Viagem a Viseu - Relato de uma Tarde
(mais Quinze Inevitáveis Poemas Reflectores)
Este é o relato de uma ida a Viseu e terminal regresso ao Caramulo. Chamo-lhe
Viagem por causa da literatura – ou da pobreza de espírito que se me manifesta nas tropelias vocabulares do costume. Tudo aconteceu na tarde do dia 11 de Outubro de 2007: já anteontem, portanto.
Trata-se, de facto, de dois textos.
O primeiro, a
Viagem propriamente dita, é uma sequência de quinze pequenas prosas ordenadas sequencialmente no tempo numérico (de 1 a 15, naturalmente). Foram escritas durante a deslocação na tarde.
O segundo,
Quinze Inevitáveis Poemas Reflectores, é versalhada, mas com um ardil: são quinze os poemas que, regressado à base (isto é, à pastelaria) ao cabo da tarde, compus para, digamos, reflectir as prosas. O meu objectivo era que se pudesse ler a poesia por ela mesma, mas também que ela pudesse jogar às luzes e às sombras com a prosa para que remete. Por isso, cada poema “é” um parágrafo antepassado. E daí a (des)ordem numérica dos poemas. A seguir à ordem de composição, vem, entre parênteses, a raiz prosaica dos versos.
São coisas com que, mais do que passar o tempo, tento a não total dissipação do tempo que passa. A não ser que o tempo, de facto, não passe – nós, sim.
*************************I – Viagem a Viseu
(Relato de uma Tarde)1Esta tarde, a luz é material como uma jóia transparente. O arvoredo é manso, tremula-o uma doçura outonal que faz bem. Vinhedos coloram de ouro-ferro extensões laterais da viagem. De carro até Viseu, sinto-me muito vivo no lugar-do-morto, navegador da hora, tomador do bálsamo que seiva da transparente jóia.
2Sobre a Ribeira de Asnes, visão rápida de uma vivenda fugida da cidade. Vila Chã de Sá e Fail antecipam a capital de distrito. O casario substitui a pedraria escura do território. Há bons pátios: árvores de fruto, água, sombra, animais pacificados, velhas gesticulando roupa num funambulismo de cordas e arames. Da Rádio Vouzela, visitam-nos os sultões do swing de um senhor inglês chamado Mark.
3À passagem por Repeses, sinto-me estranho: feliz, não sei porquê. É da moção mineral da luz, certamente. Também será da ortoépia de tantas sequências florais: a chegada ao Rossio, a água geométrica da fonte, a pintura azulibranca que azuleja a visão, o mistério simples dos outros animais humanos.
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Depois de almoço, é-me dada a contemplação da maravilhosa autonomia deste cão muito loiro, veterano cruzador de semáforos e automóveis. A uma brida de cruzeiro, o pêlo da cara alisado para trás pela brisa, é um ser que admiro até mais além da Rua José Branquinho, passada a Cervejaria Loureiro, enfim desaparecendo da vista e do parágrafo.
5Sentado à sombra em degraus públicos do Largo Major Teles, redijo a consideração que me visitou poucos minutos antes, quando treslia capas de jornais e revistas em exposição na aranha do quiosque à Avenida Dr. António José de Almeida: que debaixo do nosso tecto católico se casam muitos cabrões na directa proporção da cambada de putas ansiosas por, já divorciadas e paridas, aparecer naqueles reality-concursos da televisão, já estrelas de nada, ninguém para sempre. Mas nada disto me desassossega: vai uma belíssima tarde na minha vida e na nossa quinta-feira. Há brisa fresca, o Sol refracta crisóis acesos – e tudo me parece uma digna arqueologia do porvir.
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Uma das esquinas da Praça de D. Duarte (1391-1438) é com a Rua Augusta Cruz, que foi cantora viseense e só durou de 1869 a 1901. Dado o sol que lhe bate no nome, tenho pena dessa rapariga de 32 anos. Outras esquinas do Senhor D. Duarte: com a rua do pintor quinhentista Grão-Vasco (sem data) e com a Antiga Rua Nova, hoje Augusto Hilário, que também era viseense, também só viveu 32 anos (1864-1896) e foi cantor também.
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Estátua de S. Mateus apresentando ao Sol o
Liber Generationis Iesu Christi. Estacionamento na zona pedonal do largo envolvente da Igreja de Nossa Senhora da Conceição: fé, feira e gasóleo sempre de mãos dadas.
8Sentado no Café Esquina para descansar um pouco, sou gratificado pela visão larga da fonte ao centro da rotunda. A aragem, que veio de ramalhar nas árvores de em torno, pulveriza a água vertical ejaculada em lanças de leite atiradas a partir do chão. Os automóveis são rotundamente espargidos por esta graça séria da Natureza aliada ao Município. Incomoda-me um pouco que uma coisa destas me faça feliz (e portanto banal) – mas faz.
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Mais acima, antes de acampar no Esquina, e em rua de que não retive o nome, fotografei um pobre. Velho homem sentado num banco de azulejos. Uma cruz mineral ao alto para a indiferente geologia de Deus. Uma mulher parou, deu-lhe fruta e pão. Tem de ser a gente a fazer o trabalho dEle.
10Mui coquetes em suas soquetes, passam gracietes a caminho de seus valetes. Como elas, também a minha vida é provinciana. Como o delas, também o meu coração quer ser só provincial.
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Sim, dana-me um pouco esta coisa de o vento dando nas árvores me fazer feliz. Sempre me exaltou, o ladrão – o doce violador delas. E elas muito feminis, muito contentes, aos aplausos farfalhudos, tinindo gritinhos de colherinha de prata quando eles lhes dá. Saciado, ele depois vai à água e enruga-a – e torna-a feliz também.
