© René Maltête
31/12/2012
30/12/2012
De um anónimo pela tarde de 31 de Julho de 2012 (in LABIRINTO SIMPLES)
“EU
SEMPRE FUI SOFRIDO NA MINHA
CASA,
EU DOU-L’E VALOR A ELA,
MAS
ELA VEIO-ME BUSCAR A
FILHA
A CASA, ELA VEIO-ME
BUSCAR
A FILHA A CASA MAS NÃO ME
VEIO
BUSCAR A MIM, EU AINDA GOSTO
MUITO
DELA MAS AGORA ISTO”
(Anónimo
no Café Colonial, Leiria, tarde de 31/7/12)
Escrevedeira-das-Neves: belo nome, belo ser
Vinha ontem no CM. Foi detectada em Portugal. Nem tudo nos corre mal, portanto.
27/12/2012
Rosário Breve n.º 289 - in O RIBATEJO de 27 de Dezembro de 2012
Crónica persa
Dona
Gerenciana Ávila de Montenegro sofreu, aos 87 anos de idade, a vontade
peregrina de casar-se.
Virgem
devota de horóscopo e condição, era senhora de seus dela haveres, plural que
incluía um gato persa, um naperon português, um jarrão da China e um pastel de
Tentúgal. Mais pinhais a perder vista, apartamentos na Lapa lisbonense, dois
petroleiros e uma caderneta da Caixa Agrícola com mais dígitos que eu caspa. Objecto
lúbrico de seu dela amor era um rapaz de breves 22 anos chamado Arnaldo. O qual
era marceneiro por castigo, que desistir de estudar no 8º ano dá nisto. Alto,
moreno, cabelo negro até raias de azul, espadaúdo, saudável como um pêssego e
portador de beiço grosso peliculado de saliva viva, o rapaz gelatinou as
deferências cardíacas de Dona Gerenciana, a pobre que pensava saber tudo da
vida até que o amor a arrastou em vórtice para os arrais desta crónica. Ventando-se
de nipónico leque à janela, a velha senhora esperava as nove menos cinco da
manhã e os três depois das seis da tarde de cada dia todos os dias, menos
domingos e meios sábados. Eram as horas a que passava Arnaldo, tão insolente
como inocente, deus de motorizada a caminho de setenta contos por mês. Belo
como o sol, fresco como a lua, Arnaldo lapijava, sem o saber, uma ruga nova,
cada vez que passava, no rosto já pergaminhado de Dona Gerenciana. Ele não se
sabia amado por toda aquela renda. O
rolo dos meses fez-se, num riscar de fósforo, dois anos. Aos 89 de idade, Dona
Gerenciana desfalecia mas não falecia, posto que o amor dá rijezas inauditas a
quem o sofre. Arnaldo, sempre marceneiro, sempre sem saber, passava sem saber
que ficava, mais fundo ficado e fincado no coração de melancia de Dona
Gerenciana. Esta história não é para rir, mas à vontade o faça quem a isto ache
graça. O gato persa, bufando de mau ciúme, escalavrou de sangue as varetas
varizentas de Dona Gerenciana, que estiolava de amor a uma janela que se
apagava. Arnaldo acabou arranjando outro emprego, pelo que deixou de passar.
Dona Gerenciana murchou como uma jardineira. As orelhas antigas fizeram-se-lhe
cera translúcida. O olhar, sumido pelo abuso da luz de quase um século,
amortizou-se-lhe como um resto de dívida. As sardas do peito uniram-se-lhe de
negro. Os joanetes pantufados romperam pela parede, causando mossas no reboco. Até
que, uma quarta-feira, Dona Gerenciana desistiu da janela. Recuou em passinhos
curtos de monge budista até o sofá, onde se lhe desmoronou o amor, todo o amor.
Chorou de mansinho a conta exacta de sal: se há coisa que a velhice traz, é a
medida certa do pranto. Depois, a coisa passou. Todas as coisas: o rapaz, a
juventude, a motorizada, a esperança, a saúde, a espera, a luz, a loucura.
Passou tudo. A senhora da Assistência Social veio dar com ela atravessada no
sofá, partida de tanto ter vivido sem viver. Chegou o ouvido à boca dela e
ainda teve tempo de guardar um sussurro sem explicação: “Eu volto, Arnaldo”.
20/12/2012
Rosário Breve n.º 288 - in O RIBATEJO de 20 de Dezembro de 2012
Não me leves de Audi a ver montras ou
feiras
Aqui
sou. Trabalho os papéis. A manhã já lá vai, não voltará. Outra por ela sim,
como se nada fosse o íntimo ínfimo sentido de tudo. Um carro, além-rio, desce
em solidão uma via secundária. Assim por igual cada um, não há nem é novidade.
Deixo que os elementos me pensem.
Derredor,
as mesas prandiais estão por recolher. Os fregueses foram às vidas, as
empregadas preparam o desarme dos cacos: pratos, chávenas, talher, garrafas, papéis
engordurados que ao menos serviram, como o estudo honesto da gramática, para
limpar a boca.
Se
me erguer daqui (ou disto) para um périplo pela Cidade, receio que as montras
me convidem a adquirir, não as natalícias inutilidades douradas do costume, mas
gente desvalida e relegada à subcondição de manequins de presépio franco: uma
professora reduzida ao mesmo zero do horário, um enfermeiro de menos de trinta
anos por dez réis de mel mal coado à hora, um agricultor de milho & batata
desavindo com a seriedade da terra, um ceramista sem barro e sem saber que
fazer das mãos, meia-dúzia ou uma centúria de jornalistas já não rapazes a quem
resta a redacção de folhetos de hipermercado (vulgo “conteúdos”), um polícia
mal aposentado que só agora descobre que andou toda a vida a (salva)guardar ladrões
– e um que outro autarca apeado à roda-baixa por ter cometido a local
insensatez da honestidade pública.
O
meu receio é interrogativo: quem me garante que o Ano Novo não será o do
relançamento das populares feiras de gado, substituída porém a cornúpeta
animália pela humana fauna ex-laboral?
As
moedas dão-me ’inda, todavia, para outro café, tenho do Sttau Monteiro o resto
de Felizmente Há Luar! para ler (nem
que só para reiterar que, entre o 1961 da edição prima da peça e o agonizante
2012 nosso, se dá uma contemporaneidade iniludível), se calhar demoro-me por
aqui um pouco mais a sul do céu, que hoje é uma campânula pardacenta, grisa e de
uma nublação sufocante aliviada apenas pelo zunzuar cuteleiro do vento. As
próprias aves parecem atordoadas: a falta que a luz lhes faz é a mesma que a
nós. Jovial excepção à sorumbática regra é a glória mijona daquele cachorro ao
pneu traseiro daquele Audi preto: um príncipe vadio que, como cidadão em manif,
se liberta em plena rua sem medo do bolor do ontem nem da mais que provável
antiguidade do amanhã.
Tendo
decidido ficar com o meu Sttau (arriscando-me embora a ter angústia para o jantar), acabo sendo remunerado pela pontual visão
da passagem de uma que outra portuguesa: esta de tão elevado mérito verde à
altura dos olhos com que nasceu para (vi)ver, aquela de tão perfeita turquês de
pernas tão bem agasalhadas de fazenda ambarina, aqueloutra ’inda que cangurua num
homem o desejo todo marsupial de lhe ir ao ventre.
Palavreado
de pobre, enfim, com que remendo, remendão, o rasgão inconsútil de uma vocação
de trapeiro.
E
quando finalmente me decido, nem que por tíbia imitação mas glorioso arremedo,
a fazer alguma coisa bem feita, descubro que o Audi preto de há parágrafos se
foi embora já, pelo que só me resta uma dessas moitas devolutas que, por aí
como por aqui, sempre são coisa que não falta, à falta de melhor e infelizmente
ao luar.
