23/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 855


855

Quarta-feira,
15 de Dezembro de 2021

    Vou procedendo à filologia de cada dia & à hermenêutica de cada ano em conformidade com o que me é possível, escreventemente falando. Na corrente manhã decembrina, saído ao mundo de fora-casa por razões pró-documentais (uma das quais, dinheirosa), assisti já ao aparato, função & passagem de um par de mulheres automovidas a testemunho de Jeová. Velha & nova em solene propaganda de uma bíblia parcial. Ar de canídeos batidos pela rejeição. Elas lá vão, que o seu evangelismo americanóide as guarde em saúde & cegueira. Ao panorama cinemático acorre depois uma segunda velha. parece titubear como modo-de-vida. Parece também precisar de orientação, não sei quanto a que destino – mas, nisto de destinos, alguém sabe seja o que for?
    Babujo literatura, pelo que nem faço por repelir certa apocrifia observatória. A manhã, aliás diáfana, refresca de laranjeiras de beira-rio o olhar-escrito. Encanecido, meão de estatura, um doido-manso carregado de esferográficas invectiva o caos disciplinado da existência colectiva. Frente, trás, vira, volta & e reviravolta, é incessante a sua marcha cá-lá rés à amurada fluvial. Autocarros amarelejam o trânsito. Ainda se vê alguma mocidade ao ar & à luz: e dela o esplendor gracioso, imediato, intransigente & fácil.
    O Pai-Sol, maior aguarelista de todos, campeia soberano sobre a realidade total. Bandas de Castelo Viegas, Pereiros, Assafarge: mais laranjeiras, vivendas discretas, Mato tratado, um gato negro na paragem-bus. A minha atenção, livre de quaisquer constrangimentos metodológicos, diplomáticos ou heurísticos, extrai lição da Geral Beleza Distraída do Mundo. Quanto vejo, é Portugal até o tutano. Ao alto que é Banhos Secos, mora meu primo-direito Joaquim Abrunheiro Costa. Saúdo-o em rumoroso silêncio & invisibilidade à passagem cercã de sua casa. Já em postal-ilustrado se me abre a colina académica que a Cabra encima & coroa: bonito morredouro-de-anónimos, esta Coimbra ímpar.
    Tenho a manhã pragmaticamente resolvida. Custou-me esforço nenhum tratar da minha miudeza hodierna. Ando lendo Aguiar e Silva (sobre Camões) & Ian Watson (pretextando Tchekhov): boníssimos livros de diversa confecção & diverso mote. Um canichezito, de envergadura porta-chaves, ladreja, muito mimalho, a uma realenga pomba, a qual não liga pêva àquela miniatura de quadrúpede. É um quadro giro, sem violência nem escândalo. Distraída, a dona do rafeiro smartphona vulgaridades de reality-show a uma qualquer estúpida sua homóloga. Divirto-me sem precisar de gás-hílare nas trombas.
    Leitor fidelíssimo que sou de uns quantos titulares da Literatura-Comme-Il-Faut(-Da-Se), não me inquieta (juro que não) a realidade indesmentível & indesmentida de poucos leitores angariar quanto escrevo. Tem cada cão as pulgas que merece – nem menos, nem mais, nem sequer assim-assim. A uma varanda (muito) alta da Rua Cidade de Santos, um gato chora aflições ciosas: já a proximidade de Janeiro lhe desconcerta as hormonas, avento eu. Cor-de-camelo, assenta-se próximo da minha mesa um casaco de senhora próspera. Abatanado & copo com água, adoçante em vez de açúcar. Tez suave, feminil sem rímel, labiação sem lacre, olhos amendoados a teor de avelã. Dentes naturais. Sapatos de um castanho-avelã-também. Talvez sessentas & picos de nascida – minha puta-perdão-tiva noiva, pois. Sereno, serenamente, o Mondego, a humanos indiferente, corre sem pernas, voa sem asas, vai entregar-se à Figueira que por ele é Foz. Brilham oiros hialúrgicos: o Sol nas vidraças. Alta, a Conchada. (Da Conchada, morreu há dias o Carlos ‘Pirilau’, 62 anos, figura típica da Cidade, contemporâneo do ‘Pipi’, do ‘Taxeira’, do ‘Tatonas’, do ‘Maló’, do ‘Zé da Gaita’ & da dupla ‘Pedro/Adelino’.)
    Este é trecho de meu cancioneiro, meada a semana.
    Caladinho, atinadinho, sinto-me olímpico em pista.
    Fala-se de leitões da Mealhada & de aléns-da-Taprobana.
    Perder não é ilusório: ilusória é a conquista.
    Comenta-se o preço do polvo, a avinhada chanfana.
    Dourado no forno, o cronogalo-de-crista.
    Dizem que o Man’el Pinho sempre foi de cana.
    E esta semana joga com quem o Boavista?
    Na brincadeira (mortal, mortífera), é já meio-dia há três minutos. Ouço conversar. Gosto de ouvir conversar. Não tanto para saber o que se diz mas sim o como se diz. Chavões da linguagem, vícios da fala, clarões de sentido, lâminas retóricas. Gosto. Até em imo-silêncio tenho gostado & degustado – desgostado também, p’ra ser sincero, mas isso calha, faz parte, é o Diabo.
    Um papel seja luz em vida-treva,
    descreva de outro modo o que for comum:
    e que, a nenhum sentido, traga algum
    – tal louro para quem a tal s’ atreva.

    Babujo literatura sem atalhos
    de teclado electrocois&tal.
    Vejo-me hoje envolvido em trabalhos
    que eu poupara se ’té fôra mais mental.
    
    Ilusão nenhuma: par namorado
    beijoca-se borboleteando-se:
    & os tempos só se andam andando-se:
    quanto se move, há-de ser parado.
    
    Vi hoje sítio com nome de santa
    (que d’Filomena é, lá na Portagem):
    uma Dona Maria, que era Infanta,
    nome deu a Liceu, p’ra compostagem

    de quantas reses-simples-ai-liceais
    usaram tais fáscio-aposentos:
    também nós, velhos, temos nossos momentos
    – & nem todos resultam historiais.


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Canzoada Assaltante