Em casa, a M. lidava com os panos, os alumínios, os detergentes, paroquiando uma domesticidade a que se voltava para prolongar a biblioteca.
As palavras já eram, então, imagens. As vogais eram a cores, ao contrário das consoantes. O e sempre foi verde. O i, vermelho. O a, preto. O o, amarelo. O u, azul. As vogais latejavam dentro dos olhos, tomadas de uma pulsação autónoma. As palavras obtidas durante o dia convocavam-se a si mesmas à noite, fervilhavam no quintal dos gatos, fremiam entre desgrenhadas roseiras e maciços canaviais, rompiam riscos no muro, trepavam pela roupa pendurada a secar. A M. aparecia e desaparecia na mente, umas vezes nova e marmórea, outras vezes antiga e muito magra.
Fechar os olhos para ver como o luar marfinava as pedras, calcariava os dentes, lambia de prata as oliveiras a que os ciganos roubavam azeitonas depois de terem dado caça aos ouriços do monte. As litografias ilustravam o mundo de Jules Verne. Algumas lajes eram diagonais. Naves extraterrestres, disfarçadas de jazigos, casulavam infinitas conspirações interplanetárias. A chuva escorria pelas lajes até sossegar numa poça dourada pelo fundo de quartzo onde os girinos espermatozoidavam com fúria. Além do carreiro, a quinta dos cavalos existia alta, chaparrálica, bonanzeira, mansónica, fascinante e improvável. A flora local era de uma escassez ascética e orgulhosa. Espargos e violetas perfumavam a vinha abandonada e corrida por cães andrajosos – por mim também. O sol caía e sangrava além da figueira velha, cuja fruta, de tão doce, fazia desesperar as abelhas. Entre figueira e sol, a linha do comboio vivia de suicídios rurais tão regulares como as estações do ano. Ali se matavam os alcoólicos encornados cujo desespero era furtivo e tenaz como a inteligência dos ratos. Tornou-se inesquecível a carcaça escarlate de um deles: as costelas, o vácuo do ventre, um pé com sapato e sem perna. Não mais o eventual I.J. foi abandonado pela visão desse ex-homem abatido pela linha, nem mais o abandonou, nunca mais, a apreensão perante um comboio, mesmo que parado no estaleiro.
Fósseis marinhos, a quarenta quilómetros do mar, salgavam o pé macio dos cedros e comprovavam a loucura total dos elementos e da História. Os silos de rações cheiravam a farinha de cartão. O homem da taberna criava porcos entre tábuas nas traseiras da venda, visíveis do monte: bonecos róseos de toucinho e olhinhos maus. O mais era o campo aberto, extensão sem confins que urdia incansavelmente uma população de melões, batatas, laranjas, choupos e homens curvados. Tinham erguido choupanas no campo. Guardavam lá dentro as alfaias e os corpos, quando as colheitas e a fobia dos roubos lhes impunham que ali dormissem, os homens e as mulheres e os rapazes de uma agricultura hoje extinta como uma fogueira à chuva. Tudo haveria de ser escrito, depois.
A II Guerra Mundial acontecia para sempre em dezoito volumes. Era amável, detestar a pusilanimidade do Chamberlain, o passinho de dança do Adolf à saída da carruagem com a capitulação francesa nas garras, a honra sem honra do Pétain, o umbigo do de Gaulle, os óculos à Lennon do Himmler, as muitas taras do Hoover, a raposice do Rommel, a divindade míope do Imperador, a banha obscena do Duce e a sanha sanguinária do Estaline. O repouso chegava com Roger Ackroyd e com O Homem do Fato Castanho, Lord Edgware, a velhota Marple e o ovóide Poirot. Também o portugalinho de Júlio Dinis sossegava a incandescente febre mental que evaporava a chuva em torno da cabeça. Já não havia escapatória possível para mim: depois de Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Altino do Tojal e Ferreira de Castro, o mundo concreto volvera-se-me definitivamente um problema dos outros, incluindo os anjos. Mas como a morte não cravara ainda as estacas da sua tenda neste areal, a vida era tudo o que me restava para ler.
Quando as gónadas me treparam às meninges, não foi sem esforço que consegui aliar o António Sérgio e o Carl Grimberg à consideração furtiva das bochechas nalgais das raparigas e das casadas. Desconfiava, então, de uma evidência perpétua: o abismo que elas apartavam, mesmo que nelas, ocasionalmente, tenho sido possível cravar a raiz. Mas nada disso obstou mortalmente à prioridade da, por assim dizer, gliptognosia que resultava dos livros. Jurar e cumprir uma biblioteca particular – só isso podia ser. O que não podia ser, nem seria, era a eventualidade de um amor mais duradouro do que o dos livros. Eu não tinha filhas, então: nada sabia de nada. Thomas Bernhard (1931-1989), muitos anos depois, trouxe razão e sossego e exílio – e ele não teve filhos.
No anteverão de 1978, uma noite houve que não acabou ainda. Em casa, havia arroz de frango com ervilhas. A M. fez também salada de alface. Ela tinha saído para comprar um litro de refrigerante. O pão gretava-se de fresco como uma avó púbere. Três à mesa – ou quantos quisesse, pois que bastava, no fresco do pátio, as vozes das letras. A conversa embalava um sossego de tal modo profundo, que hoje só é possível atribuí-lo à insídia do amor. Ela doseava as rações com aquela magnanimidade hierárquica e hierática das fundadoras de cidades. O P. falava com entusiasmo e veneração da pintura cerâmica de Jorge Colaço. O filho de ambos comia com um apetite são e loução, integral, inquebrantável, musical. Ele depois devolveu-se à terra. Comia-se no anexo da cozinha, a porta aberta importava do pátio o forno morno de Maio e atenção gástrica dos gatos. Lá andavam, no pátio, entre gatos e sujeitas elas também à sufocação das rosas, as palavras do dia, as lidas e as escritas, as tentadas e as invasivas.
Depois começaram os nomes e a porra dos versos. Eram as histórias – as emanações. Chegava do fundo dos outros o que se me volveu próprio: e mentiroso: e sinceríssimo. A anatomia e a tuberculose dos tios, assumi-as como peregrino de santos dados à hemoptise.
Muitos livros concorriam entretanto para que a escrita futura acontecesse contra tanta leitura. Tanto leite, tanta altura, tantos sucessivos mortos matando o Verão, o vento morno nas pernas que sobravam dos calções. Eu fui-me dizendo a necessidade de ouvir por fora para ver por dentro. Por exemplo: tangerineiras adoçavam as águas ribeiras que, música, havia no trajecto do funeral do pai do meu amigo. Anos frente, volvidos, autocarros e decisão de escrever para sempre. Na cova da hora nocturna, a esperança era de uma violência que exaltava. Mulheres casadas saíam aos pátios, nesse único Verão, a renovar roupas de pendura. Metiam os braços gordos e sexuais nas covas das alças. Gelatinavam as mamas nutridas – e eu via-as. Gatos pergaminhavam a duração do tempo. O senhorio, velho como um catálogo fascista, dourava a tarde a partir da varanda e para o mundo como um papa local. Eu atendia.
Não podia fazer de outra maneira – nunca pude. Cada dia tornou-se como cada livro – um resgate pago com a vida. Perante as publicações pornográficas, por exemplo, sentia sempre, não sem fascínio, que aquilo tudo (os homens grossos, as raparigas esquartejadas de rosto chicoteado pelo esperma, as cores orgânicas, a madrepérola das vulvas, a cegueira das glandes, a ficção do desejo) era a perfeita antiliteratura, posto que esvaziava de qualquer possibilidade vital as personagens: evacuava delas a memória, digo, não a minha de mim.
Hoje, alimento estes roseirais com a indiscutível elegância de todo o gajo que se apaga como a um risco de lápis. Quando for o dia sem mês e sem ano, que o reconheça eu como igual a todos os que, violento, exaltado, já vivi.