13/12/2012
Rosário Breve n.º 287 - in O RIBATEJO de 13 de Dezembro de 2012 - www.oribatejo.pt
Enjeite-Se a Rosa
mas a Laranja também
De não igual mas idêntica maneira, vai cada qual levando a
vida que lhe coube e cabe. Não é porém feliz verdade essa da evidência de
muitas vidas afixarem ao peito de vidro o mesmo que muitos estabelecimentos nas
respectivas montras: ARRENDA-SE,
TRESPASSA-SE, VENDE-SE. É o chamado fenómeno da LIQUIDAÇÃO TOTAL DA EXISTÊNCIA. Sou levado a lapijar esta
demonstração algo macambúzia pela visão do acordeonista.
É um cego esmoler de esquina – e da mesma estirpe dos que
Salazar, por cosmética, mandou encerrar em 1957 por ocasião da vinda a Portugal
do real casal britânico. Este músico pedinte de que vos falo, não sendo igual a
todos os outros, a todos os outros é idêntico: por ser, como eles outros, vivo
símbolo da vileza de uma sociedade que não cuida de se ver retratada a si mesma
num rosto desprovido da bênção da luz esmifrando migalhas de cobre ao pórtico
dourado das agências bancárias a troco e a compasso da lágrima ferrugenta da Rosa Enjeitada.
Do presépio orneje o burro santo e muja placidamente a
plácida vaca, que da caridade as palhinhas lhes darão, se não que comer, o que
tasquinhar. A compasso de acordeão ceguinho, é difícil todavia que envelhecer
em Portugal deixe de ser um crime, que a simples escola pública não mais seja
contabilizada como um deve mas como
um haver, que a saúde seja como
deveria ser saudação exercida localmente como direito terreno e não como
celeste privilégio de quanto é interior população, que a juventude não seja
levada a alugar e a empobrecer coração, cabeça e estômago nos modernos bidonvilles da velha estranja, que o
sistema judiciário se preste à justiça de ser justo por breve, idóneo,
imparcial e equitativo – ou que, já agora, os cronistas de última página possam
passar a tecer loas à pesca sustentada, ao direito laboral à medida do direito
humano, à potenciação fruteira de um solo úbere e à redução a desafio de futsal
da relação RTP-PSP.
Enquanto o cego toca, repugna-me o meu mesmo pendor por
assim dizer ecuménico, que à classe possidente há-de parecer descarada
comunistice e à classe despojada desperdício crasso de papel & lápis. Seja.
Seja. Não posso deixar de me sentir atordoado de impotência ante o
acordeonista, a quem aliás não obolei com um cêntimo que me não sobra nem vem.
O meu Portugal-dos-Pequenitos não é o de crianças violadas em seminários e/ou
barracas suburbanas. A minha geriatria não é a dos idosos ardendo devagar à
combustão das lareiras de pardieiros. A minha utopia é a de pão-com-manteiga,
não a de amanhãs que diziam cantores mas que afinal só tocam, mal, acordeão, e
que só não vêem porque não querem, ou não sabem, ver.
06/12/2012
Rosário Breve n.º 286 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt
Melão ao mar
Tirando os imbecis, que nem a si mesmos entendem, julgo
que toda a gente pode compreender toda a gente. A ler vamos.
Rodolfo Hilo de Astona, muito velho e quase cego,
revisita, no pino do Verão, a outra cegueira: o mar. No regresso a casa, ouve o
vento no sangue, o trabalho do sal na areia do coração. Pensa: “O ruído é o silêncio que não sabemos ler”.
O velho mete-se em casa e cala-se para dentro. Ouve o vento repetir nos
pinheiros a gravação das ondas da praia.
Maria de Jesus Taborda, vendedora de melões, dormita no
abafo da sombra da barraca de canas à beira da estrada nacional. Um chinelo de
borracha pinga-lhe do dedo grande. Duas moscas disputam-lhe a orelha,
despertando-a. A mulher mastiga em seco, abre um olho e descobre-se viva num
sopé de ouro branco: os melões por vender.
Conheci estas duas pessoas numa paragem de autocarro. A
vendedora de melões ajudou o velho a subir para a viatura. Deitou-lhe a rude
mão ao fraco sovaco e içou-o com inesperada delicadeza, como se erguesse do
prato uma codorniz grelhada. Maria escolheu para Rodolfo um lugar à janela,
sentando-se depois ao lado dele. Sentei-me atrás deles para ter que vos contar.
Ela disse: “Os
malandros dos incendiários, era amarrá-los a um pinheiro e deixá-los arder.”
Ele respondeu: “Moro ao pé de pinheiros.
À noite, parece o mar.” Ela perguntou: “Um
pinhal ao pé do mar?” Ele esclareceu: “O
pinhal é o mar.” Ela: “Antes fosse e
que os incendiários não soubessem nadar!” E ele: “Vejo que compreende.” Maria, feliz, disse: “Quando passar pela minha venda, dou-lhe uma peça de ouro branco, meu
senhor.” Rodolfo aceita: “Adoro
melões, minha senhora”.
Não é difícil perceber os outros. Difícil é termos alguma
coisa para lhes dar. Nem que seja um melão. Nem que seja o mar.
04/12/2012
Mariposa (republicação de texto in O PREÇO DA CHUVA, Coimbra, 2006)
Mariposa
E então uma mariposa, grande e inóspita como um
helicóptero de combate, apareceu no ar gorduroso do restaurante à cheia hora do
cozido. Gerou-se de imediato um vietnam de porras, braçadas e xôs. Guardanapos
anti-aéreos desfraldaram patriotismos de caça higiénica. Intrusa involuntária,
e aturdida de tanto pano predador, a mariposa tentou colar o ventre à pá do
heliventilador, de onde foi sacudida sem mercê por um comedor de farinheira que
se tinha empoleirado com garbo e sem cautela num banco precário. Tão precário
efectivamente, que deu de si, o banco, dando com ele, o da farinheira, no chão,
nadir frio do zénite ventilador. Houve risadas. O tombado, caído sem querer nem
remédio no ridículo, amuou e foi continuar o cozido numa mesa que não era a dele,
facto que aproveitou para se reenfarinheirar a gosto e à borla.
Entretanto, a voz da razão tentava serenar os desânimos,
que pela sala guardanapavam ainda com luxúria, mas tanto menos acuidade quanto
mais nervo. A mariposa resistia num voo copérnico, imprevisível, desesperado e
desesperador. Pertenciam, a tal voz e a tal razão, a uma senhora afinal mais
esbracejadora que uma deusa hindu ou um sinaleiro lusitano, desses de
antigamente que, de capacete cor-de-cueca e do alto de uma peanha de lata,
desorientavam vauxhalls e NSUs a caminho do ferro-velho do destino.
De repente, já não havia mariposa. Havia, em vez dela e
tão-só, um restaurante de preço popular virado de pantanas. O vinho derramado
pelo chão consubstanciava um lúgubre onanismo cor de sangue, um guardanapo
pendia como uma mão de velho do poster do Sporting local, duas cadeiras
tombadas juntas armavam uma aranha octoplégica, tudo somado a um dono da casa
perfeitamente estarrecido de desconcerto perante a evidência do prejuízo.
Mas, enfim, lá se recompuseram mesas e cadeiras, fraldas
de camisa e respirações. Famílias desunidas redesuniram-se e voltaram aos
enchidos, crianças de colo foram reencontradas já púberes, uma senhora
amelanciou o decote farto, o telejornal foi posto em som mais alto que de
costume e a ordem do mundo voltou ao mundo, o nosso mesmo mundo que só precisa
de uma mariposa para soprar na gentinha o escabroso tufão da loucura.
29/11/2012
Rosário Breve n.º 285 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt
Queres tu, leitor,
ser Maia, o Cartoonista?
