04/09/2005

Fazer de conta


Confesso-vos aqui mesmo uma mania minha: faço contas esquisitas. Não o faço de propósito, acontece-me.
Dou por mim em plena contagem. Quantas moscas no ar da sala; quantas cadeiras ocupadas, quantas desocupadas no café; quantos minutos entre há pouco e daqui a pouco.
Uma ocasião, numa praia da Praia, contei quantas pessoas. Pior: recordo-me do número exacto: 148. Comigo, 149. Eu era o único corpo nascido dentro de pele branca. Nenhuma das 148 pessoas teve para comigo um olhar menosprezador. Nenhum homem me racificou, nenhuma mulher me soslaiou, criança alguma me estranhou. Lentamente, o sol ia-nos, a todos, eburneando, mudando o ‘i’ de eventual ‘ódio’ para simples ‘iodo’.
Quatro minutos depois da contagem, uma mulher francesa fez-se chegada: 150. Não 148+2, mas exacta indistinta centena e meia. O mar, sabedor ignorante de epidermes e pigmentações, continuava indo e volvendo.
Estive ali o mais que pude. Com a declinação da tarde, a rarefacção gentia foi esparsando o areal: 134, 118, 82, 14, 3: a francesa, um cabo-verdiano e um português. A mulher, com um cerce golpe elástico, descobriu então a uberdade, entrando na onda de abertos peitos: contei duas rosas brancas coroadas de açúcar cor grená.
Eu fingi que não contava. O outro homem nem fingiu: foi para a água também.
Passados sete minutos, já eram, eles, um par. Conversavam com os braços, riam com o cabelo, calavam-se com as bocas. Aí sim, senti-me a mais na conta. Destoalhei-me, chinelei-me e recolhi-me. Era já a noitinha, era já o asfixiado crepúsculo de Santiago.
Parei-me no bar do hotel (duas pessoas ao balcão, sete na esplanada, uma na sala de TV). Pedi um conhaque libertador de aritméticas. A mansidão tomou-me mansinha, levitou-me na voz eflúvia e brasileira que secreta aparelhagem emanava de entre vasos. A Lua, grande como o futuro e redonda como o passado, hostiava o além-varandim. Tomei no quarto um duche rápido, pus-me calças e camisa curta, penteei um risco decente e entrei na sala de jantar com a viciosa amargura dos que jantam sós.
Um minuto e doze segundos foram buscar e trazer o casal bilingue da praia. Tinham-se mutuamente convidado para jantar. Cavalheiresco, o homem acenou-me uma boa-noite que era só dele. A francesa, pas un mot. Só tinha braços, cabelo e olhos para ele, facto que achei e aceitei bem.
Pós-prandial, groguei-me devagar. Calado, rumoroso, quieto, inquieto – eu fui um corpo na esplanada marítima.
Tarde na noite recolhi ao quarto, fazendo de conta que não era comigo, a minha vida. No meu quarto, oito atentas moscas me esperavam.
Au revoir.

(Escrito para o sítio na net: www.liberal-caboverde.com
na tarde de 3 de Setembro de 2005, em Tondela.)



4 comentários:

Anónimo disse...

Contas tudo muito bem, mas andas a contar mal os dias, corrige a data: saturday, September 03, 2005.
Aparece mais vezes, já tinha saudades.
Um beijo

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Daniel Abrunheiro disse...

Data corrigida. Obrigado.

SDF disse...

Brilhante como sempre. Resultado óbvio para quem as letras são uma ciência tão exacta como a matemática.

Gostei do conhaque. Para os outros, "trabalho é trabalho, conhaque é conhaque". Para ti, o conhaque assenta bem é no trabalho. Que se alimente apenas de letras e não de ti e viva e morra na tua escrita, cada vez mais sóbria-mente bela!

Aquele abraço especial de Domingo de "Pázcoa"!

Canzoada Assaltante