30/12/2012

De um anónimo pela tarde de 31 de Julho de 2012 (in LABIRINTO SIMPLES)


“EU SEMPRE FUI SOFRIDO NA MINHA
CASA, EU DOU-L’E VALOR A ELA,
MAS ELA VEIO-ME BUSCAR A
FILHA A CASA, ELA VEIO-ME
BUSCAR A FILHA A CASA MAS NÃO ME
VEIO BUSCAR A MIM, EU AINDA GOSTO
MUITO DELA MAS AGORA ISTO”

(Anónimo no Café Colonial, Leiria, tarde de 31/7/12)

Escrevedeira-das-Neves: belo nome, belo ser




Vinha ontem no CM. Foi detectada em Portugal. Nem tudo nos corre mal, portanto.

27/12/2012

Rosário Breve n.º 289 - in O RIBATEJO de 27 de Dezembro de 2012


Crónica persa

Dona Gerenciana Ávila de Montenegro sofreu, aos 87 anos de idade, a vontade peregrina de casar-se.
Virgem devota de horóscopo e condição, era senhora de seus dela haveres, plural que incluía um gato persa, um naperon português, um jarrão da China e um pastel de Tentúgal. Mais pinhais a perder vista, apartamentos na Lapa lisbonense, dois petroleiros e uma caderneta da Caixa Agrícola com mais dígitos que eu caspa. Objecto lúbrico de seu dela amor era um rapaz de breves 22 anos chamado Arnaldo. O qual era marceneiro por castigo, que desistir de estudar no 8º ano dá nisto. Alto, moreno, cabelo negro até raias de azul, espadaúdo, saudável como um pêssego e portador de beiço grosso peliculado de saliva viva, o rapaz gelatinou as deferências cardíacas de Dona Gerenciana, a pobre que pensava saber tudo da vida até que o amor a arrastou em vórtice para os arrais desta crónica. Ventando-se de nipónico leque à janela, a velha senhora esperava as nove menos cinco da manhã e os três depois das seis da tarde de cada dia todos os dias, menos domingos e meios sábados. Eram as horas a que passava Arnaldo, tão insolente como inocente, deus de motorizada a caminho de setenta contos por mês. Belo como o sol, fresco como a lua, Arnaldo lapijava, sem o saber, uma ruga nova, cada vez que passava, no rosto já pergaminhado de Dona Gerenciana. Ele não se sabia amado por toda aquela renda.  O rolo dos meses fez-se, num riscar de fósforo, dois anos. Aos 89 de idade, Dona Gerenciana desfalecia mas não falecia, posto que o amor dá rijezas inauditas a quem o sofre. Arnaldo, sempre marceneiro, sempre sem saber, passava sem saber que ficava, mais fundo ficado e fincado no coração de melancia de Dona Gerenciana. Esta história não é para rir, mas à vontade o faça quem a isto ache graça. O gato persa, bufando de mau ciúme, escalavrou de sangue as varetas varizentas de Dona Gerenciana, que estiolava de amor a uma janela que se apagava. Arnaldo acabou arranjando outro emprego, pelo que deixou de passar. Dona Gerenciana murchou como uma jardineira. As orelhas antigas fizeram-se-lhe cera translúcida. O olhar, sumido pelo abuso da luz de quase um século, amortizou-se-lhe como um resto de dívida. As sardas do peito uniram-se-lhe de negro. Os joanetes pantufados romperam pela parede, causando mossas no reboco. Até que, uma quarta-feira, Dona Gerenciana desistiu da janela. Recuou em passinhos curtos de monge budista até o sofá, onde se lhe desmoronou o amor, todo o amor. Chorou de mansinho a conta exacta de sal: se há coisa que a velhice traz, é a medida certa do pranto. Depois, a coisa passou. Todas as coisas: o rapaz, a juventude, a motorizada, a esperança, a saúde, a espera, a luz, a loucura. Passou tudo. A senhora da Assistência Social veio dar com ela atravessada no sofá, partida de tanto ter vivido sem viver. Chegou o ouvido à boca dela e ainda teve tempo de guardar um sussurro sem explicação: “Eu volto, Arnaldo”.

20/12/2012

Rosário Breve n.º 288 - in O RIBATEJO de 20 de Dezembro de 2012




Não me leves de Audi a ver montras ou feiras

Aqui sou. Trabalho os papéis. A manhã já lá vai, não voltará. Outra por ela sim, como se nada fosse o íntimo ínfimo sentido de tudo. Um carro, além-rio, desce em solidão uma via secundária. Assim por igual cada um, não há nem é novidade. Deixo que os elementos me pensem.
Derredor, as mesas prandiais estão por recolher. Os fregueses foram às vidas, as empregadas preparam o desarme dos cacos: pratos, chávenas, talher, garrafas, papéis engordurados que ao menos serviram, como o estudo honesto da gramática, para limpar a boca.
Se me erguer daqui (ou disto) para um périplo pela Cidade, receio que as montras me convidem a adquirir, não as natalícias inutilidades douradas do costume, mas gente desvalida e relegada à subcondição de manequins de presépio franco: uma professora reduzida ao mesmo zero do horário, um enfermeiro de menos de trinta anos por dez réis de mel mal coado à hora, um agricultor de milho & batata desavindo com a seriedade da terra, um ceramista sem barro e sem saber que fazer das mãos, meia-dúzia ou uma centúria de jornalistas já não rapazes a quem resta a redacção de folhetos de hipermercado (vulgo “conteúdos”), um polícia mal aposentado que só agora descobre que andou toda a vida a (salva)guardar ladrões – e um que outro autarca apeado à roda-baixa por ter cometido a local insensatez da honestidade pública.
O meu receio é interrogativo: quem me garante que o Ano Novo não será o do relançamento das populares feiras de gado, substituída porém a cornúpeta animália pela humana fauna ex-laboral?
As moedas dão-me ’inda, todavia, para outro café, tenho do Sttau Monteiro o resto de Felizmente Há Luar! para ler (nem que só para reiterar que, entre o 1961 da edição prima da peça e o agonizante 2012 nosso, se dá uma contemporaneidade iniludível), se calhar demoro-me por aqui um pouco mais a sul do céu, que hoje é uma campânula pardacenta, grisa e de uma nublação sufocante aliviada apenas pelo zunzuar cuteleiro do vento. As próprias aves parecem atordoadas: a falta que a luz lhes faz é a mesma que a nós. Jovial excepção à sorumbática regra é a glória mijona daquele cachorro ao pneu traseiro daquele Audi preto: um príncipe vadio que, como cidadão em manif, se liberta em plena rua sem medo do bolor do ontem nem da mais que provável antiguidade do amanhã.
Tendo decidido ficar com o meu Sttau (arriscando-me embora a ter angústia para o jantar), acabo sendo remunerado pela pontual visão da passagem de uma que outra portuguesa: esta de tão elevado mérito verde à altura dos olhos com que nasceu para (vi)ver, aquela de tão perfeita turquês de pernas tão bem agasalhadas de fazenda ambarina, aqueloutra ’inda que cangurua num homem o desejo todo marsupial de lhe ir ao ventre.
Palavreado de pobre, enfim, com que remendo, remendão, o rasgão inconsútil de uma vocação de trapeiro.
E quando finalmente me decido, nem que por tíbia imitação mas glorioso arremedo, a fazer alguma coisa bem feita, descubro que o Audi preto de há parágrafos se foi embora já, pelo que só me resta uma dessas moitas devolutas que, por aí como por aqui, sempre são coisa que não falta, à falta de melhor e infelizmente ao luar.