Esta semana, sonhei que tinha saído o euromilhões ao Maia,
O António Maia, O nosso ínclito, egrégio e pátrio cartoonista. Pois foi. Sonhei.
Fiquei duas coisas com tal sonho: feliz (por ele) e à rasca (por mim). Feliz,
porque sim: um artista de verdade com dinheiro a sério não é todos os dias nem
todas as vidas. À rasca, porque o sonho tinha continuação & próximos
cartoons, perdão – & capítulos.
Indiferente, ele, à por assim dizer abstrusa e bermuda
triangulação de cama (porque afinal, sonhado embora, o bom Maia partilhava
comigo & esposa minha o esponsal tálamo), vem-me ele no sonho muito
mesmerizante-hipnótico-espiralar assim para mim: porque o sonho tinha
continuação & próximos cartoons, perdão – “Daniel, ó pá, porreiro, saiu-me a batelada toda, modos que me vou
pirar daqui p’ra fora tipo prà Noruega ou pr’Argentina e de vez, vês, ‘tás-a-ver,
só que não quero deixar mal o jornal e muito menos ainda os ainda leitores,
modos que fazíamos mas era assim, eu deixo-te umas vinhetas já tudo
lápis-coloridas, assim tipo uns cegos a pedir e a dar cavaco, um coelho não
porque isso é vulgar mas um gaspar e uma merkel e aquele careca-e-azevedo que
fugiu p’r’Inglaterra e o carlos-lopes e a rosa-mota, mais bónus assim a modos que
coiso alvarito-da-inconomia, tás-a-ver, tu ficavas com os desenhos e depois só
tinhas de fazer, já que não fazes nada, as legendas para os balões das falas assim
e tipo e a modos q’o Vasco Santana, olh’ó balão, que era balão e falava ao
mesmo tempo, ficava-t’eu muito agradecido, a pontos de que quando cá viesse, se
cá viesse ou fosse doido pa’ isso, assim de Buenos Aires ou Oslo, ’inda te
pagava umas enguias avieiras e um sável palustre amailuns tintos do Cartaxo e
umas talhadas daquele melão espanhol que em Almeirim sabe a independência da
Catalunha, qu’é que me dizes?
Disse-l’e que sim. Que remédio. Desde infante que sofro
cagufa de meter medo a contrariar sonhos. Daí que escreva. (Até poesia,
valha-me o Santíssimo. E boa, valha-me Deus.)
Modos que fiquei com o menino nos braços de legendar o
boneco. Por assim dizer. Vamos a isso.
CARTOON N.º 1 – DOIS
PEDINTES CEGOS, A e B. Diz o A: “A Merkel e o Vale e Azevedo vieram no mesmo avião.”
Remata o B: “Pois é, um mal nunca vem só.”
CARTOON N.º2 – OS
MESMOS DOIS CEGOS-DE-PEDIR. Diz o A: o subsídio de Natal do trabalhador é como
o Sporting no campeonato. Diz o B (muito compadre):
Então porquê? Ri-se o A: A gente sabe que ele devia ali estar, mas não está.
CARTOON N.º3 – OS
MESMOS CEGOS PEDINTES MAS COM BATA, GORRO E MÁSCARA ORAL (percebe-se que são
eles pelos óculos fumados). Diz o B: Ainda bem que o Gaspar não é obstetra como
nós. O A (é a vez dele de ser “compère”): Então porquê? E o B: Porque os bebés
já nasciam só com uma orelhinha e menos um terço do cordão umbilical.
CARTOON N.º4 – Carlos Lopes e Rosa Mota.
Pergunta ele: Sabias que o Marques Mendes quis praticar atletismo para imitar o
Cavaco? E ela: Ai foi? Não fazia ideia. E ele: Foi, mas teve de desistir dos
110 metros/barreiras porque se aleijava muito na testa.
CARTOON N.º5 – (e
penúltimo, chiça). Voltam os pedintes cegos. Ao fundo, uma cruz de santuário e
uma trupe de manequins fato-gravata de montra sem cabeça. O A: Ocorre-me que o
milagre de sair da crise só levando os ministros a Fátima. O B: Achas que
resultava? A: Tentar não dói. Vinha a noite, metíamos os gajos na procissão e lá
iam eles. De vela.
Nisto, a minha
senhora acordou. Felizmente, o nosso cartoonista já tinha zarpado. Segue-se o
diálogo então desenhado:
CARTOON N.º6 – A
minha senhora: Tiveste um pesadelo? E eu: Tive. Ela: Deixa, que já passou. E
eu: Passou, o tanas. Não sei que raio hei-de fazer ao alvarito-da-inconomia.
Nem vocês.
22/11/2012
Rosário Breve n.º 284 - in O RIBATEJO de 22 de Novembro de 2012 - www.oribatejo.pt
Peço a
palavra
Duche tomado, queixo rasurado com pancadinhas
finais de loção pós-barba, roupa decente e sapatos não enlameados: eis como
todas as manhãs, muito cedo, me apresento ao público regional do café do
bairro.
Às seis e ¾ somos pouca gente – e sempre a mesma,
para nosso burguesinho alívio. Tenho logo direito, como os demais íncolas, ao
nome próprio e a nem ter de dizer ao que venho – que por igual me não variam o
baptismo e o consumo. Sento-me à mesma mesa da galeria e cafeíno-me devagar
enquanto faço de conta que as não espero. Mas espero-as. E elas nunca me falham,
nunca tardam, não deixam de vir jamais: as palavras de cada dia.
São os brinquedos que levo mais a sério. É porque
elas trazem pessoas dentro. As palavras trazem pessoas dentro – o contrário é
que nem sempre. Sem palavras que as contivessem, as pessoas valeriam menos do
que sinais de trânsito numa rua só pedonal. A palavra “Rita”, por exemplo,
contém duas dedadas castanhas chamadas “olhos”e um travessão de discurso directo
chamado “boca” que emanam “Senhor Daniel, então o cafèzinho a dobrar mesmo como
mand’-a-lei, pois atão não é verdade?”. É, Rita.
A palavra “Choupal” voa-me em falso e em vão para
uma casa que já não tenho numa cidade que não existe já (os Pais eram a casa,
eram eles a cidade).
A palavra “paz” faz-me sorrir por causa do Nobel
dado este ano à União Europeia, quando até a Rita sabe (e di-lo sem papas de
gaguejo) que “ó senhor Daniel, deviam mas era tê-lo dado aos nossos tribunais, a
esses é que sim, ora veja-me o senhor Daniel, o Isaltino em paz, o Valentim em
paz, os coisos do BPN em paz, os dos submarinos em paz, os casapiadófilos em
paz, é mesmo como mand’-a-lei pois atão não é verdade?”. É, Rita.
A palavra “pedra” não me faz sorrir – por não ser
palavra que se ponha nas mãos de meia-dúzia de fedelhos, ainda por cima
covardes, que, à frente de manifestantes justamente indignados mas dignamente
cívicos, rastilham na polícia uma reacção só cirúrgica no banco das urgências
hospitalares.
A palavra “mulher”, tirando a que da particular
minha é particularmente continente, é-me já, por má-sina, mais volátil do que a
branca cegonha cujo voo caia de alvinitente neve alada os virentes arrozais e
os púrpur’anilados céus de Portugal: pois que, à beira não tarda do meu
primeiro meio século de idade, já a próstata me as faz ver tão mais
formosa’petecíveis quão mais altamente longínquas e mais longemente fora de
unhas.
À palavra “esperança” não dou, até por aziaga rima,
confiança. O ovo-no-cu-da-galinha não me é filosofia benigna. Será luzinha
periclitante ao cabo do túnel do doente terminal. Ou do honesto sportinguista.
