26/08/2007

A Noite em Breve - 5, 6 e 7


A Noite em Breve
ou
Coruscações no Imo de Sombras
(uma portugalidade delével)



5
Caramulo, tarde de 15 de Agosto de 2007

Manhã muito cedo, acordei no palco e recebi o aplauso da chuva. Fui à janela, o teatro dissipou-se, o mundo condensou-se todo na visão ubíqua da água caindo, harpa inconsolável. A meio de Agosto, uma visita do Inverno. Duas horas depois, julgo ter conseguido um emprego novo para. Como me sobram as horas do dia, procurei onde ocupá-las sem ser num caderno com a memória e a caneta. Começo segunda-feira.
Entretanto a tarde mexeu as pedras de suas horas no tabuleiro do Tempo. Trabalhei muito, o programa de rádio ficou pronto para emissão. Na folga, vim à pastelaria confrontar a minha vida com o meu caderno. Um bom acaso juntou, a duas mesas diferentes, cinco mulheres muito jovens e muito diferentes, cinco mulheres muito jovens e muito bonitas. Gostei de vê-las. Rostos sem a mancha da tristeza, a segurança das carnes expostas, a elegância das roupas desenhadoras do por-baixo. Gostei muito, depois distraí-me à conversa com um carpinteiro e um serralheiro. Falámos sobre ciclismo, trabalho em Espanha, tabaco e salários em Portugal.
Os nossos rios flúem: as nossas horas, os anos a que pertencemos. Sim – a nossa antiguidade viva. Discursiva, coetânea de sua particular noite, em breve, num teatro não perto mas dentro de nós.

6
Caramulo, manhã de 16 de Agosto de 2007

Manhã muito cedo, um prazer ardiloso por nostálgico: o nº 450/1 (Setembro a Dezembro de 1982) da revista coimbrã Vértice, todo dedicado a mestre Carlos de Oliveira, falecido em 1981. A nota manuscrita de aquisição do volume, no verso da capa, reza isto ( a tinta permanente azul):


Café Sirius, Coimbra (Rua da Sofia). Com a Paula.
Dado pelo Roque. Obrigado.
Quinta-feira, 30 de Junho de 1983.
Lembrar 19 anos do Tó Pratas.
Parabéns.


Palavra de honra que não me lembro de quem era o Roque. A Paula foi uma efémera namorada de faculdade: a 11 de Abril desse ano, a coisa começou num banco do 5º piso, perto do Instituto de Estudos Franceses; a 2 de Maio, dei-lhe umas flores amarelas na Avenida Bissaya Barreto; em Novembro, mais nada. O Tó Pratas é da Pedrulha, está há muito tempo em Oliveira de Azeméis, já não tem dezanove anos há muito tempo.
Entralhado no (preciosíssimo) exemplar memorial do Rapaz da Gândara, uma outra preciosa coisa: o suplemento Ler Escrever do entretanto extinto Diário de Lisboa: 24 de Setembro de 1987, há quase-quase vinte anos. Destaque para o romance Espingardas e Música Clássica de Alexandre Pinheiro Torres – mas, sobretudo, para um texto (destaque meu) do pintor René Magritte, que, um destes dias, vou passar e publicar no Canil.
Um início matinal bom, portanto, ao contrário do que fora a noite: sonhos de um recorte, doridos e feridos de impotência activa, ressumados de uma tristeza operatória e liquefactora. O resto da manhã concluiu a dactilografia de uns poemas fraquinhos que andei compondo a 30 de Julho e a 1 de Agosto últimos, coisecas que não vou publicar. Necessidade apontada de escrever duas novas histórias de dez parágrafos para a rádio, também: a tarde que vem as escreverá.


except to say that I have discovered that in life, if you take enough wrong turnings, at a certain age you end up right where you started


e eu devo estar nesta (un)certain age de que fala Judith em carta a Ted, a páginas 118 do Absolute Friends. Le Carré é quem sabe. Leio-o devagar, como convém quando se recebe na boca um vinho velho.
A manhã acaba-se sozinha como uma maré. Entra, indiferente, a segunda metade de Agosto. Uma nota feliz é ter começado finalmente a reunião, na mesma casa, da minha biblioteca. Os sacos acumulam-se no chão do escritório enquanto não chegam as tábuas encomendadas para as estantes. Não tropeço só nos sacos, tropeço na memória dos lidos, dos por-ler, dos arquivos com manuscritos. No Canil, estampei já uma das centenas de coisas guardadas: o poema múltiplo Minha Senhora, que compus em 1999 e recompus em 2004, ambos maus anos da minha vida. Maus mas vividos, maus mas passados. É a tal antiguidade viva que inscrevi ontem no final do capítulo 5 desta treta diarística que vou compondo.
O horizonte imediato é o almoço, golpe final na panela de sopa de legumes com carne de novilho e chouriço que engendrei anteontem. Depois, café e isto: passar ao Canil tudo o que puder do caderno, mais as tais duas histórias novas a gravar à noite no estúdio, mais o que o dia der, com sua (nossa) noite, em breve.