13/12/2012

Rosário Breve n.º 287 - in O RIBATEJO de 13 de Dezembro de 2012 - www.oribatejo.pt


Enjeite-Se a Rosa mas a Laranja também

De não igual mas idêntica maneira, vai cada qual levando a vida que lhe coube e cabe. Não é porém feliz verdade essa da evidência de muitas vidas afixarem ao peito de vidro o mesmo que muitos estabelecimentos nas respectivas montras: ARRENDA-SE, TRESPASSA-SE, VENDE-SE. É o chamado fenómeno da LIQUIDAÇÃO TOTAL DA EXISTÊNCIA. Sou levado a lapijar esta demonstração algo macambúzia pela visão do acordeonista.
É um cego esmoler de esquina – e da mesma estirpe dos que Salazar, por cosmética, mandou encerrar em 1957 por ocasião da vinda a Portugal do real casal britânico. Este músico pedinte de que vos falo, não sendo igual a todos os outros, a todos os outros é idêntico: por ser, como eles outros, vivo símbolo da vileza de uma sociedade que não cuida de se ver retratada a si mesma num rosto desprovido da bênção da luz esmifrando migalhas de cobre ao pórtico dourado das agências bancárias a troco e a compasso da lágrima ferrugenta da Rosa Enjeitada.
Do presépio orneje o burro santo e muja placidamente a plácida vaca, que da caridade as palhinhas lhes darão, se não que comer, o que tasquinhar. A compasso de acordeão ceguinho, é difícil todavia que envelhecer em Portugal deixe de ser um crime, que a simples escola pública não mais seja contabilizada como um deve mas como um haver, que a saúde seja como deveria ser saudação exercida localmente como direito terreno e não como celeste privilégio de quanto é interior população, que a juventude não seja levada a alugar e a empobrecer coração, cabeça e estômago nos modernos bidonvilles da velha estranja, que o sistema judiciário se preste à justiça de ser justo por breve, idóneo, imparcial e equitativo – ou que, já agora, os cronistas de última página possam passar a tecer loas à pesca sustentada, ao direito laboral à medida do direito humano, à potenciação fruteira de um solo úbere e à redução a desafio de futsal da relação RTP-PSP.
Enquanto o cego toca, repugna-me o meu mesmo pendor por assim dizer ecuménico, que à classe possidente há-de parecer descarada comunistice e à classe despojada desperdício crasso de papel & lápis. Seja. Seja. Não posso deixar de me sentir atordoado de impotência ante o acordeonista, a quem aliás não obolei com um cêntimo que me não sobra nem vem. O meu Portugal-dos-Pequenitos não é o de crianças violadas em seminários e/ou barracas suburbanas. A minha geriatria não é a dos idosos ardendo devagar à combustão das lareiras de pardieiros. A minha utopia é a de pão-com-manteiga, não a de amanhãs que diziam cantores mas que afinal só tocam, mal, acordeão, e que só não vêem porque não querem, ou não sabem, ver.


06/12/2012

Rosário Breve n.º 286 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt


Melão ao mar

Tirando os imbecis, que nem a si mesmos entendem, julgo que toda a gente pode compreender toda a gente. A ler vamos.
Rodolfo Hilo de Astona, muito velho e quase cego, revisita, no pino do Verão, a outra cegueira: o mar. No regresso a casa, ouve o vento no sangue, o trabalho do sal na areia do coração. Pensa: “O ruído é o silêncio que não sabemos ler”. O velho mete-se em casa e cala-se para dentro. Ouve o vento repetir nos pinheiros a gravação das ondas da praia.
Maria de Jesus Taborda, vendedora de melões, dormita no abafo da sombra da barraca de canas à beira da estrada nacional. Um chinelo de borracha pinga-lhe do dedo grande. Duas moscas disputam-lhe a orelha, despertando-a. A mulher mastiga em seco, abre um olho e descobre-se viva num sopé de ouro branco: os melões por vender.
Conheci estas duas pessoas numa paragem de autocarro. A vendedora de melões ajudou o velho a subir para a viatura. Deitou-lhe a rude mão ao fraco sovaco e içou-o com inesperada delicadeza, como se erguesse do prato uma codorniz grelhada. Maria escolheu para Rodolfo um lugar à janela, sentando-se depois ao lado dele. Sentei-me atrás deles para ter que vos contar.
Ela disse: “Os malandros dos incendiários, era amarrá-los a um pinheiro e deixá-los arder.” Ele respondeu: “Moro ao pé de pinheiros. À noite, parece o mar.” Ela perguntou: “Um pinhal ao pé do mar?” Ele esclareceu: “O pinhal é o mar.” Ela: “Antes fosse e que os incendiários não soubessem nadar!” E ele: “Vejo que compreende.” Maria, feliz, disse: “Quando passar pela minha venda, dou-lhe uma peça de ouro branco, meu senhor.” Rodolfo aceita: “Adoro melões, minha senhora”.
Não é difícil perceber os outros. Difícil é termos alguma coisa para lhes dar. Nem que seja um melão. Nem que seja o mar.

04/12/2012

Mariposa (republicação de texto in O PREÇO DA CHUVA, Coimbra, 2006)



Mariposa

E então uma mariposa, grande e inóspita como um helicóptero de combate, apareceu no ar gorduroso do restaurante à cheia hora do cozido. Gerou-se de imediato um vietnam de porras, braçadas e xôs. Guardanapos anti-aéreos desfraldaram patriotismos de caça higiénica. Intrusa involuntária, e aturdida de tanto pano predador, a mariposa tentou colar o ventre à pá do heliventilador, de onde foi sacudida sem mercê por um comedor de farinheira que se tinha empoleirado com garbo e sem cautela num banco precário. Tão precário efectivamente, que deu de si, o banco, dando com ele, o da farinheira, no chão, nadir frio do zénite ventilador. Houve risadas. O tombado, caído sem querer nem remédio no ridículo, amuou e foi continuar o cozido numa mesa que não era a dele, facto que aproveitou para se reenfarinheirar a gosto e à borla.
Entretanto, a voz da razão tentava serenar os desânimos, que pela sala guardanapavam ainda com luxúria, mas tanto menos acuidade quanto mais nervo. A mariposa resistia num voo copérnico, imprevisível, desesperado e desesperador. Pertenciam, a tal voz e a tal razão, a uma senhora afinal mais esbracejadora que uma deusa hindu ou um sinaleiro lusitano, desses de antigamente que, de capacete cor-de-cueca e do alto de uma peanha de lata, desorientavam vauxhalls e NSUs a caminho do ferro-velho do destino.
De repente, já não havia mariposa. Havia, em vez dela e tão-só, um restaurante de preço popular virado de pantanas. O vinho derramado pelo chão consubstanciava um lúgubre onanismo cor de sangue, um guardanapo pendia como uma mão de velho do poster do Sporting local, duas cadeiras tombadas juntas armavam uma aranha octoplégica, tudo somado a um dono da casa perfeitamente estarrecido de desconcerto perante a evidência do prejuízo.
Mas, enfim, lá se recompuseram mesas e cadeiras, fraldas de camisa e respirações. Famílias desunidas redesuniram-se e voltaram aos enchidos, crianças de colo foram reencontradas já púberes, uma senhora amelanciou o decote farto, o telejornal foi posto em som mais alto que de costume e a ordem do mundo voltou ao mundo, o nosso mesmo mundo que só precisa de uma mariposa para soprar na gentinha o escabroso tufão da loucura. 

29/11/2012

Rosário Breve n.º 285 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt



Queres tu, leitor, ser Maia, o Cartoonista?

