Não me leves de Audi a ver montras ou
feiras
Aqui
sou. Trabalho os papéis. A manhã já lá vai, não voltará. Outra por ela sim,
como se nada fosse o íntimo ínfimo sentido de tudo. Um carro, além-rio, desce
em solidão uma via secundária. Assim por igual cada um, não há nem é novidade.
Deixo que os elementos me pensem.
Derredor,
as mesas prandiais estão por recolher. Os fregueses foram às vidas, as
empregadas preparam o desarme dos cacos: pratos, chávenas, talher, garrafas, papéis
engordurados que ao menos serviram, como o estudo honesto da gramática, para
limpar a boca.
Se
me erguer daqui (ou disto) para um périplo pela Cidade, receio que as montras
me convidem a adquirir, não as natalícias inutilidades douradas do costume, mas
gente desvalida e relegada à subcondição de manequins de presépio franco: uma
professora reduzida ao mesmo zero do horário, um enfermeiro de menos de trinta
anos por dez réis de mel mal coado à hora, um agricultor de milho & batata
desavindo com a seriedade da terra, um ceramista sem barro e sem saber que
fazer das mãos, meia-dúzia ou uma centúria de jornalistas já não rapazes a quem
resta a redacção de folhetos de hipermercado (vulgo “conteúdos”), um polícia
mal aposentado que só agora descobre que andou toda a vida a (salva)guardar ladrões
– e um que outro autarca apeado à roda-baixa por ter cometido a local
insensatez da honestidade pública.
O
meu receio é interrogativo: quem me garante que o Ano Novo não será o do
relançamento das populares feiras de gado, substituída porém a cornúpeta
animália pela humana fauna ex-laboral?
As
moedas dão-me ’inda, todavia, para outro café, tenho do Sttau Monteiro o resto
de Felizmente Há Luar! para ler (nem
que só para reiterar que, entre o 1961 da edição prima da peça e o agonizante
2012 nosso, se dá uma contemporaneidade iniludível), se calhar demoro-me por
aqui um pouco mais a sul do céu, que hoje é uma campânula pardacenta, grisa e de
uma nublação sufocante aliviada apenas pelo zunzuar cuteleiro do vento. As
próprias aves parecem atordoadas: a falta que a luz lhes faz é a mesma que a
nós. Jovial excepção à sorumbática regra é a glória mijona daquele cachorro ao
pneu traseiro daquele Audi preto: um príncipe vadio que, como cidadão em manif,
se liberta em plena rua sem medo do bolor do ontem nem da mais que provável
antiguidade do amanhã.
Tendo
decidido ficar com o meu Sttau (arriscando-me embora a ter angústia para o jantar), acabo sendo remunerado pela pontual visão
da passagem de uma que outra portuguesa: esta de tão elevado mérito verde à
altura dos olhos com que nasceu para (vi)ver, aquela de tão perfeita turquês de
pernas tão bem agasalhadas de fazenda ambarina, aqueloutra ’inda que cangurua num
homem o desejo todo marsupial de lhe ir ao ventre.
Palavreado
de pobre, enfim, com que remendo, remendão, o rasgão inconsútil de uma vocação
de trapeiro.
E
quando finalmente me decido, nem que por tíbia imitação mas glorioso arremedo,
a fazer alguma coisa bem feita, descubro que o Audi preto de há parágrafos se
foi embora já, pelo que só me resta uma dessas moitas devolutas que, por aí
como por aqui, sempre são coisa que não falta, à falta de melhor e infelizmente
ao luar.
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