Ou do crédulo penitente de impenitente e peregrina mania do vai-lá-com-deus.
Sou mais do correr do que do fiar-me-na-virgem.
É bem verdade porém que, qual canavial inclinado pela
tormenta eólica, tremo o meu bocado à plural palavra que tão singular é: “filhas”.
Rosas ambas de alvura a mais nívea, vivo lírio cada uma cujo caule declina a
etérea desinência que me levou a ajudar a fazê-las de olhos fechados e braços
abertos, fazem-me, agora que deram já as sete e meia, merecer da manhã nova a
sagração boa e o bom verniz de estar vivo.
Assim é, pois, que dou por mim cuidando de não
atirar, afinal, pedras à esperança, indo em lugar disso com elas, filhas e
palavras, um destes dias de melhor sol, a Coimbra rever a casa que era dos meus
Pais e que eles eram, sítio onde deveras se aprende o que, em letra e espírito,
mand’-a-lei.
Não é, Rita?
16/11/2012
Rosário Breve n.º 283 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt
Mas o futuro
é que é manchete
Uma coisa talvez muito engraçada que nós,
desempregados, temos – é fazermos greve geral todos os dias, por isso bem dispensando
nós, desempregados, a chatice do pré-aviso e o cataplasma da data marcada, que
marcada bem a temos nós, desempregados, e logo com o destino, que nunca foi
pêra doce, antes sim amarga pílula.
Data marcada é por igual essa quarta-feira que foi
o dia 8 de Novembro de 1985, vez prima em que o nosso O RIBATEJO viu a luz. Festiva efeméride, que hoje albardamos de
anos 2vinte7sete ao dorso muar do tempo que passa.
Ter nascido o jornal foi coisa boa, até porque a
extremosa gente da região sabe ler, faculdade que sempre a leva ao pensar. E
pensar nem sempre é sinónimo de cefaleia, ao contrário do que as ditaduras têm
por garantido e as religiões por anátema.
Como o tempo me não falta senão pela falta que me
faz, trabalhando, ter menos tempo, dei por mim na especulação. Não na de
capitais bolsistas mas naquela de congeminar coisas do tipo
e-se-tivesse-sido-daquela-maneira-e-não-desta-assim? Congeminei eu isto: e se O RIBATEJO tivesse nascido antes, muito
antes daquela quarta-feira 8/XI/85? E se? Teria sido o giro e o bonito, avento
eu. Já estou a ver as manchetes datadas:
O RIBATEJO, 2
de Dezembro de 1640 – SANTARÉM FOI A PRIMEIRA A ACLAMAR O NOVO REI.
Ou: O
RIBATEJO, 19 de Janeiro de 1919 – EXÉRCITO REPRIME REVOLTOSOS À ESPADEIRADA.
Ou: O
RIBATEJO, 23 de Maio de 1981 – INSTITUTO POLITÉCNICO DE SANTARÉM INAUGURADO COM
MÃO DE MINISTRO – Vítor Crespo fez as honras da casa.
Ou: O
RIBATEJO, 30 de Junho de 1984 – EANISTAS CONSPIRAM NOVO PARTIDO EM ABRANTES.
Ou: O
RIBATEJO, 15 de Junho de 1985 – TOMAR EANES POR HERMÍNIO – partido de
iniciativa presidencial nasce à beira do Nabão.
Não tendo ainda visto a luz do dia nem a da
publicidade, natural (e inevitável) seria que o nosso O RIBATEJO não pudesse clamar estas manchetes e se visse, como viu,
a entrar vida adentro com um afã de actualidade que por profissional mérito
próprio vai levando e mantendo nos tempos que correm. E que correm não se sabe
bem para onde. (Quero eu dizer: saber, sabe-se, mas não é boa política estar a
amendoar pelo amargo numa ginjinha de festa de anos, que é o que esta crónica
afinal é.)
O RIBATEJO aqui está. Prepara-se até
para matricular-se num novo ciclo de vida, de que oportuna e mais clara dicção
há-de pertencer a quem o dirige, faz e destina. Sinto-me feliz com isso, até
porque quinta-feira (ou seja, hoje, 15) vou muito arrepimpadamente almoçar à
velha Scalabitas com gente que é pessoalmente boa todos os dias e
profissionalmente óptima todas as quintas-feiras. O que quer dizer que é gente
boa até no dia seguinte.
No dia seguinte à tal quarta-feira, 8 de Novembro
de 1985.
08/11/2012
Rosário Breve n.º 282 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt
Pode ser que saia
Nos antigamentes da “Outra Senhora” era naturalmente à
boca-pequena que se murmurava um chiste anti-salazarista de largo espectro de
acção perfurante. Tratava-se de determinar com exactidão qual era, de facto e
deveras, o número de saias com acesso ao gabinete privadíssimo do ditador. Ao
contrário da boa prática tão própria dos mais exímios contadores de anedotas,
começo pelo fim, esclarecendo desde já o enigma. Eram sete, as tais saias.
Contai-as comigo.
A da D. Maria, criada de e para todo o serviço. Uma.
A do Cerejeira, cardeal-patriarca do regime tão mais
católico quão menos cristão. Duas.
O doutor Bissaya Barreto, influente e reservado confidente
da tenebrosa aventesma, conta sozinho por mais duas (bi+saia). Vamos, portanto,
em quatro.
E as outras três?
As outras três eram todas, e só, do Povo. Do Povo, sim,
posto que quando, por absurdo, distracção ou milagre, o Povo lograva penetrar
no tugúrio oficial do Salazar, este, histérico de repugnância e eriçado de nojo
à vista da comum gente, apalitava-se logo nas aracnídeas canelas e guinchava:
“Saia! Saia! Saia!”
Eis que assim temos, pois, as tais sete saias bem
contadinhas: se não pela anémica narração minha, ao menos por exacta e
pragmática aritmética.
Pronto, esta já está. Já está mas ainda me sobram papel
que encher e tinta com que o fazer. É com contada e contida liberalidade que
proverei ao devido número de caracteres, para satisfação e alívio do
departamento gráfico deste jornal que dá riba ao Tejo e voz com rosto ao largo
Vale. De saias, passo a ruas. Tome-se nota: não estou a dizer que é meu
travestido costume passar de saia pela rua. Chiça, não. Do tema das saias passo
ao tema da toponímia arterial urbana. Isso. Vamos lá então.
Sempre gostei muito dos nomes das terras portuguesas. Tenho
até um caderno exclusivo para anotar os baptismos da nossa geografia. Dos nomes
das terras e dos nomes das ruas dessas terras. Foi por causa disso que me
lembrei de escrever às câmaras e às juntas de freguesia (enquanto elas existem)
no sentido de me oferecer como padrinho de vielas, de becos, de pátios, de
travessas, de arcos, do que for. Não peço avenidas, nem praças, nem grandes
passeios como aquele das Águas de Santarém à Coreia do Sul que ninguém sabe
para quê mas toda a gente conhece por quem. Mas adiante, que hoje tenho a
pólvora molhada. Exemplo: a rua daquela escola primária que fechou. Proponho
que deixe de ser banalmente chamada Rua da Escola. Em lugar disso, que seja Rua
Miguel Relvas, por motivos carecas do conhecimento geral. Outro exemplo: a rua
onde em Santarém pernoitava, quando alegadamente edil, o senhor Moita Flores.
Não sei como ela se chama, mas sei como deveria passar a chamar-se: Rua D.
Sebastião. Estão a ver a ideia? Uma campanha esquizóide e algo pulha contra o
mouro vadio, uma cortina de nevoeiro
e já está: nunca mais ninguém o viu, nem espera voltar a vê-lo.
Termino em apoteótica trindade. Isto é: com três ruas.