Esta semana, sonhei que tinha saído o euromilhões ao Maia, O António Maia, O nosso ínclito, egrégio e pátrio cartoonista. Pois foi. Sonhei. Fiquei duas coisas com tal sonho: feliz (por ele) e à rasca (por mim). Feliz, porque sim: um artista de verdade com dinheiro a sério não é todos os dias nem todas as vidas. À rasca, porque o sonho tinha continuação & próximos cartoons, perdão – & capítulos.
Indiferente, ele, à por assim dizer abstrusa e bermuda triangulação de cama (porque afinal, sonhado embora, o bom Maia partilhava comigo & esposa minha o esponsal tálamo), vem-me ele no sonho muito mesmerizante-hipnótico-espiralar assim para mim: porque o sonho tinha continuação & próximos cartoons, perdão – “Daniel, ó pá, porreiro, saiu-me a batelada toda, modos que me vou pirar daqui p’ra fora tipo prà Noruega ou pr’Argentina e de vez, vês, ‘tás-a-ver, só que não quero deixar mal o jornal e muito menos ainda os ainda leitores, modos que fazíamos mas era assim, eu deixo-te umas vinhetas já tudo lápis-coloridas, assim tipo uns cegos a pedir e a dar cavaco, um coelho não porque isso é vulgar mas um gaspar e uma merkel e aquele careca-e-azevedo que fugiu p’r’Inglaterra e o carlos-lopes e a rosa-mota, mais bónus assim a modos que coiso alvarito-da-inconomia, tás-a-ver, tu ficavas com os desenhos e depois só tinhas de fazer, já que não fazes nada, as legendas para os balões das falas assim e tipo e a modos q’o Vasco Santana, olh’ó balão, que era balão e falava ao mesmo tempo, ficava-t’eu muito agradecido, a pontos de que quando cá viesse, se cá viesse ou fosse doido pa’ isso, assim de Buenos Aires ou Oslo, ’inda te pagava umas enguias avieiras e um sável palustre amailuns tintos do Cartaxo e umas talhadas daquele melão espanhol que em Almeirim sabe a independência da Catalunha, qu’é que me dizes?
Disse-l’e que sim. Que remédio. Desde infante que sofro cagufa de meter medo a contrariar sonhos. Daí que escreva. (Até poesia, valha-me o Santíssimo. E boa, valha-me Deus.)
Modos que fiquei com o menino nos braços de legendar o boneco. Por assim dizer. Vamos a isso.
CARTOON N.º 1 – DOIS PEDINTES CEGOS, A e B. Diz o A: “A Merkel e o Vale e Azevedo vieram no mesmo avião.” Remata o B: “Pois é, um mal nunca vem só.”
CARTOON N.º2 – OS MESMOS DOIS CEGOS-DE-PEDIR. Diz o A: o subsídio de Natal do trabalhador é como o Sporting no campeonato. Diz o B (muito compadre): Então porquê? Ri-se o A: A gente sabe que ele devia ali estar, mas não está.
CARTOON N.º3 – OS MESMOS CEGOS PEDINTES MAS COM BATA, GORRO E MÁSCARA ORAL (percebe-se que são eles pelos óculos fumados). Diz o B: Ainda bem que o Gaspar não é obstetra como nós. O A (é a vez dele de ser “compère”): Então porquê? E o B: Porque os bebés já nasciam só com uma orelhinha e menos um terço do cordão umbilical.
 CARTOON N.º4 – Carlos Lopes e Rosa Mota. Pergunta ele: Sabias que o Marques Mendes quis praticar atletismo para imitar o Cavaco? E ela: Ai foi? Não fazia ideia. E ele: Foi, mas teve de desistir dos 110 metros/barreiras porque se aleijava muito na testa.
CARTOON N.º5 – (e penúltimo, chiça). Voltam os pedintes cegos. Ao fundo, uma cruz de santuário e uma trupe de manequins fato-gravata de montra sem cabeça. O A: Ocorre-me que o milagre de sair da crise só levando os ministros a Fátima. O B: Achas que resultava? A: Tentar não dói. Vinha a noite, metíamos os gajos na procissão e lá iam eles. De vela.
Nisto, a minha senhora acordou. Felizmente, o nosso cartoonista já tinha zarpado. Segue-se o diálogo então desenhado:
CARTOON N.º6 – A minha senhora: Tiveste um pesadelo? E eu: Tive. Ela: Deixa, que já passou. E eu: Passou, o tanas. Não sei que raio hei-de fazer ao alvarito-da-inconomia.
Nem vocês.

22/11/2012

Rosário Breve n.º 284 - in O RIBATEJO de 22 de Novembro de 2012 - www.oribatejo.pt



Peço a palavra

Duche tomado, queixo rasurado com pancadinhas finais de loção pós-barba, roupa decente e sapatos não enlameados: eis como todas as manhãs, muito cedo, me apresento ao público regional do café do bairro.
Às seis e ¾ somos pouca gente – e sempre a mesma, para nosso burguesinho alívio. Tenho logo direito, como os demais íncolas, ao nome próprio e a nem ter de dizer ao que venho – que por igual me não variam o baptismo e o consumo. Sento-me à mesma mesa da galeria e cafeíno-me devagar enquanto faço de conta que as não espero. Mas espero-as. E elas nunca me falham, nunca tardam, não deixam de vir jamais: as palavras de cada dia.
São os brinquedos que levo mais a sério. É porque elas trazem pessoas dentro. As palavras trazem pessoas dentro – o contrário é que nem sempre. Sem palavras que as contivessem, as pessoas valeriam menos do que sinais de trânsito numa rua só pedonal. A palavra “Rita”, por exemplo, contém duas dedadas castanhas chamadas “olhos”e um travessão de discurso directo chamado “boca” que emanam “Senhor Daniel, então o cafèzinho a dobrar mesmo como mand’-a-lei, pois atão não é verdade?”. É, Rita.
A palavra “Choupal” voa-me em falso e em vão para uma casa que já não tenho numa cidade que não existe já (os Pais eram a casa, eram eles a cidade).
A palavra “paz” faz-me sorrir por causa do Nobel dado este ano à União Europeia, quando até a Rita sabe (e di-lo sem papas de gaguejo) que “ó senhor Daniel, deviam mas era tê-lo dado aos nossos tribunais, a esses é que sim, ora veja-me o senhor Daniel, o Isaltino em paz, o Valentim em paz, os coisos do BPN em paz, os dos submarinos em paz, os casapiadófilos em paz, é mesmo como mand’-a-lei pois atão não é verdade?”. É, Rita.
A palavra “pedra” não me faz sorrir – por não ser palavra que se ponha nas mãos de meia-dúzia de fedelhos, ainda por cima covardes, que, à frente de manifestantes justamente indignados mas dignamente cívicos, rastilham na polícia uma reacção só cirúrgica no banco das urgências hospitalares.
A palavra “mulher”, tirando a que da particular minha é particularmente continente, é-me já, por má-sina, mais volátil do que a branca cegonha cujo voo caia de alvinitente neve alada os virentes arrozais e os púrpur’anilados céus de Portugal: pois que, à beira não tarda do meu primeiro meio século de idade, já a próstata me as faz ver tão mais formosa’petecíveis quão mais altamente longínquas e mais longemente fora de unhas.
À palavra “esperança” não dou, até por aziaga rima, confiança. O ovo-no-cu-da-galinha não me é filosofia benigna. Será luzinha periclitante ao cabo do túnel do doente terminal. Ou do honesto sportinguista. Ou do crédulo penitente de impenitente e peregrina mania do vai-lá-com-deus. Sou mais do correr do que do fiar-me-na-virgem.
É bem verdade porém que, qual canavial inclinado pela tormenta eólica, tremo o meu bocado à plural palavra que tão singular é: “filhas”. Rosas ambas de alvura a mais nívea, vivo lírio cada uma cujo caule declina a etérea desinência que me levou a ajudar a fazê-las de olhos fechados e braços abertos, fazem-me, agora que deram já as sete e meia, merecer da manhã nova a sagração boa e o bom verniz de estar vivo.
Assim é, pois, que dou por mim cuidando de não atirar, afinal, pedras à esperança, indo em lugar disso com elas, filhas e palavras, um destes dias de melhor sol, a Coimbra rever a casa que era dos meus Pais e que eles eram, sítio onde deveras se aprende o que, em letra e espírito, mand’-a-lei.
Não é, Rita?