08/01/2008

Viva o Pacheco!

Publiquei isto sobre o Gajo, n'O Eco, não me lembro quando. Foi em vida dele, enfim, que é o que conta. Viva o Gajo!
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Chama-se Luiz Pacheco, nasceu a 7 de Maio de 1925 e é um homem livre desde esse dia.
Fez e tem muitos filhos. É editor, escritor, libertino, bissexual (ou era, que a idade tudo pendura…), má-língua-sem-papas-na-mesma, certeiro, danado, assertivo, cru, visceral, afiado, justo, injusto, amante, claro, obscuro.
Descobriu, revelou e publicou, entre muitos outros, gente literária hoje muito estrelada: Herberto Helder, Mário Cesariny, Natália Correia e António Maria Lisboa.t
Nunca se vendeu. Nunca teve “tachos”. Nunca se empoleirou. Passou fome de rabo (nos dois sentidos). Aos 80 anos, lixado da gosma da asma, com um enfisema assobiante, alcoólico (finalmente) não praticante, pobre como um esmoler franciscano, repousa com dignidade num lar de velhotes com cama, mesa e roupa lavada, ali para os lados de Setúbal. E sempre doido pela literatura.
São dele, entre outras mais, obras imprescindíveis como “Textos de Guerrilha”, “Exercícios de Estilo”, “O Libertino Passeia por Braga, a Idolátricat, o seu Esplendor”, “Memorando, Mirabolando”, “O Teodolito”, “O Caso das Criancinhas Desaparecidas”, “Os Namorados” e a fabulosa “Comunidade”, entre outros.
Pacheco é o meu herói. Hoje, resiste à morte com o mesmo denodo com que sempre resistiu às agruras da vida. Passou mal (até esmola pediu) para poder publicar a escrita dos outros. Esteve preso cinco vezes, no Limoeiro e nas Caldas da Rainha, por ordem da “Justiça” dum tal Salazar de má memória. Preso, mas sempre livre por dentro.
Agradeço-lhe o exemplo. Vivemos hoje em liberdade também por causa dele. Ele ensina a (r)existir. Por isso, viva o Pacheco! E viva a gente também, c’um caneco!

Canzoada Assaltante