Duas condições: a) todas as terras do Ribatejo as comungarem e b) o uso da
vírgula. A vírgula no nome dessas três ruas é fulcral, como vereis. A figura
tutelar que invoco para o triplo baptismo é não mais nem menos do que Pedro
Passos Coelho. E todas as ribatejanas localidades, para bom exemplo das
portuguesas restantes, passariam a exibir uma tríade de artérias cuja nomeação
valeria a triplicar. Desta maneira:
Rua, Pedro
Rua, Passos
Rua, Coelho
!!!
05/11/2012
Faz hoje trinta e cinco anos que vi um texto meu publicado
5 de Novembro de 1977.
Há trinta e cinco anos, na página infanto-juvenil do jornal "O Diário", que era dirigida por Oriam (anagrama de Mário Castrim), vinha a lume um texto que ofereci, por justa dedicação, ao meu Pai.
Tinha treze anos. O meu Velhote, sessenta.
Tinha treze anos. O meu Velhote, sessenta.
Ele gostou.
Também gostou que eu aparecesse assinado com o nome dele, faltando apenas o "dos" antes do "Santos".
E lá vinha o nome da terra, Pedrulha, e da cidade, Coimbra.
Trinta e cinco anos.
Caraças, ainda ontem.
03/11/2012
O Preço da Chuva (2006) - republicação de algumas páginas - Ó LEANDRO!
Ó LEANDRO!
Esta semana, não sei porquê, voltei a
pensar no velho Leandro. Deixem que vos conte. O Leandro era um velho muito
velho. Tão velho, que já era velho na minha infância. Era jardineiro, dizem que
bom. E bebia como uma nuvem. Tinto, cheio, muito. Ia de autocarro para a
cidade. Nunca pagava bilhete. Nem lho pediam. Era uma figura pública: a
primeira figura pública que conheci. Para prazer de todo o mundo, insultava
todo o mundo com os palavrões mais grossos do nosso idioma. Mas só o fazia
quando provocado. Quando não, respirava o silêncio de uma solidão sem tréguas.
Pelo fim da tarde, passava pela minha rua a
caminho de casa. Nós, miúdos, escondíamo-nos atrás de um carro ou de uma
oliveira e gritávamos-lhe: “Ó Leandro!”. Só isto, mas era quanto bastava. O
velho alinhava logo na festa. Punha-se a vociferar torrentes e torrentes de
obscenidades a propósito de coisas tão existenciais como, por exemplo e
sobretudo, o modo como tínhamos sido gerados e por quem. Claro que, na boca
dele, as nossas mães nunca coincidiam com os nossos pais. Era fascinante.
Morreu muito velho na casa do Vale do
Forno, entre flores e laranjeiras e cheirando a mijo e a santidade.
Mas ainda o vejo, mais eterno que vivo, ao
pé da casa da Cuca. Eu vinha sozinho e despreocupado. Quando dei de caras com
ele, o sangue evaporou-se-me do corpo. Ele trazia, como sempre, a tesoura de
podar. Nessa altura, eu era de tão pouca idade, que ainda tinha medo. E tive.
Nessa ocasião fulminante, tive muito medo. Era ele e eu, sozinhos no mundo. Debaixo
do sol ardente que me ilumina sem clemência nem crepúsculo a infância perdida
para sempre, só ele e eu éramos, estávamos, existíamos. Mais ninguém. Hora
terrível, avassaladora, hora de agonia.
Em puro desespero, com o coração feito num
nó de água chilra e as tripas reduzidas à condição de serpentes murchas, pensei
num estratagema para evitar que a tesoura dele confundisse o meu pescoço com um
ramo de sebe. O estratagema era este: passar por ele e dizer “Boa tarde, senhor
António!”. Porque ele era António, não era Leandro. Respirei o mais fundo que
podia e tentei. Mas, ao passar por ele, o medo traiu-me. Gaguejei isto: “Boa
tarde, senhor Leandro!”... O velho, furioso como um deus pobre, levantou a
terrível tesoura de podar e apontou-a à minha cabeça de franganito. Desatei a
correr como um TGV de calções. Só parei nesta página. Ao longe, ainda ouço o
velho a ralhar coisas sobre a minha Mãe, coisas em que vos peço não acreditem.
Acreditem nisto, apenas nisto: aquele era
um bom homem que cuidava de flores. E por tão bem ter cuidado de flores, merece
bem, penso eu, a rosa de uma crónica em memória de si, senhor António.
01/11/2012
Rosário Breve n.º 281 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt
Só
para pobres
Era uma vez uma casa tão pobre, que até os
buracos do telhado eram emprestados.
As pessoas entravam de costas porque não
havia como dar a cara a tanta miséria. Era sempre Inverno naquela casa, de modo
que se podia ir lá dentro ver se estava a chover. A humidade era tanta, que até
os ratos tossiam. Pai, mãe, avó e crianças odiavam-se a uma só voz, roubando
uns aos outros até o ar da respiração. Era má ideia morrer ali, talvez porque
no dia seguinte nunca havia funeral, mas cozido à portuguesa. Naquela casa,
tudo acontecia em câmara-lenta. Uma frase dita hoje só era ouvida dois meses
depois, chegando as palavras pela ordem errada e cheias do bolor da demora. Depois,
era preciso raspar os substantivos com uma faca para que se não parecessem tanto
com papéis rasgados. A vida era uma coisa tão assustadora, que até as crianças
esperavam a um canto que ela passasse sem as ver. E mesmo o sol, cujo
nascimento, a par da morte, dizem ser a melhor democracia, chegava cor-de-café
àquela casa irremediável. O próprio Tempo era outra coisa. Um mês, ali, não
tinha trinta dias, mas sessenta noites.
E sem lua eram as noites, pelo que os
lobos, sem terem a que uivar, enlouqueciam de mudez. Nas trevas perpétuas, os
olhos brilhavam como pirilampos cegos de sal. Enguias fosforesciam no veludo
frio do pensamento. Sobre a mesa, o fantasma de uma galinha punha ovos negros. Ao
lado, um machado vibrava sem que lhe tocassem. No chão, dormia a sombra de um
cão que não estava lá. Um dia, o país onde essa casa ficava, mudou de governo. Os
novos governantes eram muito boas pessoas. Muito sérias, muito missa-das-onze,
muito cuspifalantes. Resolveram tudo lindamente: Impostos, Justiça e Educação,
Saúde, Emprego e Administração, Circo, Tropa e Europa, Comércio, Indústria e
Ambiente, Futebol, Andebol e Parapente, Literatura, Ortografia e Saneamento,
Agricultura, Previdência e Planeamento, Suinicultura, Autonomia e Vaca Fria –
tudo ficou um brinquinho. Visto do céu, o país brilhava de exposições
universais e europeus de futebol. Visto de lado, o país exibia um perfil de
imperador romano. Visto de costas, o país nem parecia ter cauda. Visto de
frente, era isto que vos conto. Pronto, enfim, as coisas foram andando, o
totoloto saindo, a pedofilia entrando, o amor cada vez mais lindo, os pombos
arrulhando, o eurodólar subindo, o preço do pão baixando, os ucranianos
sorrindo, as baleias aumentando. Restava, no entanto, um problema. O problema
restante era o problema da Pobreza. Quando chegou a vez da Pobreza, o novo
governo comprou um catrapilo assim muito grande, muito poderoso e muito amarelo.
Uma espécie de dragão mecânico com S. Jorge a conduzir. Vai daí, o governo
mandou arrasar tudo, erradicando de vez essa purulenta chaga social. A Pobreza
deixou de existir para sempre. Materialmente arrasada, a Pobreza tornou-se um
caso mental.
Era uma vez uma casa, era uma vez um país.
Quem tossir, é rato.