16/11/2012

Rosário Breve n.º 283 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt




Mas o futuro é que é manchete

Uma coisa talvez muito engraçada que nós, desempregados, temos – é fazermos greve geral todos os dias, por isso bem dispensando nós, desempregados, a chatice do pré-aviso e o cataplasma da data marcada, que marcada bem a temos nós, desempregados, e logo com o destino, que nunca foi pêra doce, antes sim amarga pílula.
Data marcada é por igual essa quarta-feira que foi o dia 8 de Novembro de 1985, vez prima em que o nosso O RIBATEJO viu a luz. Festiva efeméride, que hoje albardamos de anos 2vinte7sete ao dorso muar do tempo que passa.
Ter nascido o jornal foi coisa boa, até porque a extremosa gente da região sabe ler, faculdade que sempre a leva ao pensar. E pensar nem sempre é sinónimo de cefaleia, ao contrário do que as ditaduras têm por garantido e as religiões por anátema.
Como o tempo me não falta senão pela falta que me faz, trabalhando, ter menos tempo, dei por mim na especulação. Não na de capitais bolsistas mas naquela de congeminar coisas do tipo e-se-tivesse-sido-daquela-maneira-e-não-desta-assim? Congeminei eu isto: e se O RIBATEJO tivesse nascido antes, muito antes daquela quarta-feira 8/XI/85? E se? Teria sido o giro e o bonito, avento eu. Já estou a ver as manchetes datadas:
O RIBATEJO, 2 de Dezembro de 1640 – SANTARÉM FOI A PRIMEIRA A ACLAMAR O NOVO REI.
Ou: O RIBATEJO, 19 de Janeiro de 1919 – EXÉRCITO REPRIME REVOLTOSOS À ESPADEIRADA.
Ou: O RIBATEJO, 23 de Maio de 1981 – INSTITUTO POLITÉCNICO DE SANTARÉM INAUGURADO COM MÃO DE MINISTRO – Vítor Crespo fez as honras da casa.
Ou: O RIBATEJO, 30 de Junho de 1984 – EANISTAS CONSPIRAM NOVO PARTIDO EM ABRANTES.
Ou: O RIBATEJO, 15 de Junho de 1985 – TOMAR EANES POR HERMÍNIO – partido de iniciativa presidencial nasce à beira do Nabão.
Não tendo ainda visto a luz do dia nem a da publicidade, natural (e inevitável) seria que o nosso O RIBATEJO não pudesse clamar estas manchetes e se visse, como viu, a entrar vida adentro com um afã de actualidade que por profissional mérito próprio vai levando e mantendo nos tempos que correm. E que correm não se sabe bem para onde. (Quero eu dizer: saber, sabe-se, mas não é boa política estar a amendoar pelo amargo numa ginjinha de festa de anos, que é o que esta crónica afinal é.)
O RIBATEJO aqui está. Prepara-se até para matricular-se num novo ciclo de vida, de que oportuna e mais clara dicção há-de pertencer a quem o dirige, faz e destina. Sinto-me feliz com isso, até porque quinta-feira (ou seja, hoje, 15) vou muito arrepimpadamente almoçar à velha Scalabitas com gente que é pessoalmente boa todos os dias e profissionalmente óptima todas as quintas-feiras. O que quer dizer que é gente boa até no dia seguinte.
No dia seguinte à tal quarta-feira, 8 de Novembro de 1985.

08/11/2012

Rosário Breve n.º 282 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt




Pode ser que saia

Nos antigamentes da “Outra Senhora” era naturalmente à boca-pequena que se murmurava um chiste anti-salazarista de largo espectro de acção perfurante. Tratava-se de determinar com exactidão qual era, de facto e deveras, o número de saias com acesso ao gabinete privadíssimo do ditador. Ao contrário da boa prática tão própria dos mais exímios contadores de anedotas, começo pelo fim, esclarecendo desde já o enigma. Eram sete, as tais saias. Contai-as comigo.
A da D. Maria, criada de e para todo o serviço. Uma.
A do Cerejeira, cardeal-patriarca do regime tão mais católico quão menos cristão. Duas.
O doutor Bissaya Barreto, influente e reservado confidente da tenebrosa aventesma, conta sozinho por mais duas (bi+saia). Vamos, portanto, em quatro.
E as outras três?
As outras três eram todas, e só, do Povo. Do Povo, sim, posto que quando, por absurdo, distracção ou milagre, o Povo lograva penetrar no tugúrio oficial do Salazar, este, histérico de repugnância e eriçado de nojo à vista da comum gente, apalitava-se logo nas aracnídeas canelas e guinchava: “Saia! Saia! Saia!”
Eis que assim temos, pois, as tais sete saias bem contadinhas: se não pela anémica narração minha, ao menos por exacta e pragmática aritmética.
Pronto, esta já está. Já está mas ainda me sobram papel que encher e tinta com que o fazer. É com contada e contida liberalidade que proverei ao devido número de caracteres, para satisfação e alívio do departamento gráfico deste jornal que dá riba ao Tejo e voz com rosto ao largo Vale. De saias, passo a ruas. Tome-se nota: não estou a dizer que é meu travestido costume passar de saia pela rua. Chiça, não. Do tema das saias passo ao tema da toponímia arterial urbana. Isso. Vamos lá então.
Sempre gostei muito dos nomes das terras portuguesas. Tenho até um caderno exclusivo para anotar os baptismos da nossa geografia. Dos nomes das terras e dos nomes das ruas dessas terras. Foi por causa disso que me lembrei de escrever às câmaras e às juntas de freguesia (enquanto elas existem) no sentido de me oferecer como padrinho de vielas, de becos, de pátios, de travessas, de arcos, do que for. Não peço avenidas, nem praças, nem grandes passeios como aquele das Águas de Santarém à Coreia do Sul que ninguém sabe para quê mas toda a gente conhece por quem. Mas adiante, que hoje tenho a pólvora molhada. Exemplo: a rua daquela escola primária que fechou. Proponho que deixe de ser banalmente chamada Rua da Escola. Em lugar disso, que seja Rua Miguel Relvas, por motivos carecas do conhecimento geral. Outro exemplo: a rua onde em Santarém pernoitava, quando alegadamente edil, o senhor Moita Flores. Não sei como ela se chama, mas sei como deveria passar a chamar-se: Rua D. Sebastião. Estão a ver a ideia? Uma campanha esquizóide e algo pulha contra o mouro vadio, uma cortina de nevoeiro e já está: nunca mais ninguém o viu, nem espera voltar a vê-lo.
Termino em apoteótica trindade. Isto é: com três ruas. Duas condições: a) todas as terras do Ribatejo as comungarem e b) o uso da vírgula. A vírgula no nome dessas três ruas é fulcral, como vereis. A figura tutelar que invoco para o triplo baptismo é não mais nem menos do que Pedro Passos Coelho. E todas as ribatejanas localidades, para bom exemplo das portuguesas restantes, passariam a exibir uma tríade de artérias cuja nomeação valeria a triplicar. Desta maneira:
Rua, Pedro
Rua, Passos
Rua, Coelho
!!!