7
Caramulo, tarde de 16 de Agosto de 2007


A inconstância dos dias (os destes textos como todos os outros) não nos condena, apesar de tudo, a viver sem a percepção de alguns instantes radiosos: mulheres formosas, homens verticais, animais benignos, flores completas e únicas como frases que connosco seguem para todo o lado. E constantes, também, são os dias e as inconstâncias.
E quando digo – ou disse – falsidade, posso referir-me à urgência de criação de beleza onde ela, de facto e deveras, não mora. Digo: mesmas mulheres, nenhuns homens, nenhuns animais, nenhuma benignidade. Flores sim, em profusão, como nuvens ou ovelhas, por céus e pastagens.
Os livros – como as horas, como os anos – flúem. Os de Carlos de Oliveira, retrabalhados sucessiva e incansavelmente pelo Autor, consubstanciam hoje ainda essa releitura gráfica, em cujo imo (em cujas sombras) corusca a magia humaníssima da criação. É com facilidade que uma revisita à Vértice dos últimos quatro meses de 1982 nos dá isto – isto e muito mais. Amanhã, ou depois, trarei comigo o exemplar para vos noticiar coisas destas. Agora, é a tardinha em véspera.
Também tudo é véspera, quando se vive. Podemos estar (e estamos) em observação. Duplamente isso: observando as obras e os estragos do Tempo; e sendo observados, em estragos e obras, por Ele.
Se tanto me dedico a tal, não é por mérito mas por inelutabilidade. É-me inevitável viver tudo – e vivê-lo um pouco-quase-nada antes: pois que vou escrevê-lo. Julgo que, em 2005, o disse mais ou menos assim (é de cor):


Não quero viver muito.
Quero apenas viver tudo.