28/10/2012
ANTES DO REQUIETÓRIO - 52 - manhã de domingo, 28 de Outubro de 2012
52. DUAS MISSAS
BREVES
Leiria, manhã de domingo, 28 de Outubro de
2012
I
Quando vejo os velhos, é como se estivesse
no desembarcadouro da gare. Ferroviária ou marítima. É ver os que estão de
partida. Nunca como ante eles sinto a espessura do termo passageiros.
Entre os velhos, há os que nunca se
desmatricularam da vida tida por simples, esses que se ligam à terra para
quanto sempre lhes coube e houve. A vida interior do hortelão, percebes? Esse
músico vitalício ligado ao solo por via das partituras vegetais. Em coro e a
solo, derredor, seus animais. Bucolismo tonto, o meu. Nada me interessa se
meu, se alheio. Não se trata do elogio do asceta, do pária, do apátrida, do
associal. Trata-se do homem com suas couves, sua leira, sua água em
profundidade freática, seu porco salgado em arca, sua metafísica de vinho
contado para todo o ano.
Temo não lograr vir a ser um poeta desses
mas tão-só este homem que entre pastelarias julga preferir Maeterlinck a
Claudel.
Porejam luz fresca os azulejos da manhã: a
esmalte azul moldurados, arvoredos e chaminés negoceiam em placidez a
civilização. Um cunho primitivo salva-nos do horror possível da desatenção. É possível
sozinhar sem desespero a instância do país matinal. Ou assim: é possível viver
todo-só de humanidade agarrada ao corpo como um cheiro de cozinha à roupa.
Ao menos partilho isso já com os velhos. E
contigo – que és aquele tu a que sempre me dirijo quando parece mal
gesticonversar sozinho, à maneira do espelho-da-barba.
Percebo, percebes (perceberás?), que isso a
que chamam Morte é um telefonema que
nos fazem enquanto somos quem atende o telefone e não (ainda não) o assunto
dele.
De modo que todo e tudo o restante são a
vida, não é?, a vida – que uns se limitam a levar vivida, ao passo que outros
levam a transformá-la em vida.
(Talvez te tenha rezado alguma coisa, não
sei bem, ora-me tu a mim agora.)
II
Encostado fumando devagar a um dos pilares
da galeria já tomados pela luz directa da manhã. Absorvo e assimilo o sol no
corpo como o giz recebe e apre(e)nde dos dedos do menino primário a caligrafia.
Olho o quadro, que repito nos dias través as estações: a área desportiva
obsoleta já à nascença, a veia viva via-rio que a escolta de árvores ri de
brilhos ridente-brilhantes, homens e rapazes numa coragem de calções
trabalhando-se tónico-oxigénico-musculares, mulheres-da-erva rumando a capela
alvinitente, alvidúcida, cegas do Deus da mesma rotina com que enxundiam o
porco, esmadrigam os filhos, esborcinam os púcaros, esnocam as oliveiras e
esgarçam a si mesmas, o sempiterno cão público vadiando sua leonina
privacidade, o cardápio de possibilidades sexuais as mais inclementes que a
falta dominical de táxis adensa nos homopeões de pochette à cata de rapazinhos
de mochila,
mas tudo porDeuscomDeusemDeus
ao Sol,
que o Mesmo Um e Outro são,
ide,
que
ite missa est.
25/10/2012
Rosário Breve n.º 280 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt
Hospital Toyota
Aqui há tempos, um incómodo persistente no joelho direito
levou-me a procurar um edifício público onde por enquanto ainda vão aceitando
coxos provisórios que pagam impostos. Não se tratava, é verdade, de uma dor
incapacitante, mas era das peremptórias, daquelas que, como o Toyota de
antigamente, ameaçam ter vindo para ficar.
Porque todos somos paramédicos do nosso próprio corpo, não
me foi difícil perceber que parte da caminhante algia era filha natural de
remotas patadas recebidas, há muitas décadas, no decurso da minha breve,
gloriosa e irrelevante passagem pelo futebol distrital do tempo dos pelados e
dos bufetes de balcão de contraplacado com carrascão traçado de gasosa de
pirolito mesmo à beirinha da cal viva dos recintos. Outra parte da maleita,
quiçá mais determinante e bem mais determinista, vinha daquilo que a todos nos
leva: a oxidante osteoporose da idade, cujo inexorável divertimento resume um
ex-moço a um emaranhado de arames locomotores cuja maleabilidade vai dando
lugar, com o tempo, ao desengonço roberto das marionetas úrico-artríticas. Uma
tristeza de sapatos, enfim. Lá fui portanto ao hospício.
No vidrofone das inscrições, uma arara de trufa oxigenada
quis saber o que é que eu tinha. Eu disse-lhe que vinte euros. Ela disse que
sim e botou-me o nome no computador. Eram elas as oito da manhã. Quase à hora
de almoço, um rapaz alto de fato-macaco azul assobiou-me que o seguisse.
Segui-o. Disse-me ele: “Vá-se orientando
pelas placas conforme o seu caso, ó chefe.”
Uma placa dizia: QUEIXINHAS.
Entrei. A seguir: HOMENS – SENHORAS – CRIANÇAS ATÉ AOS 35 ANOS. Fui
pela esquerda (coisa que sempre faço nas eleições com o mesmo resultado do
joelho). A seguir, LETRAS – CIÊNCIAS –
NOVAS OPORTUNIDADES. Comecei a desconfiar o meu bocadito. Como já li
qualquer coisita de Fernando Namora, fui pelas LETRAS. A esperança de topar com a simples indicação ORTOPEDIA abandonou-me de vez à visão da
bifurcação seguinte: NEOGARRETTIANOS à
esquerda e SIMBÓLICO-DECADENTISTAS à
direita. Aí, comecei a ladrar-me baixinho uma tosse de obscenidades relativas
às progenitoras dos escritores de placas. Ainda assim, manquejei pelos
imitadores de Baudelaire. Lá dentro, era pior: à esquerda, ORTOGRAFIA DE 1911; ao centro, ORTOGRAFIA
DE 1945; à direita, ORTOGRAFIA
NENHUMA À MODERNA. Por essa altura, já quase o joelho me não doía, ao
contrário da alma. Peguei no telelé e roguei à Senhora dos Aflitos, vulgo minha
mulher.
Desandei dali por portas não lidas nem contadas, até que
cheguei a um corredor de lúrido néon crepuscular ao cabo do qual a minha esposa
me esperava com aquele sorriso todo mãe que as mulheres afivelam à boca desde
meninas. Atrás dela, todavia, três portas gritavam maiúsculas.
A do centro, PS.
A da direita,
PSD/CDS.
Mas a da esquerda dizia uma coisa simplesmente
maravilhosa: SAÍDA.
Estava porém impedida a duplo aloquete.
Que eu saiba, ainda está.
E eu também ainda lá estou, bambo da perna e marreco de
toda a esperança, sem sequer a mínima de um pirolito ao intervalo.
19/10/2012
ANTES DO REQUIETÓRIO - 37 - III - Leiria, tarde de sexta-feira, 19 de Outubro de 2012 (foto da mesma data)
37. PEDRA E ’SPUMA
Leiria, tarde de sexta-feira, 19 de Outubro
de 2012
III
Aí o temos, o fim da natural luz da
jornada.
O fim é natural. A Natureza não é final.
Não é ainda o frio, não é já o calor.
Comprei pão.
Na iminência do regresso a casa (meu
recomeçado reduto final também), faço ’inda por recolher um pouco do
mund’humano.
Três homens idênticos à idêntica
humanidade, mesa ao lado dextro. Tomam os três whisky do bom com um, dois dedos
de água lisa. Os três salvam o País. Estão na fase doutrinária do encopanço. Um
é de óculos crespos, testa abrindo clareira alta. Outro é vasto como uma dorna,
casaco encarnado de lã, coxas continentais, sapatos um bocado reles. O outro é
do tipo bancário wanna-be-banqueiro. Mas o whisky é de boa marca, deixemo-los
falar.