05/11/2012

Faz hoje trinta e cinco anos que vi um texto meu publicado




5 de Novembro de 1977.
Há trinta e cinco anos, na página infanto-juvenil do jornal "O Diário", que era dirigida por Oriam (anagrama de Mário Castrim), vinha a lume um texto que ofereci, por justa dedicação, ao meu Pai.
Tinha treze anos. O meu Velhote, sessenta.
Ele gostou.
Também gostou que eu aparecesse assinado com o nome dele, faltando apenas o "dos" antes do "Santos".
E lá vinha o nome da terra, Pedrulha, e da cidade, Coimbra.
Trinta e cinco anos.
Caraças, ainda ontem. 

03/11/2012

O Preço da Chuva (2006) - republicação de algumas páginas - Ó LEANDRO!





Ó LEANDRO!

Esta semana, não sei porquê, voltei a pensar no velho Leandro. Deixem que vos conte. O Leandro era um velho muito velho. Tão velho, que já era velho na minha infância. Era jardineiro, dizem que bom. E bebia como uma nuvem. Tinto, cheio, muito. Ia de autocarro para a cidade. Nunca pagava bilhete. Nem lho pediam. Era uma figura pública: a primeira figura pública que conheci. Para prazer de todo o mundo, insultava todo o mundo com os palavrões mais grossos do nosso idioma. Mas só o fazia quando provocado. Quando não, respirava o silêncio de uma solidão sem tréguas.
Pelo fim da tarde, passava pela minha rua a caminho de casa. Nós, miúdos, escondíamo-nos atrás de um carro ou de uma oliveira e gritávamos-lhe: “Ó Leandro!”. Só isto, mas era quanto bastava. O velho alinhava logo na festa. Punha-se a vociferar torrentes e torrentes de obscenidades a propósito de coisas tão existenciais como, por exemplo e sobretudo, o modo como tínhamos sido gerados e por quem. Claro que, na boca dele, as nossas mães nunca coincidiam com os nossos pais. Era fascinante.
Morreu muito velho na casa do Vale do Forno, entre flores e laranjeiras e cheirando a mijo e a santidade.
Mas ainda o vejo, mais eterno que vivo, ao pé da casa da Cuca. Eu vinha sozinho e despreocupado. Quando dei de caras com ele, o sangue evaporou-se-me do corpo. Ele trazia, como sempre, a tesoura de podar. Nessa altura, eu era de tão pouca idade, que ainda tinha medo. E tive. Nessa ocasião fulminante, tive muito medo. Era ele e eu, sozinhos no mundo. Debaixo do sol ardente que me ilumina sem clemência nem crepúsculo a infância perdida para sempre, só ele e eu éramos, estávamos, existíamos. Mais ninguém. Hora terrível, avassaladora, hora de agonia.
Em puro desespero, com o coração feito num nó de água chilra e as tripas reduzidas à condição de serpentes murchas, pensei num estratagema para evitar que a tesoura dele confundisse o meu pescoço com um ramo de sebe. O estratagema era este: passar por ele e dizer “Boa tarde, senhor António!”. Porque ele era António, não era Leandro. Respirei o mais fundo que podia e tentei. Mas, ao passar por ele, o medo traiu-me. Gaguejei isto: “Boa tarde, senhor Leandro!”... O velho, furioso como um deus pobre, levantou a terrível tesoura de podar e apontou-a à minha cabeça de franganito. Desatei a correr como um TGV de calções. Só parei nesta página. Ao longe, ainda ouço o velho a ralhar coisas sobre a minha Mãe, coisas em que vos peço não acreditem.
Acreditem nisto, apenas nisto: aquele era um bom homem que cuidava de flores. E por tão bem ter cuidado de flores, merece bem, penso eu, a rosa de uma crónica em memória de si, senhor António.

01/11/2012

Rosário Breve n.º 281 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt


Só para pobres

Era uma vez uma casa tão pobre, que até os buracos do telhado eram emprestados.
As pessoas entravam de costas porque não havia como dar a cara a tanta miséria. Era sempre Inverno naquela casa, de modo que se podia ir lá dentro ver se estava a chover. A humidade era tanta, que até os ratos tossiam. Pai, mãe, avó e crianças odiavam-se a uma só voz, roubando uns aos outros até o ar da respiração. Era má ideia morrer ali, talvez porque no dia seguinte nunca havia funeral, mas cozido à portuguesa. Naquela casa, tudo acontecia em câmara-lenta. Uma frase dita hoje só era ouvida dois meses depois, chegando as palavras pela ordem errada e cheias do bolor da demora. Depois, era preciso raspar os substantivos com uma faca para que se não parecessem tanto com papéis rasgados. A vida era uma coisa tão assustadora, que até as crianças esperavam a um canto que ela passasse sem as ver. E mesmo o sol, cujo nascimento, a par da morte, dizem ser a melhor democracia, chegava cor-de-café àquela casa irremediável. O próprio Tempo era outra coisa. Um mês, ali, não tinha trinta dias, mas sessenta noites.
E sem lua eram as noites, pelo que os lobos, sem terem a que uivar, enlouqueciam de mudez. Nas trevas perpétuas, os olhos brilhavam como pirilampos cegos de sal. Enguias fosforesciam no veludo frio do pensamento. Sobre a mesa, o fantasma de uma galinha punha ovos negros. Ao lado, um machado vibrava sem que lhe tocassem. No chão, dormia a sombra de um cão que não estava lá. Um dia, o país onde essa casa ficava, mudou de governo. Os novos governantes eram muito boas pessoas. Muito sérias, muito missa-das-onze, muito cuspifalantes. Resolveram tudo lindamente: Impostos, Justiça e Educação, Saúde, Emprego e Administração, Circo, Tropa e Europa, Comércio, Indústria e Ambiente, Futebol, Andebol e Parapente, Literatura, Ortografia e Saneamento, Agricultura, Previdência e Planeamento, Suinicultura, Autonomia e Vaca Fria – tudo ficou um brinquinho. Visto do céu, o país brilhava de exposições universais e europeus de futebol. Visto de lado, o país exibia um perfil de imperador romano. Visto de costas, o país nem parecia ter cauda. Visto de frente, era isto que vos conto. Pronto, enfim, as coisas foram andando, o totoloto saindo, a pedofilia entrando, o amor cada vez mais lindo, os pombos arrulhando, o eurodólar subindo, o preço do pão baixando, os ucranianos sorrindo, as baleias aumentando. Restava, no entanto, um problema. O problema restante era o problema da Pobreza. Quando chegou a vez da Pobreza, o novo governo comprou um catrapilo assim muito grande, muito poderoso e muito amarelo. Uma espécie de dragão mecânico com S. Jorge a conduzir. Vai daí, o governo mandou arrasar tudo, erradicando de vez essa purulenta chaga social. A Pobreza deixou de existir para sempre. Materialmente arrasada, a Pobreza tornou-se um caso mental.
Era uma vez uma casa, era uma vez um país.
Quem tossir, é rato. 