Cada dia é um século mínimo, equivalendo cada noite a um réveillon anacrónico e puro e duro. Escrevo até que a noite instaure a ditadura finissecular que almanaca as árvores, as janelas – e as palavras que me não sobraram, afinal, para dizê-las.
Nem tudo perco, nem de tudo me perco. As informações falsas da memória grudam-se com toda a sinceridade às paredes internas da cabeça, piriluziculampando como gambiarras natalícias: memoriar é instituir-se apócrifos evangelhos para uma sobrevivência antetumular, não pós (nem pó). Invento? Sim. Inventei um escritor português chamado Carlos de Oliveira, digo que andou por cá entre 1921 e 1981, de Belém do Pará a Lisboa, passando pela Gândara e por Coimbra. Algo hipocondríaco, reservado, muito culto, seriíssimo. Em intimidade com a mulher (inventei-lhe uma, também) e um amigo por únicas testemunhas, terá chamado filho da puta a um dos muitos filhos-da-puta que ajudaram a dar cabo, logo em 1975, do melhor do 25 de Abril. Invento? Sim, certamente. Quando e quanto mais não seja porque relembro o que não vivi: só li, daí tão sincera falsidade. Literatura, carago, minha Mãe.
Vem fresco o vento de fim de dia (de fim de século). Fresco, quase frio. Não trouxe casaco, confiante num agosto de cimo de montanha que parece um dos marços lá de baixo. Tamborina-se-me o coração físico com uma cadência suspeita de fumador veterano. Quando evolo cuspo, solto escarros ásperos e densos como amostras de carpete. Abaixo dos pulmões, porém, estômago, fígado e tripas funcionam com uma competência que vou fazendo, há longos anos, por desmerecer. Tudo bem.
A um canto da pastelaria, merendam um mãe jovem e dois pimpolhos bonitos. Leite achocolatado, bolos. Os pequeninos (a mãe também) propagam a graciosidade não utilitária das miniaturas. Conheço de vista a rapariga, não a supunha parideira de gémeos. Gosto do quadro (não é falso, ei-los ali, a um canto).
Nenhuma homossexualidade paira por estas bandas que seja édita. Nem que eu traga para a pastelaria algum volume de Foucault, Barthes, Gide ou Wilde. Tudo transita, até a sanha hetero dos procriadores. Os filhos aparecem feitos, como se fossem o que deveras são: frutaria temporã da serôdia necessidade de não morrer sem tremenho nem tremenhos. No televisor, com o cair de cada século quotidiano, corpos de luz formalizam a investidura dos empurrões, dos lubrilicores, das sugestões e do descaramento. Benzem-se padres e monjas – e a folia februária do recorrente carnaval erótico segue demandando a nossa inércia de corpo e a nossa febre de alma. Nada tenho a ver com isso, mesmo consultando na rede um labirinto triste de sítios pornográficos para fundamento e fundação (digo eu, que sou dado a falsidades) do capítulo referente a um certo professor de grego e latim de (in)certo romance que ando urdindo desde 24 de Novembro de 2006.
E mais: a poesia e a música de Clint Eastwood, o cinema de Eça de Queiroz, a estatuária ambulatória de Schubert, o jardim de vozes de Mercè Rodoreda (nascida em Barcelona, a 10 de Outubro de 1908, morreu em Gerona a 13 de abril de 1983, dois dias depois de inventado namoro encetado num banco perto do Instituto de Estudos Franceses, não sei se já vos falei disso). São cartazes vivos adejando cor e luz pelas galerias mentais que não fecham para descanso do pessoal a dia algum, antes acompanham o mortal vivente no curso de tardinhas e de vésperas como esta de hoje, tão com ontem amanhã parecida. Schubert, que compunha das oito da manhã às duas da tarde e depois ia dar uma volta pela beira do lago a ouvir as trutas. Eça, que demorava uma infinidade a vestir-se por ir pegando em livros por toda a casa. Clint, que disparou o pacifismo por pistolas de cano longo. A senhora Rodoreda, que García Márquez quis ler – e leu – no catalão original dos insuperáveis livros dela (só para indicar dois: La Plaça del Diamant, de 1960, e La Mort i la Primavera, edição póstuma de 1986). Mais as perfeições circunstantes: aquele conto, em língua de mariposas, de Manuel Rivas, aquele plenilúnio de Muñoz Molina; o mal-amado Céline de Voyage au Bout de la Nuit e o desarmante Henry James de todos os livros, entre os que não custa referir, ao correr da pena, duas novelas de puro fascínio: The Turn of the Screw, de 1898, e The Beast in the Jungle, de 1903; Dylan Thomas e Malcolm Lowry, siameses do coração das trevas mais rubras, as de fundo de bar, debaixo do vulcão que preside ao bosque de leite; a morte-uma-só de Mishima e Pasolini; a descomunal pureza de Teixeira de Pascoaes e de Wenceslau de Moraes; o rápido fósforo de António Maria Lisboa; Cortázar demonstrando o Tempo nos cartazes (bailes, exposições, concertos, leilões) sobrepostos numa parede pública de Paris; a colecção alternada de postais que Camões e Shakespeare enviaram ao futuro sem aviso de recepção; o mais competente dos escritores: Italo Calvino, sua bonita cabeça nascida para ser mármore e romana; os claros nórdicos que nos são obscuros, fechados em casas de madeira na desolação peninsular da neve; a beberagem mental de Virginia Woolf e a beberagem idem-e-não-só de Scott Fitzgerald, fazendo check-in no hotel com a pasta de couro e a mulher, que também lho bebia; o calor das aves fotografado por Sá de Miranda; a pintura insuperável de Raul Brandão, quando mais perto do mar que das nefelibatas nuvens; a graça triste de Bocage e o chá com torradas de Correia Garção; Federico em Nueva York; e John le Carré, veterano de muitas merdas, muita dor de alma, muito mundo jogado por baixo da mesa por causa de Deus, o Ocidental.
Foi-se embora o sol para outro hemisfério. Não pulsa por aqui o azul-cobalto dos tubarões de alhures. A minha gata surgiu em casa com um lagarto na boca. Fui a tempo, o animal verde sobreviveu. Agarrei-o com um guardanapo de papel, depositei-o no jardim lateral da casa. A gata, incomodada por tanta moralidade revestida de guardanapo de papel, bufou obscenidades só dela, em circulação pelos cantos desprovidos de presas. Depois acalmou-se, dei-lhe carne prensada de uma lata à Nick Adams, comeu e foi dormir, sem memória nem remorso, na cadeira favorita.
São as horas propícias: breve, a noite. E, então, as imagens normalizadas (como a fruta dos hipermercados) relativas ao 30º aniversário da morte do Rei: Elvis Aaron Presley (1935-1977). O rapaz bonito e trágico, o da voz bonita e trágica, o inquilino de Graceland, no Memphis, Tennessee. Amarrado por contrato ao multicolor dos filmecos para adolescentes, não pôde (ou não soube) liberar-se em música tanto quanto prometia. Estoirou de químicos e de lípidos, assombrado pela digestão da manteiga de amendoim a bordo do jacto particular. Morreu americano, a norte de mais. Deixou dinheiro com fartura, que é do que aquela maltosa gosta, sobretudo quando não faz nem sabe fazer nada. Mas eu não posso nem quero ir por aí. Estes ícones entristecem-me um pouco mais do que indo à farmácia para remédio de alguma dor de dentes ou de alguma ruptura de alma inconsútil. Tenho música do Rei em casa e gosto dela. Não acredito, é na monarquia que o nomeou para o comer até ao esmifranço e para fingir que soube ou sabe quem ele foi e é. Logo, uma comédia: na TV, uma peça sobre os salários oficiais dos chefes de Estado do mundo – a maltosa do “jornalismo” a brincar com os lagartos – nós, na carpete cuspida.

1 comentário:

José Antunes Ribeiro disse...

Excelente esta escrita, este saber, este sabor...e, claro!, nenhum poder...
Grande abraço, Daniel!

Canzoada Assaltante