Confesso-vos aqui mesmo uma mania minha: faço contas esquisitas. Não o faço de propósito, acontece-me.
Dou por mim em plena contagem. Quantas moscas no ar da sala; quantas cadeiras ocupadas, quantas desocupadas no café; quantos minutos entre há pouco e daqui a pouco.
Uma ocasião, numa praia da Praia, contei quantas pessoas. Pior: recordo-me do número exacto: 148. Comigo, 149. Eu era o único corpo nascido dentro de pele branca. Nenhuma das 148 pessoas teve para comigo um olhar menosprezador. Nenhum homem me racificou, nenhuma mulher me soslaiou, criança alguma me estranhou. Lentamente, o sol ia-nos, a todos, eburneando, mudando o ‘i’ de eventual ‘ódio’ para simples ‘iodo’.
Quatro minutos depois da contagem, uma mulher francesa fez-se chegada: 150. Não 148+2, mas exacta indistinta centena e meia. O mar, sabedor ignorante de epidermes e pigmentações, continuava indo e volvendo.
Estive ali o mais que pude. Com a declinação da tarde, a rarefacção gentia foi esparsando o areal: 134, 118, 82, 14, 3: a francesa, um cabo-verdiano e um português. A mulher, com um cerce golpe elástico, descobriu então a uberdade, entrando na onda de abertos peitos: contei duas rosas brancas coroadas de açúcar cor grená.
Eu fingi que não contava. O outro homem nem fingiu: foi para a água também.
Passados sete minutos, já eram, eles, um par. Conversavam com os braços, riam com o cabelo, calavam-se com as bocas. Aí sim, senti-me a mais na conta. Destoalhei-me, chinelei-me e recolhi-me. Era já a noitinha, era já o asfixiado crepúsculo de Santiago.
Parei-me no bar do hotel (duas pessoas ao balcão, sete na esplanada, uma na sala de TV). Pedi um conhaque libertador de aritméticas. A mansidão tomou-me mansinha, levitou-me na voz eflúvia e brasileira que secreta aparelhagem emanava de entre vasos. A Lua, grande como o futuro e redonda como o passado, hostiava o além-varandim. Tomei no quarto um duche rápido, pus-me calças e camisa curta, penteei um risco decente e entrei na sala de jantar com a viciosa amargura dos que jantam sós.
Um minuto e doze segundos foram buscar e trazer o casal bilingue da praia. Tinham-se mutuamente convidado para jantar. Cavalheiresco, o homem acenou-me uma boa-noite que era só dele. A francesa, pas un mot. Só tinha braços, cabelo e olhos para ele, facto que achei e aceitei bem.
Pós-prandial, groguei-me devagar. Calado, rumoroso, quieto, inquieto – eu fui um corpo na esplanada marítima.
Tarde na noite recolhi ao quarto, fazendo de conta que não era comigo, a minha vida. No meu quarto, oito atentas moscas me esperavam.
Au revoir.
(Escrito para o sítio na net: www.liberal-caboverde.com
na tarde de 3 de Setembro de 2005, em Tondela.)
4 comentários:
Contas tudo muito bem, mas andas a contar mal os dias, corrige a data: saturday, September 03, 2005.
Aparece mais vezes, já tinha saudades.
Um beijo
Data corrigida. Obrigado.
Brilhante como sempre. Resultado óbvio para quem as letras são uma ciência tão exacta como a matemática.
Gostei do conhaque. Para os outros, "trabalho é trabalho, conhaque é conhaque". Para ti, o conhaque assenta bem é no trabalho. Que se alimente apenas de letras e não de ti e viva e morra na tua escrita, cada vez mais sóbria-mente bela!
Aquele abraço especial de Domingo de "Pázcoa"!
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