28/10/2012

ANTES DO REQUIETÓRIO - 52 - manhã de domingo, 28 de Outubro de 2012


52. DUAS MISSAS BREVES

Leiria, manhã de domingo, 28 de Outubro de 2012

I

Quando vejo os velhos, é como se estivesse no desembarcadouro da gare. Ferroviária ou marítima. É ver os que estão de partida. Nunca como ante eles sinto a espessura do termo passageiros.
Entre os velhos, há os que nunca se desmatricularam da vida tida por simples, esses que se ligam à terra para quanto sempre lhes coube e houve. A vida interior do hortelão, percebes? Esse músico vitalício ligado ao solo por via das partituras vegetais. Em coro e a solo, derredor, seus animais. Bucolismo tonto, o meu. Nada me interessa se meu, se alheio. Não se trata do elogio do asceta, do pária, do apátrida, do associal. Trata-se do homem com suas couves, sua leira, sua água em profundidade freática, seu porco salgado em arca, sua metafísica de vinho contado para todo o ano.
Temo não lograr vir a ser um poeta desses mas tão-só este homem que entre pastelarias julga preferir Maeterlinck a Claudel.
Porejam luz fresca os azulejos da manhã: a esmalte azul moldurados, arvoredos e chaminés negoceiam em placidez a civilização. Um cunho primitivo salva-nos do horror possível da desatenção. É possível sozinhar sem desespero a instância do país matinal. Ou assim: é possível viver todo-só de humanidade agarrada ao corpo como um cheiro de cozinha à roupa.
Ao menos partilho isso já com os velhos. E contigo – que és aquele tu a que sempre me dirijo quando parece mal gesticonversar sozinho, à maneira do espelho-da-barba.
Percebo, percebes (perceberás?), que isso a que chamam Morte é um telefonema que nos fazem enquanto somos quem atende o telefone e não (ainda não) o assunto dele.
De modo que todo e tudo o restante são a vida, não é?, a vida – que uns se limitam a levar vivida, ao passo que outros levam a transformá-la em vida.
(Talvez te tenha rezado alguma coisa, não sei bem, ora-me tu a mim agora.)

II

Encostado fumando devagar a um dos pilares da galeria já tomados pela luz directa da manhã. Absorvo e assimilo o sol no corpo como o giz recebe e apre(e)nde dos dedos do menino primário a caligrafia. Olho o quadro, que repito nos dias través as estações: a área desportiva obsoleta já à nascença, a veia viva via-rio que a escolta de árvores ri de brilhos ridente-brilhantes, homens e rapazes numa coragem de calções trabalhando-se tónico-oxigénico-musculares, mulheres-da-erva rumando a capela alvinitente, alvidúcida, cegas do Deus da mesma rotina com que enxundiam o porco, esmadrigam os filhos, esborcinam os púcaros, esnocam as oliveiras e esgarçam a si mesmas, o sempiterno cão público vadiando sua leonina privacidade, o cardápio de possibilidades sexuais as mais inclementes que a falta dominical de táxis adensa nos homopeões de pochette à cata de rapazinhos de mochila,
mas tudo porDeuscomDeusemDeus
ao Sol,
que o Mesmo Um e Outro são,
ide,
que
ite missa est. 

25/10/2012

Rosário Breve n.º 280 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt


Hospital Toyota

Aqui há tempos, um incómodo persistente no joelho direito levou-me a procurar um edifício público onde por enquanto ainda vão aceitando coxos provisórios que pagam impostos. Não se tratava, é verdade, de uma dor incapacitante, mas era das peremptórias, daquelas que, como o Toyota de antigamente, ameaçam ter vindo para ficar.
Porque todos somos paramédicos do nosso próprio corpo, não me foi difícil perceber que parte da caminhante algia era filha natural de remotas patadas recebidas, há muitas décadas, no decurso da minha breve, gloriosa e irrelevante passagem pelo futebol distrital do tempo dos pelados e dos bufetes de balcão de contraplacado com carrascão traçado de gasosa de pirolito mesmo à beirinha da cal viva dos recintos. Outra parte da maleita, quiçá mais determinante e bem mais determinista, vinha daquilo que a todos nos leva: a oxidante osteoporose da idade, cujo inexorável divertimento resume um ex-moço a um emaranhado de arames locomotores cuja maleabilidade vai dando lugar, com o tempo, ao desengonço roberto das marionetas úrico-artríticas. Uma tristeza de sapatos, enfim. Lá fui portanto ao hospício.
No vidrofone das inscrições, uma arara de trufa oxigenada quis saber o que é que eu tinha. Eu disse-lhe que vinte euros. Ela disse que sim e botou-me o nome no computador. Eram elas as oito da manhã. Quase à hora de almoço, um rapaz alto de fato-macaco azul assobiou-me que o seguisse. Segui-o. Disse-me ele: “Vá-se orientando pelas placas conforme o seu caso, ó chefe.
Uma placa dizia: QUEIXINHAS. Entrei. A seguir: HOMENSSENHORAS – CRIANÇAS ATÉ AOS 35 ANOS. Fui pela esquerda (coisa que sempre faço nas eleições com o mesmo resultado do joelho). A seguir, LETRAS – CIÊNCIAS – NOVAS OPORTUNIDADES. Comecei a desconfiar o meu bocadito. Como já li qualquer coisita de Fernando Namora, fui pelas LETRAS. A esperança de topar com a simples indicação ORTOPEDIA abandonou-me de vez à visão da bifurcação seguinte: NEOGARRETTIANOS à esquerda e SIMBÓLICO-DECADENTISTAS à direita. Aí, comecei a ladrar-me baixinho uma tosse de obscenidades relativas às progenitoras dos escritores de placas. Ainda assim, manquejei pelos imitadores de Baudelaire. Lá dentro, era pior: à esquerda, ORTOGRAFIA DE 1911; ao centro, ORTOGRAFIA DE 1945; à direita, ORTOGRAFIA NENHUMA À MODERNA. Por essa altura, já quase o joelho me não doía, ao contrário da alma. Peguei no telelé e roguei à Senhora dos Aflitos, vulgo minha mulher.
Desandei dali por portas não lidas nem contadas, até que cheguei a um corredor de lúrido néon crepuscular ao cabo do qual a minha esposa me esperava com aquele sorriso todo mãe que as mulheres afivelam à boca desde meninas. Atrás dela, todavia, três portas gritavam maiúsculas.
A do centro, PS.
A da direita, PSD/CDS.
Mas a da esquerda dizia uma coisa simplesmente maravilhosa: SAÍDA.
Estava porém impedida a duplo aloquete.
Que eu saiba, ainda está.
E eu também ainda lá estou, bambo da perna e marreco de toda a esperança, sem sequer a mínima de um pirolito ao intervalo.