Derredor, a progénie é típica do
entardenoitecer:
um casalito de cores cinzas de mãos mútuas
e comovidas umas com as outras;
uma rapazita de semblante espertote
folheando revista que não lê;
um rapazote de axúndias que o abonacham, de
uma bovinidade delicodoce no falar, bigodito bistrado, fuliginoso, semeado ao
vento;
uma mulheraça de pé, pernas mola-da-roupa
juntas à cinta por os arames fartos da cueca ampla.
É, alfim, um mundo bonito. Ainda bem, posto
que único. Vede comigo:
com a mão esquerda ocultando a boca, um
rapaz de jaqueta cor-de-pombo telefala imóvel. Ri-se, a mão vibra. É corado,
rubicundo: talvez de falho bombear seja dele o coração físico. É quase magro de
mais. Nem formoso nem hórrido: um tipo como eu e como tu, não andam propriamente
por aí georgeclooneys a dar com um pau.
Entretanto, a espertota da revista adquiriu
companhia: é uma dríade de bom cabelo lacado, de que o quieto verniz fulge
ilusória dinâmica. As duas já conversam. Fazem-no baixinho e em compenetração –
não custa lobrigar que é de efebos donzéis feito o assunto delas. Junta-se-lhes
uma terceira, cuzito magro, varetas tíbias, disúrica talvez, ar de quem por
melomania tem tão-só o toque da Nokia.
Mas, enfim, moças: bonitas portanto, por mais inócuas.
Entrementes, o trio whiskeyro dá-lhe forte
no malte. Comemoram os respectivos desaniversários de 364 dias. Fazem bem.
Suspeito-lhes esposas amaras, avaras, secas e ínvias. O tempo e os casamentos
não vão fáceis, tirante o meu.
Achega-se agora ao café e à página um mote
veramente interessante: uma gansa volumosa de carnadura apertada em boas
gangas, claras redondezas pró-matriciais não há-de tardar muito, se acaso não
desovou ossos já. Sei que se chama Clotilde porque assim a apodou a do
casalinho de cinzas. Boa para namorar aos
domingos, como dizia um ex-amigo que tive no século passado. A Clotilde
fuma daqueles cigarros que a Adelaide do Adelino fuma também, uns assim para o
branco, o comprido e o fino, acho que aos dez em cada maço. Gosto das botas da
Clotilde: de cabedal caçador, tipo medieva sala-de-armas. Nunca saberá, a
coitada, a feliz, que me perde.
Não perco eu mais nada: já os ácidos me
revoluteiam o odre gástrico, que toda a tarde enferretei de café bem torrado.
Faço a verdade de conta: que nada é comigo, pelo que ensaco os pertences
papeleiros e as ferramentas lápis-tintureiras, pelo que pago, pelo que vou para
casa, onde as pequenas plantas, em pequenos vasos, ajardinam o lancil banal e
feliz da cozinha, cuja janela abre para a rua leiriense em pleno, valha-nos
Deus, século XXI.
(E ao chegar a casa a notícia da morte de
Manuel António Pina. Viva Manuel António Pina.)
18/10/2012
Rosário Breve n.º 279 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt
Susana M., senhora
nossa conhecida
Chama-se Susana M. e é caixeira de farmácia. Tem um filho
que praticamente herdou sozinha de si mesma, contada e descontada a
irrelevância do masculino concorrente que com ela, há vinte e oito anos e nove
meses, o co-gerou antes de fugir (todos os homens fogem, por esta ou aquela
razão, por nada ou por tudo, a torto e a direito). O menino nasceu rijo,
pondo-se de imediato, de goela escancarada como um tenor, a berrar vida, pelo que
também de imediato começou Susana a pagar-lha.
O infante fez-se rapaz, o rapaz entrou no ensino superior,
ninguém sabe por nem para quê. Dez anos depois, ainda lá está, superior e por
ensinar. Susana paga.
De novo só na comezinha realidade quotidiana, Susana
cumpre o horário de trabalho de tão lavada maneira quão lavado é o branco da
bata profissional com que ao balcão transparece, qual anjo compadecido da
carestia dos medicamentos com que os pobres vão adiando a morte e a saúde.
Do salário, cada fim de mês, a caixeira liquida prontamente
a renda de casa e os serviços que à vida privada dão dinamismo: água e luz, gás
e lavagem das escadas, dízimo evangélico e quota duodécima da Associação de
Senhoras que Não Dizem Mal Umas das Outras. Aos sábados à tarde vai ao hiper,
onde se demora pouco e de onde regressa com os despojos triviais das comuns precisões:
detergentes para roupa & louça, água mineral, uma caixa das médias de
bombons, pescada congelada, feijão-frade de lata, ovos, leite condensado, comer
para o pássaro, comer para o inevitável gato de todas as mulheres sós, velas
aromáticas de cabeceira, revista TV, pudim em pó, biscoitos de canela e sopas
instantâneas daquelas cuja imitação de marisco nunca deixa de lhe despertar no
palato a obstinada nostalgia das férias de um Verão improvável à face de uma
toalha de areia estendida à vista do mar do Tempo perdido. Na caixa, Susana caixeiramente
paga.
Aos domingos, permite-se o luxo sensato de dormir duas
horas mais, que pela semana vai descontando em clareiras de insónia. Acumula
saldo no telemóvel: os recarregamentos periódicos obrigatórios empilham valor
por gastar à razão directa dos telefonemas mudos que não faz. Todos estes anos,
saiu e deitou-se um par de vezes com um médico quase local que fumava mais do
que interessava, depois com um professor de Castelo Branco que era tímido e
dotado de apostemas de acne como uma cartografia de pus geodésico, finalmente
com um artista de stand de automóveis que era casado mas se esqueceu de lho
dizer. Nada, enfim, nem de muito grave nem de premente notação cartorial.
Susana foi das raríssimas pessoas portuguesas que não integraram
o rebanho de ir ver o Titanic: de
amores afogados, sabia ela o suficiente para se poupar à descoroçoante
evidência de tudo na vida descambar, mais cedo ou mais tarde, em naufrágio – e
sem que algum ice-Adamastor de gelo-bergue seja preciso mandar vir pela pantalha
espantalha dos sonhos filmados.
Preveniu a tempo (tinha o filho onze anos) o cancro da
mama esquerda, de que se fez arrancar sem hesitação nem remorso. Só depois
telefonou à própria mãe a contá-lo, evitando a hipocrisia das lágrimas da
velha, um crocodilo de cera que nunca lhe perdoou ter parido antes do casamento
que aliás não chegou a contrair.
Ao deitar-se, acende a vela perfumada, abre a caixa de
bombons e esquece-se de si e do mundo com um livro fácil de literatura top-de-vendas.
Em casa, Susana M. dá de comer ao pássaro e ao gato como,
nas respectivas repartições, dá de comer à Segurança Social e ao IRS. Tem gato,
pássaro, finanças e reforma em dia.
Por tudo isto, é perplexo que vos confesso o meu
absoluto desconhecimento quanto à razão pela qual o ministro Vítor Gaspar a
odeia. A ela e às Senhoras que Não Dizem Mal umas das Outras, muito menos, e
quanto mais, do Governo.
15/10/2012
Quatro sonetos investi eu na manhã de ontem, que dominical foi
TRÊS SONETOS VIVOS
E UM PÓSTUMO
Leiria, manhã de domingo, 14 de Outubro de
2012
I
Jaspe e hulha e ouro e lama e trabalhos
em do mundo a cercania se conjugam,
jogando preciosos ’té à morte sem atalhos
seus jogos onerosos que à sorte subjugam.
Retalha o esterco as nucas não lavadas
do capcioso povo sujo e peregrino.