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Atiro ao porão gástrico um quartilho de água mineral e preparo-me para partir. Tenho ainda tempo, antes da noite, para outras visitações. Digo: para, fazendo eu de território, ser visitado por hordas de palavras em fileiras (des)ordenadas por não sei que instância ordenadora, normativa, gramatical, prosaica, humana. Dou já tudo o que tenho: algum tempo.
13Não tardou nada. Antes de pagar e sair, assisto ao homem que, do lado mundial do balcão, manda vir uma cerveja e uma raspadinha. Tem um bigode excelente, mexicano, de uma gravidade já mais inclinada do que ínclita, mais já espumosa do que espumante. Gosto do quadro. O cavalheiro usa um cotim cinzento no tronco, que termina, abaixo, em um pneumático alegre. Calças de ganga barata, sapatos de sola vulcanizada causadora de frieiras, pergaminhadora de pés. Cinto lasso, mas de couro verdadeiro. Aliança católica na garra esquerda. A direita, de unhas sublinhadas a esterco, empunha o copo de cerveja como um báculo de anunciação. Gosto de ver estes filmes, a que adiro legendas com prazer. Agora pago, agora saio para farta luz, a luz boa.
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Happy Dream é como se chama o estabelecimento de
snack-bar a que recolho os ossos depois de nova incursão nos banais mistérios da cidade: desta como de todas. Chamo-lhes “banais” sem os apoucar – são banais, é tudo. Passei pela gare rodoviária, cujo nome algo pomposo (“Centro Municipal de Transportes”) me não ilude: porque todas as estações de autocarros me são mais catedrais do que centros – e muito mais universais do que municipais. De criança até morrer, tenho e hei-de ter um fascínio invencível por gares rodoviárias: metáforas tóxicas do nascimento, do retorno e da partida, nunca se me furtam ao andrajoso encanto de ciganos, pombas, vendedeiras, motoristas, taxistas, professorazitas, drogados, bêbados e poetas bêbados de edição de autor. As gares: todos os lugares.
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No carro, ainda vivo, no lugar-do-morto. Já o sol tosse cansaços: asmática fadiga de ouro velho. A mesma estrada: já outra vida, por inversa. Corte à direita para Molelos, depois a praia sem mar do ar de Besteiros, campo e vale. Petrificado maremoto, o espinhaço alto do Caramulo subsidia o céu ainda diáfano e eterno ainda. Paramos em Molelos para refresco. Em cinzeiros do barro negro local quebramos a cinza vertebral de um cigarro cada um. A minha senhora folheia o inenarrável jornal que suja o nome à sede de concelho. Tudo é regresso, mais agora do que nunca. Subiremos, breves e em breve, à encapelada maré-viva da serra, a dúzia e meia de quilómetros acima. Vivi muito e muito bem, esta tarde da minha vida e da nossa quinta-feira. Aquele homem, na rua de que não retive o nome, as costas antigas nos azulejos, comeu logo a fruta, guardou o pão. Fez bem, como a luz me fez.
*************************II – Quinze Inevitáveis Poemas Reflectores1 (14)Os nomes das ruas celebram os mortos postais
que vivemos desconhecendo.
Quiosques de vão de escada futuram sinónimas
sexualidades e tristezas.
Ciganos amorenam pombas rodoviárias.
Sopas rápidas aclimatam bêbados e poetas.
Não confio nem em Deus nem na Lotaria
mas não deixo de jogar
contra Ambos.
2 (9)A água vi exposta ao vento respirador
de árvores.
Era na cidade.
Uma quinta-feira toda acontecia
perante o não pasmo geral.
Uma banana e um pão.
Um homem sentado de azulejos:
branco-e-azul homem a pobre
preto-e-branco.
3 (10)
Um sonho feliz: à passagem das gracietes
à noite não durmas onde à tarde te metes.
4 (13)Tem este Município primado por uma política
de bigodes mais que ínclitos inclinados
e de lancis de unhas a esterco sublinhados.
5 (15)
A casa volto sempre que posso.
Anos houve em que não pude.
Barro negro em noites de olaria.
Haja regresso haja saúde.
6 (1)Nenhum cego não vive de luz.
7 (7)
Cristos e cristos muitíssimos cristos
ao vento cristão das vãs gerações
sopram ao vento arbóreos benquistos
estacionamentos a plenos pulmões.
8 (8)
Sento-me sim em cafés e espero que
ou quem
venha
sim faço isso muito.
Vejo muito a água partida em papel:
ao vento municipal libretos astrólogos
curas de saúde amores negócios separações.
Sou feliz quando
me sento
quando
me sinto.
9 (2)
Na vivenda vista de sobre a Ribeira de Asnes
não sei quem vive
se vive
quem mora
se mora
se demora.
10 (4)
O cão em frente à Cervejaria Loureiro:
loiro, inteiros.
11 (3)
O mistério: a banalidade: o mistério:
a felicidade.
12 (5)
Sim
também
a cambada de putas
a cambada de cabrões.
A televisão púbica.
13 (11)
Sigo há muitos anos a escrita do vento na água
depois da palestra a que procedeu nas árvores.
Tem-me adiantado tanto quanto atrasado.
Mas não ando ao menos tanto quanto andei já
entre putas e cabrões.
14 (6)Dom Duarte – 47 anos
Augusta Cruz – 32 anos
+ Augusto Hilário – 32 anos
111 anos, resto Grão-Vasco
15 (12)
Preparo-me para partir.
Tenho ainda alguma noite
antes do tempo.