19/10/2012

ANTES DO REQUIETÓRIO - 37 - III - Leiria, tarde de sexta-feira, 19 de Outubro de 2012 (foto da mesma data)





37. PEDRA E ’SPUMA

Leiria, tarde de sexta-feira, 19 de Outubro de 2012

III

Aí o temos, o fim da natural luz da jornada.
O fim é natural. A Natureza não é final.
Não é ainda o frio, não é já o calor.
Comprei pão.
Na iminência do regresso a casa (meu recomeçado reduto final também), faço ’inda por recolher um pouco do mund’humano.
Três homens idênticos à idêntica humanidade, mesa ao lado dextro. Tomam os três whisky do bom com um, dois dedos de água lisa. Os três salvam o País. Estão na fase doutrinária do encopanço. Um é de óculos crespos, testa abrindo clareira alta. Outro é vasto como uma dorna, casaco encarnado de lã, coxas continentais, sapatos um bocado reles. O outro é do tipo bancário wanna-be-banqueiro. Mas o whisky é de boa marca, deixemo-los falar.
Derredor, a progénie é típica do entardenoitecer:
um casalito de cores cinzas de mãos mútuas e comovidas umas com as outras;
uma rapazita de semblante espertote folheando revista que não lê;
um rapazote de axúndias que o abonacham, de uma bovinidade delicodoce no falar, bigodito bistrado, fuliginoso, semeado ao vento;
uma mulheraça de pé, pernas mola-da-roupa juntas à cinta por os arames fartos da cueca ampla.
É, alfim, um mundo bonito. Ainda bem, posto que único. Vede comigo:
com a mão esquerda ocultando a boca, um rapaz de jaqueta cor-de-pombo telefala imóvel. Ri-se, a mão vibra. É corado, rubicundo: talvez de falho bombear seja dele o coração físico. É quase magro de mais. Nem formoso nem hórrido: um tipo como eu e como tu, não andam propriamente por aí georgeclooneys a dar com um pau.
Entretanto, a espertota da revista adquiriu companhia: é uma dríade de bom cabelo lacado, de que o quieto verniz fulge ilusória dinâmica. As duas já conversam. Fazem-no baixinho e em compenetração – não custa lobrigar que é de efebos donzéis feito o assunto delas. Junta-se-lhes uma terceira, cuzito magro, varetas tíbias, disúrica talvez, ar de quem por melomania tem tão-só o toque da Nokia. Mas, enfim, moças: bonitas portanto, por mais inócuas.
Entrementes, o trio whiskeyro dá-lhe forte no malte. Comemoram os respectivos desaniversários de 364 dias. Fazem bem. Suspeito-lhes esposas amaras, avaras, secas e ínvias. O tempo e os casamentos não vão fáceis, tirante o meu.
Achega-se agora ao café e à página um mote veramente interessante: uma gansa volumosa de carnadura apertada em boas gangas, claras redondezas pró-matriciais não há-de tardar muito, se acaso não desovou ossos já. Sei que se chama Clotilde porque assim a apodou a do casalinho de cinzas. Boa para namorar aos domingos, como dizia um ex-amigo que tive no século passado. A Clotilde fuma daqueles cigarros que a Adelaide do Adelino fuma também, uns assim para o branco, o comprido e o fino, acho que aos dez em cada maço. Gosto das botas da Clotilde: de cabedal caçador, tipo medieva sala-de-armas. Nunca saberá, a coitada, a feliz, que me perde.
Não perco eu mais nada: já os ácidos me revoluteiam o odre gástrico, que toda a tarde enferretei de café bem torrado. Faço a verdade de conta: que nada é comigo, pelo que ensaco os pertences papeleiros e as ferramentas lápis-tintureiras, pelo que pago, pelo que vou para casa, onde as pequenas plantas, em pequenos vasos, ajardinam o lancil banal e feliz da cozinha, cuja janela abre para a rua leiriense em pleno, valha-nos Deus, século XXI.

(E ao chegar a casa a notícia da morte de Manuel António Pina. Viva Manuel António Pina.) 

18/10/2012

Rosário Breve n.º 279 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt


Susana M., senhora nossa conhecida

Chama-se Susana M. e é caixeira de farmácia. Tem um filho que praticamente herdou sozinha de si mesma, contada e descontada a irrelevância do masculino concorrente que com ela, há vinte e oito anos e nove meses, o co-gerou antes de fugir (todos os homens fogem, por esta ou aquela razão, por nada ou por tudo, a torto e a direito). O menino nasceu rijo, pondo-se de imediato, de goela escancarada como um tenor, a berrar vida, pelo que também de imediato começou Susana a pagar-lha.
O infante fez-se rapaz, o rapaz entrou no ensino superior, ninguém sabe por nem para quê. Dez anos depois, ainda lá está, superior e por ensinar. Susana paga.
De novo só na comezinha realidade quotidiana, Susana cumpre o horário de trabalho de tão lavada maneira quão lavado é o branco da bata profissional com que ao balcão transparece, qual anjo compadecido da carestia dos medicamentos com que os pobres vão adiando a morte e a saúde.
Do salário, cada fim de mês, a caixeira liquida prontamente a renda de casa e os serviços que à vida privada dão dinamismo: água e luz, gás e lavagem das escadas, dízimo evangélico e quota duodécima da Associação de Senhoras que Não Dizem Mal Umas das Outras. Aos sábados à tarde vai ao hiper, onde se demora pouco e de onde regressa com os despojos triviais das comuns precisões: detergentes para roupa & louça, água mineral, uma caixa das médias de bombons, pescada congelada, feijão-frade de lata, ovos, leite condensado, comer para o pássaro, comer para o inevitável gato de todas as mulheres sós, velas aromáticas de cabeceira, revista TV, pudim em pó, biscoitos de canela e sopas instantâneas daquelas cuja imitação de marisco nunca deixa de lhe despertar no palato a obstinada nostalgia das férias de um Verão improvável à face de uma toalha de areia estendida à vista do mar do Tempo perdido. Na caixa, Susana caixeiramente paga.
Aos domingos, permite-se o luxo sensato de dormir duas horas mais, que pela semana vai descontando em clareiras de insónia. Acumula saldo no telemóvel: os recarregamentos periódicos obrigatórios empilham valor por gastar à razão directa dos telefonemas mudos que não faz. Todos estes anos, saiu e deitou-se um par de vezes com um médico quase local que fumava mais do que interessava, depois com um professor de Castelo Branco que era tímido e dotado de apostemas de acne como uma cartografia de pus geodésico, finalmente com um artista de stand de automóveis que era casado mas se esqueceu de lho dizer. Nada, enfim, nem de muito grave nem de premente notação cartorial.
Susana foi das raríssimas pessoas portuguesas que não integraram o rebanho de ir ver o Titanic: de amores afogados, sabia ela o suficiente para se poupar à descoroçoante evidência de tudo na vida descambar, mais cedo ou mais tarde, em naufrágio – e sem que algum ice-Adamastor de gelo-bergue seja preciso mandar vir pela pantalha espantalha dos sonhos filmados.
Preveniu a tempo (tinha o filho onze anos) o cancro da mama esquerda, de que se fez arrancar sem hesitação nem remorso. Só depois telefonou à própria mãe a contá-lo, evitando a hipocrisia das lágrimas da velha, um crocodilo de cera que nunca lhe perdoou ter parido antes do casamento que aliás não chegou a contrair.
Ao deitar-se, acende a vela perfumada, abre a caixa de bombons e esquece-se de si e do mundo com um livro fácil de literatura top-de-vendas.
Em casa, Susana M. dá de comer ao pássaro e ao gato como, nas respectivas repartições, dá de comer à Segurança Social e ao IRS. Tem gato, pássaro, finanças e reforma em dia.
Por tudo isto, é perplexo que vos confesso o meu absoluto desconhecimento quanto à razão pela qual o ministro Vítor Gaspar a odeia. A ela e às Senhoras que Não Dizem Mal umas das Outras, muito menos, e quanto mais, do Governo. 

15/10/2012

Quatro sonetos investi eu na manhã de ontem, que dominical foi


TRÊS SONETOS VIVOS E UM PÓSTUMO

Leiria, manhã de domingo, 14 de Outubro de 2012

I

Jaspe e hulha e ouro e lama e trabalhos
em do mundo a cercania se conjugam,
jogando preciosos ’té à morte sem atalhos
seus jogos onerosos que à sorte subjugam.

Retalha o esterco as nucas não lavadas
do capcioso povo sujo e peregrino.
Ele é do mundo muito o desatino,
muito e atroz e lerdo. As mãos atadas,

não quer, parece, o nefando populaço
mais que a benta côdea, menos que o rijo bagaço.
Trabalha o ouro, que em lama se lhe paga.