Ele é do mundo muito o desatino,
muito e atroz e lerdo. As mãos atadas,
não quer, parece, o nefando populaço
mais que a benta côdea, menos que o rijo
bagaço.
Trabalha o ouro, que em lama se lhe paga.
Hulha e jaspe, não: sim unha e chispe,
Alcides e Conceição ao veste-e-despe,
Eva triste e triste Adão que o Tempo apaga.
II
(Eça itálico: todas as palavras são dele, à
colagem minha:)
O
viço, o tenro brilho, o rumor germinante
da
graça poética e da verdade humana
que,
abandonadas a corujas e fantasmas,
às
estamenhas da penitência sucediam.
A
vida inteira, e até a morte, era uma festa.
Como
as ondinas ensinam formas da graça,
batendo
vai ligeiro o voo a fantasia.
A
cada instante o homem adquire, largo,
o dom
divino do riso, antigo sorriso
tão
celebrado, lânguido e húmido.
Poetas
que parecem mortos ou de ferro,
deixando
as faces mudas e frias: inerte,
sua
face é triste, material, íngreme.
Singela
alegria: como o Sol faz às flores.
III
A pergaminhas filactérias procedendo vou
través a manhã cantora de prata ao sossego.
Febre muscular me guia da mão o osso,
(a que, dextra, escreve, que a sinistra
fuma).
Incha de boa seiva a ortónima terra,
que a meu País dá nome doce e conforme.
À pastelaria acorrem as burguesas lesmas
que votam Cavaco e mil-folhas: e depois?
Depois é o cursivo soneto quase feito,
de lado olhado o flanco do domingo.
Calor nenhum e um quase-frio
velam à vez a natura parda em voragem.
Ínclita, íngreme, sobalça-se, solerte,
a certa morte, Pergaminho meu e nosso.
IV
As minhas ovelhas são todas de papel e
tinta.
Faço de cão que as guarda e dá ao pasto
do Tempo, que a toda a tinta enxuga,
a todo o papel rasga – e sem balir ou
valer.
Os meus cães são todos sonetos mal
acabados.
Faço de ovelha que os teme por responso
ao remanso sem nome dos dias nomeados
que ao cautério do Tempo secam calcinados.
Pastor que deveras devera escrever a cajado
sua serra
me sinto e vou sendo, a lápis latindo.
Vim ao pão, fiquei um pouco, meio-dia é
quase,
a casa chegando ao calombo cincharei
devagar.
Cozo umas batatas e um peixe amanho,
que na sala comerei
pensando-me rebanho.
13/10/2012
Já agora,e a modo de compor o ramo, um pouco da tarde de hoje também
METE-AO-FÍSICO
Leiria, tarde de sábado, 13 de Outubro de
2012
Deitei-me ontem a bem pouco usual hora:
passavam trinta e uns poucos mais minutos da uma. O meu Irmão Fernando veio
dormir-nos a casa. Levantei-me aquando ele, passava um quarto das seis. Dei-lhe
o desjejum, vimos um episódio gravado de NYPD
Blues enquanto lhe não ligavam a vir buscá-lo. Vieram, e ele foi, pelas
sete e cinco. O trabalho (modelação cerâmica, em que ele é mestre) era perto de
Fátima, aquele logradouro de monges e de mongos nacionais onde os descontos da
Superstição arrastam companhas às campanhas da hiperparódia da Fé. Já não voltei
à cama, preferindo flanar pela sala com uma chávena generosa de café-com-leite
muito quente. Vesti-me em condições olimpicamente razoáveis e saí. Fazia um
frio delicioso. Aderi ao casaco como a ornitológico frouxel. A madrugada era
mais clara e mais lavada do que a tarde viria a ser. Todavia, pouco conheci da
tarde útil, já que, havendo empratado ao meio-dia uma ração de grão com
toucinho, se me melaram e remelaram os panos-de-boca do teatro óptico. Quer
dizer que fui sestear como um odre – ou como um ogre, talvez. Passabraseei bem
três horinhas de morte emprestada, redimível à reforma da letra do acordar.
Para minha contrariedade metafísica, tinha fome. Nem fragmento de verso, colado
a pasta de cuspo, me acudia ao beiço. Queria pão com queijo e café forte.
Satisfiz esse (este) animal que não lê nem escreve. Depois, antes que a modorra
pós-prandial me adornasse de novo a barcaça, voltei a sair.
Aqui estou.
Penso no que há-de ser o
jantar, que o grão acabou, ai não que não acabou, ao contrário da versalhada,
que disso há sempre fartura e sobejo.
Esta manhã de sábado, 13 de Outubro de 2012
28. E AGORA AS
ACTUALIDADES
Leiria, manhã de sábado, 13 de Outubro de
2012
I
Só quando deixa de o ser me interessa a
actualidade. Este caderno-livro, os que o antecedem e os que talvez lhe
sucedam, são, pois, de uma hodiernidade espúria. Colecciono actualidades que
foram. Vivo esta com a lucidez do fósforo – mas só o cheiro a queimado deveras me
interessa, atrai e recompensa.
No saco, uma agenda trago para inscrição do
Ano dos Anos. Notas exemplares de Janeiro 1 a Dezembro 31 – devassando séculos,
obras, pessoas, fontes, pontes, montes, o diabo-a-quatro-pintado-a-sete.
II
Uma mulher alta e larga e branca como um
móvel de leite. Lê o jornal da manhã enquanto pequeno-almoça um bolo seco e uma
chávena de chá verde. É desejável: a carne abundante segura-se a boas cordas
musculares. Ela cuida-se. A cor não natural do cabelo é compensada por uma higiene
clara, irrefutável. A três quartos transparente, o vestido (listras horizontais
violetas sobre campo de mármore) entrevê o elástico forte do soutien. Tinha
aliás de ser forte: o balcão do peito abre dois globos maduros de peremptórios
mamilos, o tudo pesando muito grama. Ancas fantis, apuradas, capazes de aparar
um ventre de acordeonista veterano. Pés claros também – e utentes de bons
esfoliantes, posto que os calcanhares não se encascam de cera, o que é raro.
Ah, os olhos. Olhos de mulher de cinquenta anos: 25 cada um, portanto. São
aloftálmicos: o mesmo é dizer que diversamente pigmentam as íris: cinzurazuis
com joaninhas pinturando pontitos de carvão molhado, por assim dizer. A
gaforina, isabelada qual videira americana-outonal, merecia volver à natura
cromática, que suponho de claro castanho – mas reincido na evidência lustral da
lavagem a sabão nosso, do azul-branco. Gentil, oferece-me o jornal, saciada
dele. Agradeço-lhe quase muito, de mais quase, sorri-me, regressa à mesa dela,
em cujo tampo floresce já a rosa gritante da revista de modas e figurinos. É
quando me é dado fixar a quartapisa do vestido que a usa: barra de um roxo
forte, violento quase, traço que seria de um catolicismo brutal não fôra a
peanha obstinada das coxas. Louvaminho-a, turibulo-a, incenso-a? Sim.
Ornamento-a, atavio-a, enfeito-a? Sim. Colaço de seu corpo lácteo e grande se
me sente o escrever, o que aliás se nota sem esforço. Ao entregar-me ela o jornal,
sofri eu dela a manação almiscarada. Tão cedo ’inda na manhã, já ela cheira a floresta
nocturna, sua chuva, seus lobos. Suponho-lhe (decerto com acerto)
angustifoliado o delta púbico, seja: de folhas estreitas, coerentes,
solidárias, amariçadas – mas desbraváveis a doce custo sem amarugem alguma
(quase). É mulher de uma actualidade de ensejo. Actualidades assim, sim,
sempre me interessam, até porque à beira, eu também, dos cinquenta anos, a
ginestesia me venha sabendo mais e mais, cada vez mais e mais de cada vez, a
ontem.
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