© DA.
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Segunda-feira,
20 de Dezembro de 2021
Porque lido, isto tem de estar escrevendo-se no passado. Nada mais volúvel do que o presente. Julgo mesmo que o futuro é massa de olvido. Raciocino assim enquanto permaneço (permanecia; permaneci) em uma sala-de-espera. Cidadãos mascarados em assentos alternados. Suporto a espera nada desejando. Decoração azul-cinza, asséptica, sem arroubos líricos nem folias épicas. Batas brancas como nevões verticais.
Lá fora, o anoitecimento vindo com água no bico. Escrevo de lentes irritantemente embaciadas. Não sei se me vão demorar ou quê. Suporto a espera, faço sala. Não há moscas com que entreter o olhar. Também não é de bom-tom adormecer, cochilar de boca aberta, pingar uma estalactite de baba. Talvez me atendam de seguida, já não são muitas as pessoas aqui de senha distraída nos dedos absortos.
Talvez depois disto me dê a uma volta pela anoitecida cidade-patrícia. Sempre pode ser que algumas coisas queiram tornar-se literatura. Costuma acontecer. Verso ou prosa, pode ser que algo queira ser linha. Já nem sei se ontem escrevi alguma coisa. Julgo que não. Vi um documentário que versava certo acontecimento de Outubro/1984. Chamam o meu número-senha. Não, era engano. Tem prioridade o número anterior, a funcionária enganou-se.
Pessoal da limpeza em acção na outra ala do piso. Mal pagas, resistentes, viventes, vivaças, anónimas. Uma das mulheres, alta como um foguete largado, não deve ter mais de vinte anos. As outras duas há muito fizeram quarenta. Já desapareceram, tragou-as o elevador-de-serviço. Nisto, chamam-me, confundem-me com o senhor meu Pai:
– Por aqui, senhor Daniel.
Tomam-me um quarto-de-hora, liberam-me em despacho, vejo-me na rua mais perto de mim que Coimbra tem de repente para oferecer-me. Tralha natalícia por todo o lado: mais folclore de cristandade que prática de cristianismo. Largo-me à aventura, que à ventura não é tão fácil. Não se me desdaria jantar fora hoje – não o farei todavia. Andam ruins os tempos para extravagâncias, por mais pobretes sejam elas. Não tem mal.
Entre rua & largo, dei-me caligrafando mentalmente a consciência autocrítica seguinte: sou nostálgico desde menino. A genética terá talvez alguma coisa a ver com tal evidência. Talvez tenha, sim, um pouco. As outras vicissitudes circunstanciais da criação – também elas concorreram para tornar-me alguém desconfiado do essencial absurdo que existir, pelo menos até hoje, nunca deixou de ser. E desata a chover com algum respeito. O televisor ladrou ameaças de intempérie generalizada no continente. Nas Filipinas, muitos mortos. O costume, enfim.
Duas vezes me pediram moedas hoje. Não tabaco. Nem sonetos. Moedas – foi o que me pediram. Os pedintes de quando eu era menino, esses não pediam por ou para heroína. Alguns, para comer. Outros, para beber. Mas não por/para droga. Os meus dois de hoje amarelejavam de hepática desagregação. Não tem mal. (Tem, mas não faz.)
Ainda não há-de ser hoje (mas leia-se ontem) que resolvo o caos mundial. Paranóia panviralvacínica. Natura tornando areia o que era água, água o que era pedra, lume o que era ar, excremento o que era evangelho. Isto fica por escrito & proscrito. É uma segunda-feira coimbrã, eu tinha hora-senha-marcada para certa sala-de-espera, acudi à convocação, que à vocação não é tão fácil. Começa ora a pensar no regresso ao Gato.
Começo ora a pensar no regresso ao Gato.
Partilho tempo-espaço com um gato, somos a mosca-no-autocarro.
A Mosca-no-Autocarro: duas vezes indo no Espaço; quantas no Tempo?
Tenho outros gatos & demais cães na ideia.
Nenhum era-foi-é-será Este.
Um homem cego entra no comércio em que tomei assento.
Não é pedinte, não é heroinómano, trabalha numa farmacêutica.
Não sendo porém careca, rapa-se glabramente o craniano capacete.
É mais novo do que eu: não muito, mas é, é mais novo.
Ele guelreia frases de outra luz, uma só dele.
Às vezes, as luzes coincidem: entendemo-nos entre videntes.
Não previdentes. Videntes. Às vezes, entre entes diferentes.
Não estilhacei hoje dinheiro pró-heroína-pedintes.
(Cá dentro, chateia-me tanto o não ter dado quão o terem-me pedido.)
Ouço um saxofone de banda-de-casino.
Ouço-o no meu tempo agora-nunca-mais-hoje.
Fui com o Armando J.O. + Duas Senhoras ao Peninsular.
Veio champanhe, dançámos os quatro (2+2), as senhoras não eram de aluguer.
O homem cego trouxe consigo uma lata de spray antiparasitas.
Ele diz a quem está: –Tenho de acabar com elas.
Ele di-lo femininamente, ele lá sabe.
Não é o dizer dele que é feminino, é o vocábulo pronominal.
Nenhum de nós sabe se verá outro Natal.
Ou sequer se verá este, que dias faltam para a ilusão-do-cristão.
Estou aqui no passado assentado na minha sala-de-espera, digo, na minha caligrafia.
E ontem há-de ser um outro dia.
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