Hulha e jaspe, não: sim unha e chispe,
Alcides e Conceição ao veste-e-despe,
Eva triste e triste Adão que o Tempo apaga.

II

(Eça itálico: todas as palavras são dele, à colagem minha:)

O viço, o tenro brilho, o rumor germinante
da graça poética e da verdade humana
que, abandonadas a corujas e fantasmas,
às estamenhas da penitência sucediam.

A vida inteira, e até a morte, era uma festa.
Como as ondinas ensinam formas da graça,
batendo vai ligeiro o voo a fantasia.
A cada instante o homem adquire, largo,
o dom divino do riso, antigo sorriso
tão celebrado, lânguido e húmido.

Poetas que parecem mortos ou de ferro,
deixando as faces mudas e frias: inerte,
sua face é triste, material, íngreme.
Singela alegria: como o Sol faz às flores.

III

A pergaminhas filactérias procedendo vou
través a manhã cantora de prata ao sossego.
Febre muscular me guia da mão o osso,
(a que, dextra, escreve, que a sinistra fuma).

Incha de boa seiva a ortónima terra,
que a meu País dá nome doce e conforme.
À pastelaria acorrem as burguesas lesmas
que votam Cavaco e mil-folhas: e depois?

Depois é o cursivo soneto quase feito,
de lado olhado o flanco do domingo.
Calor nenhum e um quase-frio

velam à vez a natura parda em voragem.
Ínclita, íngreme, sobalça-se, solerte,
a certa morte, Pergaminho meu e nosso.

IV

As minhas ovelhas são todas de papel e tinta.
Faço de cão que as guarda e dá ao pasto
do Tempo, que a toda a tinta enxuga,
a todo o papel rasga – e sem balir ou valer.

Os meus cães são todos sonetos mal acabados.
Faço de ovelha que os teme por responso
ao remanso sem nome dos dias nomeados
que ao cautério do Tempo secam calcinados.

Pastor que deveras devera escrever a cajado sua serra
me sinto e vou sendo, a lápis latindo.
Vim ao pão, fiquei um pouco, meio-dia é quase,

a casa chegando ao calombo cincharei devagar.
Cozo umas batatas e um peixe amanho,
que na sala comerei pensando-me rebanho. 

13/10/2012

Já agora,e a modo de compor o ramo, um pouco da tarde de hoje também


METE-AO-FÍSICO

Leiria, tarde de sábado, 13 de Outubro de 2012

Deitei-me ontem a bem pouco usual hora: passavam trinta e uns poucos mais minutos da uma. O meu Irmão Fernando veio dormir-nos a casa. Levantei-me aquando ele, passava um quarto das seis. Dei-lhe o desjejum, vimos um episódio gravado de NYPD Blues enquanto lhe não ligavam a vir buscá-lo. Vieram, e ele foi, pelas sete e cinco. O trabalho (modelação cerâmica, em que ele é mestre) era perto de Fátima, aquele logradouro de monges e de mongos nacionais onde os descontos da Superstição arrastam companhas às campanhas da hiperparódia da Fé. Já não voltei à cama, preferindo flanar pela sala com uma chávena generosa de café-com-leite muito quente. Vesti-me em condições olimpicamente razoáveis e saí. Fazia um frio delicioso. Aderi ao casaco como a ornitológico frouxel. A madrugada era mais clara e mais lavada do que a tarde viria a ser. Todavia, pouco conheci da tarde útil, já que, havendo empratado ao meio-dia uma ração de grão com toucinho, se me melaram e remelaram os panos-de-boca do teatro óptico. Quer dizer que fui sestear como um odre – ou como um ogre, talvez. Passabraseei bem três horinhas de morte emprestada, redimível à reforma da letra do acordar. Para minha contrariedade metafísica, tinha fome. Nem fragmento de verso, colado a pasta de cuspo, me acudia ao beiço. Queria pão com queijo e café forte. Satisfiz esse (este) animal que não lê nem escreve. Depois, antes que a modorra pós-prandial me adornasse de novo a barcaça, voltei a sair.
Aqui estou.
Penso no que há-de ser o jantar, que o grão acabou, ai não que não acabou, ao contrário da versalhada, que disso há sempre fartura e sobejo.

Esta manhã de sábado, 13 de Outubro de 2012


28. E AGORA AS ACTUALIDADES

Leiria, manhã de sábado, 13 de Outubro de 2012

I

Só quando deixa de o ser me interessa a actualidade. Este caderno-livro, os que o antecedem e os que talvez lhe sucedam, são, pois, de uma hodiernidade espúria. Colecciono actualidades que foram. Vivo esta com a lucidez do fósforo – mas só o cheiro a queimado deveras me interessa, atrai e recompensa.
No saco, uma agenda trago para inscrição do Ano dos Anos. Notas exemplares de Janeiro 1 a Dezembro 31 – devassando séculos, obras, pessoas, fontes, pontes, montes, o diabo-a-quatro-pintado-a-sete.

II

Uma mulher alta e larga e branca como um móvel de leite. Lê o jornal da manhã enquanto pequeno-almoça um bolo seco e uma chávena de chá verde. É desejável: a carne abundante segura-se a boas cordas musculares. Ela cuida-se. A cor não natural do cabelo é compensada por uma higiene clara, irrefutável. A três quartos transparente, o vestido (listras horizontais violetas sobre campo de mármore) entrevê o elástico forte do soutien. Tinha aliás de ser forte: o balcão do peito abre dois globos maduros de peremptórios mamilos, o tudo pesando muito grama. Ancas fantis, apuradas, capazes de aparar um ventre de acordeonista veterano. Pés claros também – e utentes de bons esfoliantes, posto que os calcanhares não se encascam de cera, o que é raro. Ah, os olhos. Olhos de mulher de cinquenta anos: 25 cada um, portanto. São aloftálmicos: o mesmo é dizer que diversamente pigmentam as íris: cinzurazuis com joaninhas pinturando pontitos de carvão molhado, por assim dizer. A gaforina, isabelada qual videira americana-outonal, merecia volver à natura cromática, que suponho de claro castanho – mas reincido na evidência lustral da lavagem a sabão nosso, do azul-branco. Gentil, oferece-me o jornal, saciada dele. Agradeço-lhe quase muito, de mais quase, sorri-me, regressa à mesa dela, em cujo tampo floresce já a rosa gritante da revista de modas e figurinos. É quando me é dado fixar a quartapisa do vestido que a usa: barra de um roxo forte, violento quase, traço que seria de um catolicismo brutal não fôra a peanha obstinada das coxas. Louvaminho-a, turibulo-a, incenso-a? Sim. Ornamento-a, atavio-a, enfeito-a? Sim. Colaço de seu corpo lácteo e grande se me sente o escrever, o que aliás se nota sem esforço. Ao entregar-me ela o jornal, sofri eu dela a manação almiscarada. Tão cedo ’inda na manhã, já ela cheira a floresta nocturna, sua chuva, seus lobos. Suponho-lhe (decerto com acerto) angustifoliado o delta púbico, seja: de folhas estreitas, coerentes, solidárias, amariçadas – mas desbraváveis a doce custo sem amarugem alguma (quase). É mulher de uma actualidade de ensejo. Actualidades assim, sim, sempre me interessam, até porque à beira, eu também, dos cinquenta anos, a ginestesia me venha sabendo mais e mais, cada vez mais e mais de cada vez, a ontem.  

Canzoada Assaltante